A instrumentalização do trabalhador

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Cássio da Silva Calvete

A instrumentalização do trabalhador é uma das características mais marcantes do atual sistema de gestão, mas que, contraditoriamente, é pouco estudada e falada. Aizenberg e Hoven (2020, p.5) a definem como “Tratar um indivíduo como substituível, sendo apenas um meio para um fim”. Em seu estudo sobre a necessidade de um design da Inteligência Artificial que respeite os direitos humanos eles descrevem três categorias comuns de violações dos direitos humanos: humilhação, instrumentalização e rejeição do dom de alguém. Essas três categorias estão intrinsecamente ligadas e se reforçam mutuamente. Destacamos a principal característica citada da humilhação que reforça a instrumentalização do trabalhador que é o trabalhador ser colocado numa condição de insignificância e, da mesma forma, quando da rejeição de um dom do trabalhador tornando-o supérfluo, não reconhecendo a contribuição do mesmo. Segundo os autores, a gestão automatizada e opaca pode transformar comunidades de trabalhadores inteiras em supérfluas e permutáveis por inteligência artificial (AIZENBERG & HOVEN, 2020).

Viana Braz (2021) aponta para a invisibilidade e para a baixa remuneração dos trabalhadores em microtarefas, e ao fato de que suas inteligências e criatividades serem ocultadas. Ele destaca a tendência de ter cada vez mais humanos trabalhando para máquinas, para torná-las mais eficientes e inteligentes. Tecnologias ditas autônomas e inteligentes necessitam de muito trabalho humano vivo para operarem e serem aperfeiçoadas constantemente. Gray e Suri (2019) se referem aos trabalhos taskificados como ghostwork (trabalho fantasma), que é feito por uma multidão de trabalhadores de forma anônima, na informalidade e em condições precárias e com baixa remuneração.

Essa superdivisão das tarefas, realizadas nas plataformas digitais, de forma anônima, em condições precárias, mal remunerada, espalhada pelo globo, chamadas de microtarefas, torna os trabalhadores facilmente substituíveis. Essas tarefas podem exigir maior ou menor conhecimento e especialização desde tarefas nas fazendas de clicks, criação de logotipos e folders, moderador de conteúdo, entre outros. No entanto, essa prática não se restringe somente aos trabalhadores plataformizados ela se expande para outros profissionais como as enfermeiras em hospitais, comerciários, professores e trabalhadores em Centros de Distribuição.

A possibilidade de substituição do trabalhador ser feita facilmente pode ocorrer por diferentes circunstâncias ou por uma combinação de circunstâncias tais como: a tarefa ser fragmentada e ter pouco conteúdo; o conteúdo ser absorvido pelo software e ao trabalhador caber o trabalho braçal; e a possibilidade de amplo recrutamento de novos trabalhadores, seja a nível mundial nos casos de trabalhos digitais, ou seja, mesmo localmente nos casos de trabalho on-demand. Essa ampla possibilidade de recrutamento e “contratação” feita por contrato de adesão dos trabalhadores plataformizados sem custo para as empresas, que as permitem terem um número ilimitado de trabalhadores a disposição, e a prática de rotatividade realizada nos trabalhos presenciais de tarefas rotinizadas como dos trabalhadores em Centros de Distribuição caracteriza a instrumentalização do trabalhador.

A instrumentalização do trabalhador o reifica, tornando mais fácil discricionariamente aumentar a extensão, a intensidade e a flexibilidade da jornada de trabalho tendo em vista que diminui sobremaneira o seu poder de barganha individual e mesmo coletivo.

Bibliografia

AIZENBERG, E. HOVEN, J. Designing for human rights in AI. Big Data & Society, July-December, 2020.

VIANA BRAZ, M. Heteromação e microtrabalho no Brasil. Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 57, mai-ago 2021, p. 134-172.

GRAY, L; SURI, S. Ghost work: How to stop Silicon Valley from building a new global underclass. Boston: Houghton Mifflin Harcourt, 2019.

 

Cássio da Silva Calvete é Professor associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutor em Economia Social e do Trabalho pela UNICAMP e com pós-doutorado pela Universidade de Oxford.

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