Militares negros tomaram principais navios contra prática de castigos físicos na Marinha.

Guilherme Daroit
Já se iam duas décadas desde o fim da escravidão no Brasil, mas uma prática daquele tempo ainda se mantinha viva no Brasil de 1910. Na Marinha, instituição racialmente dividida entre os oficiais, brancos, e os marinheiros, majoritariamente negros, os desvios seguiam sendo punidos por chibatadas. Indignados com a continuidade do ato, que já havia sido proibido por lei, cerca de dois mil marinheiros iniciaram um levante em novembro de 1910, tomando os principais navios brasileiros. O motim, que duraria cinco dias, conquistaria o fim dos castigos físicos, mas acabaria com milhares de expulsões, além de prisões e mortes.
Uma rebelião contra a prática já era fomentada pelos marinheiros há anos. Naquele ano, enfim as condições se apresentavam. Após décadas sucateada, a Marinha ganhava finalmente atenção da jovem República brasileira, que aproveitava os fartos recursos da exportação de café e borracha para se consolidar como potência militar. Em corrida contra os vizinhos argentinos, a força encomendaria três encouraçados, então o estado da arte em navios de guerra. Dois deles seriam entregues em 1910, o Minas Geraes e o São Paulo, aumentando e muito o poder de fogo brasileiro.
A construção dos navios também expandiria o poder dos marinheiros. Complexos e mais modernos, os equipamentos exigiam treinamento, e centenas de praças seriam enviados para a Inglaterra acompanhar a construção dos navios. Entre eles, estava João Cândido, que viria a ser o líder da rebelião e receberia, mais tarde, a alcunha que lhe eternizaria como o “Almirante Negro”.
Na ilha do Norte, os marinheiros perceberiam outro cenário: o respeito dos civis, que lhes recebiam com galhardia pela dinâmica econômica que levavam à região, além de se confrontarem com forças armadas sem castigos físicos, organização grevista nos estaleiros e notícias de outros motins, como a tomada do encouraçado russo Potemkin.
Ao voltarem ao Brasil com os encouraçados, estava pronto o roteiro para uma rebelião contra as chibatadas e, de maneira mais ampla, a forte segregação na Marinha. Os castigos já haviam sido proibidos por lei em 1889, mas a regulamentação não duraria um ano, sendo anulada por conta do descumprimento generalizado. Em geral, eram realizados pelos oficiais, de famílias de elite e formados em academias, contra os marinheiros, que chegavam à Marinha como aprendizes ainda menores de idade, por alistamento ou mesmo como forma de correção.
Planejada para o fim do mês de novembro, a insurreição seria levada a cabo na noite de 22 de novembro. O levante seria antecipado em resposta à agressão a um marinheiro no Minas Geraes dias antes, punido com centenas de chibatadas por portar bebida alcoólica a bordo e por ferir outro militar que lhe denunciara. No dia 22, parte dos oficiais deixariam a embarcação para participar de evento em outros navios, e os marinheiros aproveitaram a oportunidade.
Ao retornar ao navio, já em revolta, o comandante da embarcação seria morto pelos rebelados, mesmo fim de outros cinco oficiais. Os marinheiros ainda dariam tiros de canhão, alertando aos demais navios que a revolta havia se iniciado. Até a meia-noite, a rebelião já controlava também o São Paulo, além de outros seis navios, todos às ordens de João Cândido.
A tomada dos dois encouraçados, então principais navios de guerra do mundo, chocaria a elite política e militar brasileira. No dia seguinte, os marinheiros enviariam um telegrama e depois uma carta ao presidente, Hermes da Fonseca, há apenas uma semana no cargo, demandando o fim do uso da chibata na Marinha e outros pedidos, como o aumento dos soldos. Se não recebessem resposta, ameaçavam afundar os demais navios da Marinha e bombardear a Capital e, sem movimentos do governo, passaram a atirar em alvos militares. Um tiro de canhão acertaria, sem intenção, uma casa, matando duas crianças. Assustada, boa parte da população do Rio de Janeiro deixaria a cidade.
Ao mesmo tempo, o governo e a Marinha estudavam planos de tentar abater os navios amotinados. A ideia complexa não apenas pelo fato de os marinheiros possuírem muito mais poder de fogo, mas também por decretar, no improvável caso de sucesso, o fim dos encouraçados, recém-adquiridos por preços elevadíssimos e símbolos do país como potência naval.
Na tarde de 23 de setembro, porém, o Congresso começaria a tramitar projetos para o fim dos castigos físicos e a anistia dos rebeldes. O projeto seria aprovado por unanimidade no Senado e depois ratificado na Câmara, no dia 25. No dia 26, após um período afastados da orla por precaução, os marinheiros retornariam os navios ao Rio de Janeiro e encerrariam o movimento às 19h do dia 26, mesmo sem a conquista de outras demandas, como as salariais.
Apesar da promessa de anistia, a Marinha não deixaria barato a quebra de hierarquia. Após permitir à volta ao solo de todos os marinheiros, os navios seriam desarmados para evitar novos motins, e mais de 1,3 mil praças, dispensados. Além disso, a encomenda do terceiro encouraçado seria cancelada. Sem pessoal e sem navios, a Marinha encerraria sua rápida etapa como potência naval, voltando deliberadamente ao estado de sucateamento anterior.
Em dezembro, uma alegada nova tentativa de rebelião, dessa vez nas instalações em terra na Ilha das Cobras, seria debelada pela Marinha, que terminava assim o expurgo iniciado anteriormente. Com a Capital em estado de sítio pela tentativa, o oficialato prenderia mais de 600 marinheiros. Entre eles, João Cândido, que passaria a noite junto a outra dezena de praças em uma cela de isolamento construída em uma rocha, da qual apenas ele e mais um preso resistiram vivos no dia seguinte. A maioria dos presos, por outro lado, seria enviada para a Amazônia para trabalho forçado nos seringais.
Quase dois anos e uma internação por loucura depois, João Cândido seria absolvido das acusações, mas dispensado da Marinha junto a outros marinheiros, decisão que lhe levaria a uma vida precária. O Almirante Negro só seria anistiado em 2008, 39 anos depois de sua morte.
Guilherme Daroit é jornalista e bacharel em Ciências Econômicas, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é diretor do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região.

