O trabalho na confecção em São Paulo: as novas formas da precariedade

Marcia de Paula Leite
Sandra Roberta Alves Silva
Pilar Carvalho Guimarães

Fonte: Caderno CRH, Salvador, v. 30, n. 79, jan./abr. 2017.

Resumo: Este artigo analisa o trabalho no setor de confecção a partir de pesquisa realizada na cidade de São Paulo. Debruçando-se mais especificamente sobre o trabalho em domicílio e dos imigrantes, discutem-se as condições de trabalho no setor a partir da configuração das cadeias de valor e da divisão internacional do trabalho que ela promove, gerando uma nova dinâmica nas formas de precariedade que sempre marcaram o setor. O texto debate também o impacto do selo da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX) sobre as condições do trabalho de costura nos domicílios e nas oficinas.

Sumário: Introdução | Uma breve reflexão sobre o conceito de precariedade | A precariedade no setor da confecção em São Paulo | A precariedade no trabalho em domicílio | A precariedade no trabalho de imigrantes | Considerações finais | Referências

Introdução

Já não são poucos os estudos sobre o setor da confecção no Brasil que têm sublinhado as precárias condições de trabalho que aí predominam. Desde a pesquisa pioneira de Abreu (1986), em que a autora trouxe à luz a quantidade de atividades de costura realizadas em domicílio por mulheres mal remuneradas, que exerciam suas atividades em difíceis condições de trabalho, a discussão da imbricação de tal situação com a divisão sexual do trabalho na esfera reprodutiva foi se aprofundando. Nesse movimento, tornou-se evidente que essas condições de trabalho se deviam, sobretudo, ao fato de as mulheres serem responsabilizadas pelos cuidados com a casa e com os filhos (o que as fazia, muitas vezes, preferir trabalhar em casa para melhor compatibilizar o trabalho remunerado com o doméstico), além de suas qualificações para o trabalho de costura não serem reconhecidas em virtude de terem sido adquiridas no universo doméstico.

Embora a presença do trabalho em domicílio realizado pelas mulheres continue sendo uma característica do setor, é importante considerar que, em âmbito mundial, a indústria de confecção passou, nos últimos anos, por um conjunto de transformações, com o surgimento de novas características laborais em países da periferia do capitalismo, como o Brasil (Castree; Coe; Ward, 2004; Ross, 2004).

A primeira grande transformação que afeta o setor consiste no fato de as cadeias de produção da indústria se tornarem mundiais, inserindo-se numa divisão internacional do trabalho que concentrou a concepção dos modelos e coleções nos países desenvolvidos, e a costura naqueles onde a mão de obra é mais barata. Dessa forma, a costura, hoje em dia, quase não é mais realizada na Europa e América do Norte, restringindo-se, basicamente, aos países latino-americanos e do sul da Ásia, onde é executada especialmente em oficinas e domicílios. Essa é a realidade de muitas marcas internacionais que atuam no Brasil atualmente, como Zara, C&A, Gap, entre muitas outras. Essa reestruturação da cadeia de produção do setor, baseada num intenso processo de terceirização que separou inteiramente as marcas da produção, termina com uma desresponsabilização das grandes marcas pelas condições do trabalho realizado em oficinas e domicílios nos países que concentram a confecção (Hartmann; Wokutch, 2003; Ross, 2004).

No caso do Brasil, onde já existia, antes do processo de reestruturação, um conjunto de marcas nacionais de confecção, o processo de separação entre as marcas e a produção também ocorreu, dando lugar a um esvaziamento das grandes fábricas de confecção, com a multiplicação do trabalho realizado em domicílio ou em pequenas oficinas. Trata-se do mesmo tipo de separação entre a concepção e a execução, com a diferença de que ambas são efetuadas em território nacional. Assim sendo, ocorre internamente o mesmo processo de desresponsabilização das marcas pelas condições de trabalho sob as quais se realiza o trabalho de confecção (Hartmann; Wokutch, 2003; Tilly et al., 2013).

Além disso, é importante sublinhar que o rápido processo de reestruturação e de globalização pelo qual vem passando essa indústria vem sendo promovido num quadro de acirramento da competição (Harvey, 2004; Shaikh, 2016), cujo efeito, dentre outros, é a aceleração dos tempos da produção. Essa precipitação dos tempos, juntamente com os desenhos da última moda a preços acessíveis (garantidos, sobretudo, pelos baixos salários pagos para o trabalho de costura), inaugura uma nova forma de produção que passou a ser conhecida como fast fashion, marcada por uma produção variada, realizada em pequena escala “e que muda constantemente, de acordo com as novas tendências da moda” (Silva, C., 2008, p. 65). A fast fashion se caracteriza por exigir agilidade e flexibilidade de resposta, além de volume variável de produção, aprofundando a prática de utilização de uma força de trabalho periférica, fora da fábrica, para dar conta das constantes modificações de modelos e volumes em prazos curtos. De fato, os novos tempos, marcados pela formação de cadeias globais e por novas formas de organização empresarial, são também caracterizados pela busca da flexibilidade da produção, de forma a garantir sempre novos nichos de mercado.

É nesse contexto que se multiplica intensamente o trabalho realizado em oficinas e domicílios, em péssimas condições de salubridade e remuneração, expandindo a precariedade na cadeia de produção. É à análise de como esse processo vem se realizando na cidade de São Paulo que o presente artigo se dirige, preocupando-se em compreender também as condições do trabalho imigrante, que vem sendo incrementado recentemente, especialmente nas oficinas de costura. Para tanto, ele se desenvolverá em quatro partes: na primeira, desenvolveremos uma rápida discussão sobre o conceito de precariedade; na segunda, discutiremos a evolução do setor na cidade de São Paulo e a precariedade que sempre o marcou; na terceira, a precariedade será analisada no trabalho em domicílio; na quarta, problematizaremos a precariedade do trabalho imigrante; e, encerrando, apresentaremos as considerações finais. O texto foi elaborado a partir de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto temático “Contradições do trabalho no Brasil atual: formalização, precariedade, terceirização e regulação” e de um projeto voltado para a caracterização do setor na cidade de São Paulo, financiado pela OIT, em parceria com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Empreendedorismo de São Paulo. A pesquisa contemplou 20 entrevistas semiestruturadas com trabalhadoras e trabalhadores, imigrantes e nacionais, sindicalistas, empresários, gestores públicos e membros de entidades sociais, além de visitas a empresas e oficinas. Foram também utilizados, na análise, documentos sindicais, empresariais e de entidades sociais.

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Marcia de Paula Leite é doutora em Sociologia. Professora dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Coordenadora do Grupo de Pesquisa do CNPQ “Contradições do trabalho no Brasil Atual” desenvolvendo pesquisas na área de Mercado de Trabalho, Terceirização, Flexibilização, cooperativismo.

Sandra Roberta Alves Silva é doutoranda em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp/SP). Trabalha com a temática relacionada à precariedade das condições de trabalho no Setor de Vestuário e participa dos Grupos de Pesquisa do CNPQ “Contradições do trabalho no Brasil Atual – UNICAMP” e “Trabalho, Desenvolvimento e Politicas Públicas” UFCG/PB.

Pilar Carvalho Guimarães é mestra em Educação e graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, Pilar é educadora social e comunicadora, com experiência nas áreas de gênero, sexualidades, combate às desigualdades, mídias livres e educação popular.

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