Mortes por desespero crescem nos EUA: desigualdade, trabalho precário e abandono social estão entre as causas

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Estudos mostram que suicídios, overdoses e doenças hepáticas crescem entre adultos sem diploma nos Estados Unidos. Fenômeno tem relação direta com a desigualdade, o colapso do trabalho e o fim das redes de proteção social.

Benedito Tadeu César

Fonte: Rede Estação Democracia
Data original da publicação: 31/08/2025

Um esclarecimento ao leitor da RED

Recentemente, recebi o recorte de uma entrevista em vídeo com o economista Eduardo Giannetti, na qual ele menciona os estudos de Anne Case e Angus Deaton sobre o fenômeno das deaths of despair — ou “mortes por desespero”, como ficou conhecido o termo.

A partir dessa provocação, fui buscar mais dados e evidências sobre o assunto. Solicitei ao ChatGPT que me ajudasse a aprofundar a pesquisa, levantar estudos complementares e organizar as informações em um artigo que fosse útil, acessível e informativo para você, leitor ou leitora da RED.

O resultado é este texto, que parte do trabalho pioneiro de Case & Deaton, mas vai além: explora as conexões entre desigualdade, mercado de trabalho, ausência de proteção social e o aumento trágico das mortes por suicídio, overdose e doenças evitáveis entre populações vulneráveis.


Um alerta que não é só americano

Desde 2015, os economistas Anne Case e Angus Deaton (Prêmio Nobel de Economia) vêm chamando atenção para um fenômeno perturbador: o aumento expressivo da mortalidade entre brancos de meia-idade sem diploma universitário nos Estados Unidos. A causa não é uma pandemia nem um conflito armado. São o suicídio, o abuso de drogas e o alcoolismo — o que eles chamaram de deaths of despair, ou “mortes por desespero”.

No livro Deaths of Despair and the Future of Capitalism (2020), Case e Deaton detalham como a perda do valor simbólico do trabalho, o enfraquecimento dos sindicatos, a desvalorização da experiência profissional e os altos custos com saúde estão por trás do aumento dessas mortes.

Esse padrão não foi observado em outros países ricos. E os dados não deixam dúvidas: há uma conexão entre a crise nas condições de trabalho, o colapso da previdência social e o agravamento da desigualdade.


Trabalho instável, saúde frágil, vínculos rompidos

No estudo original, publicado no PNAS, Case e Deaton identificaram que, a partir dos anos 2000, a valorização do tempo de serviço — entrou em declínio. Ou seja: os salários passaram a estagnar com o tempo, afetando não apenas a renda, mas também o valor simbólico do trabalho.

Essa perda de horizonte profissional gera um efeito dominó: casamentos mais instáveis, saúde pior e uma desconexão social crescente. Esses fatores, combinados, elevam o risco de morte prematura.


Onde há insegurança, há mais mortes

Uma pesquisa de 2019 conduzida por Knapp e colaboradores analisou dados em nível de condado entre 2000 e 2015. O resultado foi claro: os lugares com maior insegurança econômica — medidos por taxas de desemprego, queda de renda e custo de vida — apresentaram 41% mais mortes entre adultos de meia-idade do que os mais estáveis.

A pesquisa foi publicada na revista Preventing Chronic Disease e está disponível no repositório do NIH (PMC7212405).


Políticas públicas fazem diferença

Um dos pontos mais relevantes da discussão atual é que políticas públicas podem interferir — e muito — na redução dessas mortes.

Um estudo publicado no Journal of Epidemiology & Community Health (Dow et al., 2020) mostrou que um aumento de 10% no salário mínimo está associado a uma queda de 2,7% nos suicídios entre adultos de baixa escolaridade. O mesmo percentual de aumento no EITC (crédito tributário voltado a famílias de baixa renda) leva a uma redução de 3% nos suicídios.

Pesquisas mais recentes ampliam esse dado. Um estudo publicado pela JAMA Network Open em 2025 revelou que a ampliação do EITC em estados norte-americanos reduziu as tentativas de suicídio em 4% e os suicídios completados em 1%.


Desigualdade e ausência de mobilidade

As deaths of despair não afetam todos igualmente. Um estudo de Kuo et al. (2023), também na JAMA Network, mostrou que a desigualdade de renda e a falta de mobilidade social estão diretamente associadas ao aumento dessas mortes entre negros e hispânicos.

Além disso, os pesquisadores Richard Wilkinson e Kate Pickett, no livro The Spirit Level, mostram que sociedades mais desiguais enfrentam mais problemas de saúde mental, violência e desintegração social — mesmo quando a renda média é alta.


Nem tudo é desespero: há críticas e revisões

Apesar da força do termo “mortes por desespero”, nem todos os estudiosos concordam com essa leitura. O economista Christopher Ruhm (2018) publicou uma análise crítica no National Bureau of Economic Research, alertando que muitos fatores associados às mortes — como crises de saúde, uso de medicamentos, políticas locais — podem ter mais peso do que o chamado “desespero”.

Ou seja: é preciso cautela ao tratar causas sociais como determinantes únicos.


O que esses estudos nos dizem

A combinação de mercado de trabalho precarizado, redes de proteção social frágeis e desigualdade crescente está matando, literalmente, milhares de pessoas por ano nos EUA. As mortes por desespero são um alerta para os riscos de um modelo econômico que concentra riqueza, destrói vínculos e nega o futuro para boa parte da população.

E embora esse fenômeno tenha sido detectado nos Estados Unidos, as condições que o sustentam estão cada vez mais presentes em outras partes do mundo — inclusive no Brasil.

Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED

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