Capitalismo autofágico

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Fotografia: Daniel Lobo/Flickr

Se o capital é finito e sua criação não é natural, como os mais ricos aumentam suas fortunas dia após dia?

Herbert Salles 

Fonte: Le Monde Diplomatique
Data original da publicação: 28/10/2025

Não nascem notas de dinheiro ao jogar na terra moedas de centavos. O capital não é produzido dessa forma, aliás, o capital não é criado no vácuo ou a partir da natureza, mesmo que seu lastro seja feito a partir de metais preciosos. Gurus neoliberais insistem no acúmulo de riqueza a partir da produção de renda como resultado de fórmulas e constructos ocos. Devaneiam, como se ser rico fosse um quinhão para aqueles com a mente treinada para tal destino. Nessa tese, não há finitude para o capital, pois sua capacidade de multiplicação é autônoma e constante desde que haja um processo incessante de trabalho.   

Ao olhar para sua terra, o agricultor de moedas verá que o capitalismo é árido. Não basta trabalho e, muito menos, mente milionária para a prosperidade de sua renda. A finitude do capital está altamente concentrada em poucas mãos, enquanto muitos se acotovelam para sobreviver com a menor parte. É como se alguns tivessem um latifúndio florido enquanto poucos sobrevivem com um vaso de planta murcha.   

Tal concentração é um sinal claro que o capital é finito, portanto, sua produção está baseada em como é possível circular moeda no mercado a partir de necessidades e desejos de uma demanda localizada. Mas há um contrassenso, pois isso não explicaria o aumento gradual de capital dos mais ricos. Se o capital é finito e sua criação não é natural, como os mais ricos aumentam suas fortunas dia após dia?   

Anselm Jappe, em seu livro A Sociedade Autofágica – capitalismo, desmesura e autodestruição, descreve o mito de Erisícton logo nas primeiras páginas. Presente na mitologia grega, a alegoria conta que Erisícton era rei da Tessália abate uma árvore sagrada para usá-la em uma construção de seu palácio. Deméter, deusa das colheitas, emprega-lhe um castigo: uma fome insaciável. Assim, Erisícton, passa a devorar tudo que via ao seu redor, inclusive a própria natureza e seu reino e, não satisfeito, passa a comer a si mesmo.   

Evidentemente, aqui está uma representação do modus operandi capitalista em sua insaciável fome que resulta na alimentação de trabalho e, de forma intrínseca, mais-valor. Para além disso, em uma sociedade que transforma tudo – desde hábitos, labor, necessidades e até psiquê – em mercadorias, tudo aquilo que está presente é passível de alimentar o Erisícton capitalista. Assim, quase tudo que se acumula é devorado, o que não pode ser, é alijado, se houver aquilo que não é capaz de ser mercantilizado.   

Todo esse arranjo não é diferente daquilo compreendido por Metabolismo Social, idealizado por Marx. Antes, a dicotomia sociedade/natureza poderia ser vista como uma simbiose a partir dos fluxos de matéria e energia estabelecidos entre a biosfera e a economia, de acordo com Daniel Jeziorny. Nesse sentido, o humano é um agente produtor, que extrai matéria da natureza, a transforma em mercadoria e a devolve em forma de lixo. Porém, na atual fase do capitalismo, o humano vai além e explora a si e mercantiliza aquilo que está em seu íntimo.   

Esse fenômeno é possível de ser observado na algoritmização, que explora dados extraídos dos comportamentos – e até pensamentos – daqueles que estão inseridos nessa formatação capitalista. Na vigilância constante de indivíduos, o capitalismo vem se alimentando daquilo que é pessoal e íntimo, como o sono, atividade física e até amostras de DNA.   

Percebe-se que a partir do dilema da finitude do capital, a orientação é que se busque alternativas para a mercantilização. Não há um caminho para a produção de mais capital mas há possibilidades para novos arranjos de extração, ou seja, há uma construção para que o capitalismo se alimente de si.   

É dessa forma que os indivíduos no topo da pirâmide têm a possibilidade de acúmulo diferentes daqueles que estão na base, pois eles se alimentam, justamente, dos que estão abaixo. Incapazes de produzir mais capital, a alternativa é se alimentar da riqueza daqueles que estão mais vulneráveis.   

O trabalho passa a não ser a única forma de gerar mais riqueza aos burgueses, os proletários passam a ser mercantilizados em outras esferas. Por exemplo, o carro do motorista do Uber passa a pertencer, por alguns períodos, à empresa, que por sua vez é capaz de extrair mais informações sobre esse trabalhador e do passageiro. Esses dados são compilados com outros de tantas outras fontes e que somados geram uma mercadoria a ser vendida e exploradas por diferentes empresas.    

Ao predar a si, o capitalismo tem como grande objetivo, concentrar ainda mais riqueza em poucas mãos. Isso pode ser visto, por exemplo, quando a fortuna de Musk cresce mais de 700% após a Pandemia de Covid-19. No mesmo período, de acordo com a Oxfam, a riqueza dos cinco maiores bilionários dobrou desde 2020, isso enquanto houve aumento de pobreza e extrema pobreza no mundo.   

Os movimentos de contração na base e de expansão no topo mostram que o capital tem sua finitude e uma restrita capacidade de fluidez, em que há pouca (ou nenhuma) circulação na base e uma drenagem para o topo. O oposto não seria um processo autofágico e sim, uma distribuição nutricional equânime desse organismo econômico-social.   

Portanto, a dinâmica da desigualdade é uma resposta ao comportamento autofágico do capitalismo, que estará sempre vista no recrudescimento das fortunas dos mais abastados. Obviamente, o aumento de riqueza jamais será através de trabalho ou de produção de capital e sim, pela alimentação da base. Diante da finitude do capital, o banquete será a mercantilização da classe trabalhadora.    

Herbert Salles é doutor em Economia pela UFF


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