A algoritmização do trabalho vem rompendo barreiras e aumentando a penetração em diferentes tipos de ofício qualificado, como a psicologia.
Herbert Salles
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 27/03/2023
No início dos debates sobre o trabalho algoritmizado, o foco estava naquilo que era chamado de “uberização”, justamente, para dar ênfase à plataforma de transporte. Mesmo incipiente e um tanto rudimentar, a discussão ainda estava presa à forma de trabalho e na sua estrutura plataformizada não no modo em que estava se construindo. A algoritmização do trabalho é um fenômeno denso e que arregimenta um grande número de trabalhadores na famigerada falácia do “eu empreendedor”, sem que percebam sua subserviência ao algoritmo. Não são empreendedores e nunca serão donos dos seus meios de produção, são empregados de um robô imaterial que é capaz de gerenciar suas atividades e podem, eventualmente, excluir qualquer um da plataforma. O profissional algoritmizado é alguém disposto a vender sua mão-de-obra (sem que isso seja necessariamente uma escolha e raramente é), independente de qualificação ou natureza, por valores baixos em uma estrutura digital capaz de precarizar seu ofício.
Antes, o trabalho algoritmizado era constituído por profissionais de baixa ou nenhuma qualificação, como motoristas e entregadores. Indubitavelmente, a algoritmização não se limitaria ao ofício não qualificado. É uma questão de tempo sua entrada em alguma atividade e, por via de regra, construir uma estrutura de trabalho precarizada, marginalizando o trabalhador e retirando dele os seus direitos.
Se é possível entender a gênese do trabalho algoritmizado no aplicativo Uber, não será fácil desenhar uma linha do tempo com ramificações que surgiram com a entrada de novas empresas. Fato é que hoje diferentes profissionais como advogados, educadores físicos, professores, designers, contadores e tantos outros podem ofertar seus serviços em sites e outras plataformas, sem formalização ou garantias.
Um ponto de atenção é que o trabalhador entrega, além da sua força de trabalho, a sua privacidade. Um trabalhador algoritmizado é um profissional em atividade perene, com poucos intervalos de descanso e sempre vigiado. Inclusive, é essa vigilância que trará ao indivíduo os estímulos necessários para que sempre esteja trabalhando e produzindo algo, não para si e sim, para plataforma.
Nota-se que um aplicativo de trabalho é formatado como parte de uma engrenagem que se complementa em outras tecnologias. A Uber, por exemplo, não está isolada ou impermeabilizada, pelo contrário, ela é capaz de conectar e trocar informações com os aplicativos da Meta (Facebook), Alphabet (Google) e Spotify, que por sua vez, podem ser conectados a outras plataformas e tecnologias. Na prática, há uma rotina de vigilância e sem a devida proteção de dados e privacidade que se consolida em redes interconectadas com diferentes aplicativos. São como grandes nuvens que acompanham indivíduos 24 horas por dia e 7 dias por semana.
Biodados e o garimpo de emoções
A algoritmização chegou aos profissionais de saúde, como médicos e psicólogos. No primeiro grupo, há ainda algumas barreiras para o avanço desse tipo de trabalho, enquanto entre os psicólogos, a forma já está na rotina de muitos. As sessões de terapia online são uma realidade há algum tempo e são observados os avanços de aplicativos e plataformas digitais para conectar profissionais aos seus possíveis clientes. É o caso da Zenklub, uma das maiores empresas nesse segmento, que permite não só o trabalho de psicólogos, mas também de outros profissionais sem nenhuma qualificação e que podem oferecer serviços “terapêuticos”, como coaches.
Esses profissionais que utilizam a plataforma como meio de garantir renda têm, em média, 30% do valor pago pela sessão “retido” pela empresa, como “um custo da operação da plataforma”. A renda desses trabalhadores está em risco, basta acessar as plataformas de sessões online para ver que muitos profissionais cobram valores inferiores ao piso estipulado pelo Conselho Federal de Psicologia. Esse é um efeito natural do trabalho algoritmizado, a redução da renda como uma forma de garantir o trabalho frequente e, praticamente, ininterrupto.
A ideia de que o divã cabe em um celular é sedutora, principalmente, pela ausência de espaços físicos de um consultório e seus custos envolvidos. É preciso refletir, portanto, se o ambiente virtual compreende o essencial para que uma sessão transcorra dentro dos padrões exigidos.
Sabe-se que um dos princípios básicos para a realização de uma sessão de terapia, é um ambiente seguro para que paciente e psicólogo possam criar um sistema de confiança, garantindo a confidencialidade da consulta. Eis, então, um desafio das plataformas, como crer que partes ou uma sessão inteira não será gravada e armazenada? Ou como é possível garantir que diagnósticos não estão vulneráveis a ataques hacker?
Ao falar em privacidade, é preciso debater como informações sigilosas podem (e vão) ser utilizadas para publicidade e consumo. Em um e-mail marketing distribuído pelo Google no dia 22 de março de 2023, é destacado como “biodados prometem mudar o trabalho no marketing” e enfatizam que há uma “nova fronteira da tecnologia que está na coleta e no uso de dados que vão além da demografia ou da sequência de cliques”. O texto continua dizendo que hoje vem sendo criada uma “infraestrutura que abarca casas inteligentes, cidades inteligentes, objetos de uso pessoal e smartphones” e concluem com um absurdo “assim como dados biométricos, reconhecimento de emoções e biodados pode gerar possibilidades realmente interessantes”. Entende-se como “possibilidades realmente interessantes” o lucro a partir de dados coletados de “smarts”, algo que já abordei em um texto em 2020 aqui no Le Monde Diplomatique Brasil.
Percebe-se, então, que os “biodados” irão demonstrar emoções e outras condições psicológicas de um indivíduo. Assim sendo, a tarefa do psicólogo, nesse sistema algoritmizado, é ser um “garimpeiro de emoções”, o que foge de forma completa do escopo de trabalho desse profissional. A saúde mental deve ser observada não como um produto a ser explorado como insumo para o capitalismo e sim, como direito humano garantido.
Há de se destacar que a atividade “garimpo de emoções” com o foco de potencializar a extração de “biodados” pode ser exercida por outros profissionais, como os já conhecidos coaches e suas vertentes messiânicas. O subconsciente, então, é um profundo espaço a ser explorado e, com o objetivo de obter lucro, não importa a qualificação de quem irá ser o garimpeiro.
A sessão de terapia pode ser vista por essas plataformas não como um processo terapêutico essencial para a saúde mental de qualquer indivíduo e sim, um local estruturado par a exploração do subconsciente com fins de “exploração de biodados”. Nesse sentido, o custo irá diminuir gradualmente pois o objetivo é explorar emoções com fins de informações e dados e não a cura de enfermidades. Logo o “garimpeiro de emoções” pode não ser, necessariamente, um psicólogo e nem um ser humano e tal atividade pode ser operacionalizada por um algoritmo, uma Inteligência Artificial ou qualquer outra tecnologia que não necessita da interferência humana.
Não é cabível aceitar de forma plácida o uso de novas tecnologias que possam capitalizar a privacidade e a intimidade de indivíduos. Após explorar recursos naturais e o trabalho, o capitalismo avança naquilo que parecia intransponível, o subconsciente. Logo, é mais um recurso de exploração humana e controle de indivíduos.
O desafio do futuro para os conselhos de classe está em como entender as potencialidades dessas novas tecnologias e os impactos na exploração do subconsciente. Outro ponto importante é exigir garantias de que aquele profissional realizando o atendimento por meio de plataformas é certificado e autorizado a exercer a profissão. O Conselho Federal de Psicologia exige o cadastro no e-psi, no entretanto, não há garantias de que os profissionais que estão atendendo se enquadram nas regras e diretrizes estabelecidas. Será que é muito irreal pensar, ainda, que em um futuro (não muito distante) uma estrutura baseada em Inteligência Artificial pode ser capaz de atuar como um psicólogo ou na melhor das hipóteses, ser auxiliar de seu ofício? E nesse sentido, como os conselhos de classe estão monitorando ou compreendendo esse novo papel da tecnologia? Não é, apenas, uma questão de substituir um profissional (como se isso já não fosse grave o suficiente) e sim, garantir a condução de um processo terapêutico dentro de normas pautadas em privacidade e em um espaço seguro.
Psicólogos além da psicologia
Criar plataformas que permitem sessões de terapia é construir um cenário em que psicólogos estarão à mercê da precarização. Ora, esses trabalhadores irão competir com seus pares para “conquistar” clientes e, para isso, precisam construir marcas de si mesmos com o propósito de ter boa reputação nos sites e aplicativos. Nesse sentido, duas frentes são necessárias: acompanhar as avaliações de clientes e construir uma marca através de massiva presença na web, principalmente, nas redes sociais.
Uma herança da “uberização” está o sistema de pontuação dos profissionais, que são avaliados de forma constante por seus pacientes. Há, ainda, a possiblidade de deixar avaliações que podem aumentar a reputação de um psicólogo ou garantir sua exclusão da plataforma. Entende-se, portanto, que o profissional deva criar uma estrutura de comunicação para atrair pacientes e, consequentemente, aumentar suas consultas pela plataforma, bem como, garantir boas avaliações de suas sessões. Nesse sentido, esses profissionais recorrem aos vídeos e conteúdos em redes sociais, sendo obrigados a se tornarem influencers ou marketeiros para que consigam mais seguidores que possam converter em clientes.
Os psicólogos estão diante da necessidade de espetacularização de suas carreiras e se sentem obrigados a produzir material – de forma não remunerada – que possa atrair mais clientes para a plataforma que eles atendem e assim, geram mais lucro para as empresas e, como destacado acima, criam uma engrenagem de garimpo de emoções a serem utilizadas como mercadoria por outras empresas e plataformas.
A algoritmização da saúde avança, ainda, para os médicos na mesma formatação, que é a produção de conteúdo para atrair clientes que possam ser atendidos em consultórios e clínicas. No caso da medicina, aplicativos e plataformas estão mais atrelados aos planos de saúde e há mais resistência para a entrada dessa forma de trabalho pelos profissionais envolvidos.
O profissional da saúde famoso se torna uma marca e, como tal, tem um imaginário de consumo, um desejo e uma consulta é uma aquisição de valor, como se um médico ou psicólogo fosse um artigo de luxo, deixando de ser um profissional de saúde, se tornando um health influencer, alguém que vai alimentar a engrenagem do meio digital, produzindo conteúdo que será consumido por uma legião de seguidores.
Não há, todavia, a necessidade de tornar a prática de produção de conteúdo como algo a ser proibido. É preciso compreender que essa dinâmica é fruto da interseção da algoritmização da vida com a precarização do trabalho. Assim, é preciso que conselhos e outros órgãos possam garantir ao profissional boas condições de trabalho e barreiras capazes de arrefecer o processo de precarização, principalmente, através da algoritmização desse tipo de trabalho.
Algoritmização do divã
A algoritmização do trabalho vem rompendo barreiras e aumentando a penetração em diferentes tipos de ofício qualificado, como a psicologia. A urgência está em compreender que as relações de poder e vigilância nessa forma de labor aumentam o caráter explorador e deixa um rastro de precarização. Logo, a regulação desse trabalho é, apenas, um primeiro passo e terá pouco efeito se não houver políticas públicas e legislação específica para atuar diretamente em algoritmos.
Ainda, a ideia de que os algoritmos são criados por desenvolvedores humanos é limitante, haja vista que esses sistemas são capazes de evoluírem de forma autônoma como visto em inovações em machine learning. Logo, as novas tecnologias baseadas em algoritmos têm seus processos iniciados em uma relação humano-máquina e podem evoluir suas potencialidades sem a interferência humana. Nesse fio condutor, sempre teremos um robô virtual que irá gerenciar e vigiar um trabalhador, logo, teremos sessões de terapia conduzidas por um profissional certificado e monitorada por uma Inteligência Artificial construída por meio de algoritmos que pode determinar o valor a ser pago, qual avaliação será dada ao psicólogo e se, talvez, pode ser demitido ou continuar atendendo na plataforma. Ainda, pode se conectar com outros aplicativos que podem oferecer desde uma série ou podcast até um novo remédio ou avisar ao plano de saúde que o paciente precisa de cuidados de outras áreas médicas. A ruptura do espaço seguro da atividade terapêutica é o fim da privacidade dos indivíduos ali envolvidos.
Portanto, o ponto central de todo esse processo é como a algoritmização dilui o conceito de privacidade e torna a saúde mental tanto como um componente de “biodados” que podem ser utilizados tanto como vetores de consumo quanto para a precarização do trabalho do psicólogo que se vê como um “garimpeiro de biodados”. Obviamente, os profissionais de psicologia devem estar no centro do debate e refletir sobre essas novas tecnologias. Ao mesmo tempo, pacientes devem apontar quais os descontentamentos e receios diante da entrada dos algoritmos como mediadores e vigias de sessões de terapia.
A algoritmização do divã não deve ser encarada de forma romântica ou simplesmente uma evolução do trabalho sob a égide das novas tecnologias. E se essa é uma condição irreversível, que possam ser criados mecanismos de proteção, privacidade (de pacientes e psicólogos) e a garantia de direitos trabalhistas. Se a algoritmização não for conduzida para a melhoria do trabalho e renda de indivíduos, ela nada mais é que recrudescimento da exploração neoliberal.
Herbert Salles é doutorando em Economia (UFF).