Contrarreforma administrativa e desmonte do serviço público

forum servidores sc servico publico servidores reforma administrativa

É urgente rever estruturas que concentram privilégios no topo do funcionalismo.

Gênesis de Oliveira

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 04/09/2025

Durante quase uma década, o funcionalismo público federal atravessou um processo de esvaziamento gradual, silencioso, mas profundo, cujas expressões mais evidentes foram a contenção sistemática de concursos públicos e a compressão persistente do orçamento destinado à folha de pagamento dos servidores. A partir de 2016, com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a instauração de um novo regime de austeridade fiscal, consolidou-se um ciclo regressivo de ataques ao trabalho estatal, marcado pela reconfiguração normativa, institucional e orçamentária do serviço público. 

A racionalidade que orienta tal reestruturação, embora não inédita, adquire feições mais agudas neste período: trata-se do aprofundamento do projeto neoliberal, em sua etapa ultraneoliberal, inaugurada na esteira da crise financeira global de 2008. Essa inflexão busca reduzir ainda mais a presença do Estado na provisão direta de serviços públicos, ao mesmo tempo em que fortalece seu papel como garantidor da rentabilidade do capital financeiro, por meio da institucionalização de mecanismos permanentes de ajuste fiscal. 

No âmbito do trabalho público esse ciclo foi marcado pela Emenda Constitucional nº 95, conhecida como teto de gastos, que impôs, por um período de 20 anos, um limite ao crescimento das despesas primárias da União, restringindo-as à variação da inflação. Essa medida fiscal, adotada sob a justificativa de reequilíbrio das contas públicas, produziu impactos significativos não apenas sobre áreas sociais estratégicas – como saúde, educação e assistência – mas também sobre a força de trabalho do Estado. Ao restringir a reposição de servidores, congelar salários, dificultar a realização de concursos e reduzir a curto prazo o orçamento de pessoal1, a EC nº 95 comprometeu a sustentabilidade administrativa da máquina pública e impôs severas limitações à capacidade do Estado de planejar, executar e expandir políticas públicas essenciais. 

A esse quadro somou-se a contrarreforma da previdência, aprovada durante o governo de Jair Bolsonaro, por meio da Emenda Constitucional nº 103, de 2019. A nova norma elevou a idade mínima para aposentadoria, aumentou o tempo de contribuição, endureceu os critérios de acesso e reduziu o valor dos benefícios, ao instituir uma fórmula de cálculo baseada em 60% da média de todas as remunerações desde julho de 1994, com acréscimos de 2% para cada ano adicional de contribuição que exceder 20 anos (no caso dos homens) ou 15 anos (no caso das mulheres). Seus efeitos atingiram, também, os servidores vinculados ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), ampliando desigualdades e tornando a aposentadoria um horizonte cada vez mais distante para milhares de trabalhadores públicos. 

Os efeitos concretos desse ciclo de reestruturação regressiva se expressam com nitidez nos dados de pessoal e orçamentários do Executivo federal. De acordo com o Painel Estatístico de Pessoal (Brasil, 2025), entre 2016 e 2022, o número de servidores públicos federais ativos foi reduzido de 632.485 para 564.999, o que representa uma retração de 10,67%. No mesmo intervalo, conforme dados extraídos do sistema Siga Brasil, os gastos com vencimentos e vantagens fixas, já corrigidos pelo IPCA, caíram de 161,09 bilhões de reais para 135,63 bilhões, correspondendo a uma queda real de 15,85%. Esses números evidenciam não apenas os efeitos acumulados de anos de austeridade, mas também a centralidade das contrarreformas como instrumentos estruturantes do desmonte estatal: é por meio delas que se concretiza a dupla operação de retração – sobre o número de trabalhadores e sobre os recursos alocados ao trabalho público. 

No terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, observa-se a interrupção da trajetória de retração do funcionalismo, acompanhada por um modesto crescimento no número de servidores e no orçamento de pessoal. Ainda que sinalize uma reversão pontual em relação ao ciclo anterior, essa mudança não configura, por si só, uma inflexão estrutural nas políticas voltadas ao desmonte do funcionalismo. Trata-se, na prática, de um alívio temporário que suaviza os efeitos mais intensos do desmonte, mas não rompe com a lógica de contenção que continua limitando a capacidade de atuação do Estado. Diante da manutenção de arcabouços fiscais rígidos, esse movimento tem se mostrado insuficiente para recuperar as perdas acumuladas na última década. 

Tal contenção é mantida, agora, por meio da Lei Complementar nº 200/2023, que instituiu o novo arcabouço fiscal, estabelece que o crescimento das despesas primárias da União está limitado a 70% da variação da receita primária dos 12 meses anteriores, com piso de 0,6% e teto de 2,5% de crescimento real. Em caso de descumprimento da meta de resultado primário, o limite mínimo se aplica automaticamente no exercício seguinte. Ainda que o  novo regime tenha suavizado as amarras do teto de gastos da EC 95/2016, ele mantém o essencial: o controle rígido sobre os investimentos em áreas sociais e a manutenção da lógica de ajuste fiscal permanente. 

Esse movimento se expressa nos dados mais recentes. Entre 2023 e 2025, o número de servidores ativos passou de 571.873 para 573.485, representando um acréscimo de apenas 0,28%. No mesmo período, o orçamento destinado ao pagamento de vencimentos evoluiu de 137,57 bilhões de reais para 139,44 bilhões, o que corresponde a um crescimento real de 1,36%. Esses dados, embora revelem uma desaceleração na trajetória de retração, também indicam a persistência de uma lógica de contenção orçamentária que impede a recomposição efetiva do funcionalismo e posterga a realização de compromissos históricos com a justiça social e com a construção de uma justiça orçamentária orientada pela igualdade racial. 

Nesse contexto, a agenda legislativa da nova contrarreforma administrativa ganha novo fôlego como expressão de continuidade e aprofundamento de um ciclo mais amplo de reestruturação do Estado brasileiro, iniciado ainda na segunda metade da década passada. Após a consolidação de duas etapas centrais – compressão dos gastos primários e reconfiguração das regras previdenciárias – a contrarreforma administrativa desponta como a peça que falta para completar o arranjo ultraneoliberal iniciado em 2016. 

Nesse cenário, a decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida em novembro de 2024, adiciona um ingrediente institucional relevante. Ao julgar improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.135 e validar a alteração do caput do artigo 39 da Constituição promovida pela Emenda Constitucional nº 19/19982, a Corte reconheceu a possibilidade de coexistência de regimes jurídicos distintos no serviço público. Embora com eficácia prospectiva e salvaguarda dos vínculos em vigor, a decisão autoriza União, Estados, Distrito Federal e Municípios a optar entre o regime estatutário e o regime celetista. Em um ambiente de ajuste fiscal continuado, essa flexibilização tende a operar como porta de entrada para vínculos mais frágeis e descontínuos, deslocando o risco das organizações para os trabalhadores e abrindo flancos para rotatividade, descontinuidade e perda de memória institucional. 

O avanço dessa agenda se materializou, ainda, com a apresentação, em julho de 2024, de um anteprojeto de contrarreforma administrativa por um grupo de trabalho na Câmara dos Deputados, sob relatoria do deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), cujo conteúdo parece buscar dar forma legal ao entendimento consolidado pelo STF sobre a coexistência de regimes celetista e estatutário no serviço público. A proposta deve ser desdobrada em três frentes normativas: proposta de emenda à Constituição, projeto de lei complementar e projeto de lei ordinária. 

Foto: Caco Argemi / CPERS – Sindicato

Até o momento, o texto final ainda não foi tornado público, e as informações disponíveis têm sido divulgadas de forma fragmentada por meio de entrevistas do relator à imprensa, o que dificulta a análise aprofundada dos impactos e intenções da contrarreforma. O desenho preliminar, no entanto, indica que, embora se preserve formalmente a estabilidade dos servidores efetivos, a proposta opera por meio de dispositivos adjacentes. Entre os pontos em discussão, segundo o relator, estão a ampliação e normalização de contratos temporários e celetistas, a institucionalização de avaliações de desempenho com bonificações vinculadas a metas, a revisão do teletrabalho com definição de mínimos presenciais e a exclusão dos militares do escopo das mudanças. Quanto aos chamados supersalários, optou-se por adiar qualquer deliberação, condicionando eventuais mudanças a um futuro consenso entre lideranças – solução que, na prática, preserva os segmentos mais protegidos e influentes do aparelho de Estado. 

Essa seletividade não é acidental. Ela expressa um projeto de Estado que, ao mesmo tempo em que precariza o trabalho público sob a retórica da eficiência, evita qualquer enfrentamento real com os segmentos mais corporativos, bem posicionados nas engrenagens do poder institucional. Ao poupar os altos salários e benefícios que se concentram nas camadas superiores do funcionalismo, a proposta em discussão reitera o caráter profundamente desigual e elitista da estrutura estatal, em que as restrições e os sacrifícios recaem sempre sobre os que sustentam o cotidiano da prestação de serviços públicos essenciais. Trata-se, portanto, de uma contrarreforma que deve preservar os privilégios das elites administrativas ao mesmo tempo em que aprofunda a precarização da maioria. 

A fórmula, embora travestida de racionalidade técnica, revela-se simplista e ideologicamente orientada: substitui-se estabilidade por rotatividade, previsibilidade por insegurança e cooperação por competitividade interna. A crença subjacente é de que a fragilização dos vínculos e o estímulo à concorrência entre trabalhadores conduzirão, quase automaticamente, a melhores resultados. No entanto, ao invés de promover ganhos reais de desempenho, esse modelo tende a corroer a coesão institucional, produzir ambientes de trabalho marcados por incerteza permanente e comprometer a continuidade e autonomia na condução das políticas públicas. 

Diante desse cenário, torna-se imprescindível que os sindicatos, as frentes parlamentares de esquerda, os movimentos populares e, também, os movimentos negros, mobilizem-se para disputar a condução do processo legislativo em curso. A aprovação recente da nova lei de reserva de vagas, Lei nº 15.142/2025, que amplia para 30% o percentual destinado a pessoas negras, quilombolas e indígenas em concursos públicos federais, não pode se converter em instrumento de acesso precário e instável. É fundamental garantir que as vagas reservadas conduzam à ocupação de cargos vinculados ao Regime Jurídico Único, e não ao regime celetista. A pulverização de vínculos no interior do funcionalismo fragiliza a força política coletiva dos servidores e inviabiliza o uso do orçamento de pessoal como ferramenta de justiça social e de reparação histórica. 

O que está em jogo, portanto, não é apenas o modelo de gestão administrativa, mas o próprio horizonte de Estado que se deseja construir. É preciso romper com a lógica da austeridade e afirmar, com nitidez, que o orçamento de pessoal não pode continuar sendo o principal alvo dos cortes fiscais. Defender a estabilidade, o provimento contínuo e a valorização do funcionalismo público não é um ato de defesa corporativa, mas uma condição material para assegurar um serviço público estável, profissional e comprometido com os direitos da população, independentemente das mudanças de governo. Isso não significa rejeitar mudanças administrativas, ao contrário. É urgente rever estruturas que concentram privilégios no topo do funcionalismo, por meio de penduricalhos, vantagens desproporcionais e remunerações acima do teto constitucional, completamente distantes da realidade da maioria dos trabalhadores brasileiros. Não somos, portanto, contrários a mudanças na administração pública – ao contrário, defendemos uma reforma genuína, que enfrente os privilégios, reduza as desigualdades entre carreiras e promova igualdade racial no interior do serviço público. 

Bibliografia 

Brasil. Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998. Modifica o regime e dispõe sobre a reforma administrativa. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, 5 jun. 1998. 

Brasil. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, 16 dez. 2016. 

Brasil. Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, 13 nov. 2019. 

Brasil. Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, 10 jun. 2014. 

Brasil. Lei complementar nº 200, de 30 de agosto de 2023. Institui o novo arcabouço fiscal. 

Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, 31 ago. 2023. 

 Brasil. Lei nº 15.142, de 3 de junho de 2025. Dispõe sobre a reserva de vagas para negros, indígenas e quilombolas em concursos públicos no âmbito da administração federal. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, 4 jun. 2025. 

Brasil. Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Painel estatístico de pessoal – PEP. Brasília, DF: MGI, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/gestao. Acesso em: 29 jul. 2025. 

Brasil. Senado Federal. Portal Siga Brasil. Brasília, DF: Senado, 2025. Disponível em: https://www12.senado.leg.br. Acesso em: 29 jul. 2025. 

 

Gênesis de Oliveira é professor adjunto na ESS/UFRJ, onde coordena o grupo PIBIC “Orçamento de pessoal e precarização do trabalho na esfera pública” e o Observatório do Serviço Público: raça, orçamento e direitos. Atua como pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisas sobre o Orçamento da Seguridade Social (GOPSS/UERJ)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *