O Brasil não está preparado para o fim da CLT

Uma reforma trabalhista no país deve se preocupar, primeiro, com as condições para que os sindicatos exerçam suas funções de forma independente, sem a influência de setores patronais com poderio econômico.

Almir Felitte

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 02/03/2017

Nos últimos tempos, vem ganhando força o discurso do grande empresariado brasileiro, encabeçado principalmente pela FIESP, de que a Consolidação das Leis Trabalhistas devem ser flexibilizadas, ou até mesmo extintas. Entre os argumentos, a afirmação de que o acordo entre trabalhador e patrão é sempre mais benéfico que a observância da lei e que a mudança criaria mais postos de emprego no país, além de possibilitar melhores condições aos contratados. Mas quando tais propostas se concretizam em textos de projeto de lei, é possível perceber a real intenção desse discurso altamente falacioso.

Há ainda muita confusão cercando tais propostas, pois muitas delas entram em confronto com normas constitucionais e não poderiam, em tese, ser aplicadas. Mas, de forma geral, elas apontam para o aumento na jornada média de trabalho do brasileiro ao mesmo tempo em que tornam mais atrativos os postos temporários de trabalho, proporcionando insegurança jurídica e redução na renda do trabalhador no país.

Além disso, a proposta do Governo Federal caminha lado a lado com outros projetos de ataques aos direitos trabalhistas como o PL da terceirização e a movimentação para o desmonte da Justiça do Trabalho, que atualmente vem sofrendo golpes até mesmo do próprio Presidente do TST, Ives Gandra Filho. Mas foquemos, aqui, no ponto central da reforma, a mitigação da aplicação da lei para privilegiar o acordo entre contratantes e contratados.

A começar pela ironia da afirmação de que a CLT se trata de uma lei antiga e arcaica, datada de 1943. Certo é que tal legislação sofreu uma série de modificações e emendas desde sua edição, até mesmo pelos tratados internacionais ligados à OIT e dos quais o Brasil é signatário, sendo que, hoje, pouco ainda resta de seu texto original. Ainda que as relações trabalhistas possam se modernizar mais no país, é falso afirmar que as normas que as regem tenham parado no tempo desde a promulgação da CLT.

A ironia do tal argumento é que a bancada patronal que o utiliza não demonstra o mesmo repúdio, por exemplo, aos Códigos Penal e de Processo Penal, mais antigos e menos remendados que a CLT, mas talvez mais eficazes no controle social das camadas mais pobres.

Desse modo, o lobby do grande empresariado defende com veemência a flexibilização da CLT de forma a privilegiar o acordo entre trabalhadores e patrões. Seria desonesto dizer que o modelo em si é um fracasso, visto que países com renda per capita infinitamente superior ao Brasil são adeptos dele. Porém, quando se fala em “importação” de políticas públicas, é necessário estar atento às peculiaridades de cada sociedade e à possibilidade de que um mesmo sistema não funcione da mesma maneira em qualquer lugar que seja aplicado. Nesse sentido, é importante analisar a história sindical de cada país em comparação à brasileira.

É bem verdade que boa parte do mundo, inclusive os países mais ricos, têm passado por um processo de dessindicalização desde a onda liberal dos anos 80. No Brasil, segundo relatório de 2013 da Fundação Perseu Abramo, ao contrário, a taxa de sindicalização se manteve relativamente estável nas últimas décadas, sempre em torno dos 17% dos trabalhadores, índice parecido com o atual registrado pela média dos países da OCDE, que em 2014 era de 16,7%.

Assim, o índice brasileiro, hoje, se assemelha ao de países como Austrália (15,5%), Chile (15,5%), Alemanha (18,1%), Japão (17,8%) e Espanha (16,9%). É, ainda, superior a de países como Estônia (5,7%), França (7,7%), México (13,5%), EUA (10,7%) e Coreia do Sul (10,1%). Além disso, é bastante inferior às taxas de Áustria (27,8%), Bélgica (55,1%), Canadá (26,4%), Dinamarca (66,4%), Finlândia (69%), Islândia (86,4%), Irlanda (27,4%), Itália (37,3%), Luxemburgo (32,8%), Noruega (52,1%), Suécia (67,3%) e Reino Unido (25,1%).

Quando tais dados são relacionados ao salário médio de cada país, em 2012, medidos pela OIT em Paridade do Poder de Compra (PPC), pode-se verificar que os três primeiros colocados do ranking são países com alta taxa de sindicalização: Luxemburgo, Noruega e Áustria. Aliás, entre os dez países de maior média salarial, apenas Coreia do Sul e EUA possuem baixo número de trabalhadores sindicalizados, ao passo que os demais apresentam taxas superiores a 25%.

Nessa mesma lista, o Brasil amarga a 51ª posição com um índice abaixo da média mundial. Interessante ressaltar, ainda, que mesmo países que se encontram em boas posições nesta lista, apesar da baixa organização dos trabalhadores, experimentaram, durante boa parte de sua história moderna, um largo período de sindicalização, sendo que, entre os países da OCDE, o índice médio chegou a ser superior a 30%, atingindo cerca de 90% em alguns países nórdicos. Além do mais, não se pode negar a crise trabalhista que tem impulsionado revoltas na Espanha e na França, dois países com taxas baixas de organização sindical.

Sobre essa relação entre sindicatos, regulação estatal no mercado de trabalho e renda média, interessante análise fez Piketty ao verificar a ausência de um salário mínimo nacional na Alemanha e na Suécia, onde, até então, incumbia aos sindicatos negociar o estabelecimento do mesmo com os empregadores.

O autor confirma que esses países realmente tinham uma média salarial superior ao restante da Europa, porém, quando analisados internamente, a situação apresentava um problema. Isso porque, dentro dos países, os setores com baixa sindicalização ou pouca regulação apresentavam uma média bastante inferior se comparada com a daqueles com trabalhadores mais organizados.

Não à toa, a Alemanha adotou, em 2015, pela primeira vez na sua história, um salário mínimo nacional. Além disso, convém lembrar que as empresas alemãs, em grande parte, são adeptas do chamado “stakeholder model”, no qual representantes dos funcionários podem deliberar nos conselhos administrativos mesmo que não sejam acionistas.

Assim, vê-se que a situação de países com economias mais modernas e que conferem maior autonomia aos trabalhadores possuem certas peculiaridades ainda não presentes no Brasil que são essenciais para uma política em que o acordo se sobrepõe ao legislado. Aliás, conforme o próprio Ministério Público do Trabalho bem pontuou em recente nota técnica, atualmente já se aplica o entendimento de que o acordo coletivo, quando beneficiar o trabalhador, tem validade mesmo se não previsto em lei. Por isso mesmo o MPT concluiu que a reforma visa, na verdade, possibilitar apenas que os acordos possam ser prejudiciais aos empregados, reduzindo direitos, vez que os benéficos já são permitidos hoje.

Além disso, ainda que possua uma taxa de sindicalização semelhante à média dos países da OCDE, certo é que o Brasil, em nenhum momento de sua história, teve um período de alta organização dos trabalhadores. Não se pode esquecer que, entre os anos 60 e 70, enquanto a Europa vivia o auge das organizações sindicais, o país atravessava uma ditadura militar que perseguia trabalhadores e era aliada aos interesses das grandes economias mundiais.

Desse modo, pode-se dizer que em nenhum momento a classe trabalhadora brasileira apresentou uma estrutura forte o bastante para fazer frente aos interesses de grandes corporações, essas sim com poder de fato para influenciar a legislação trabalhista do país.

Mas mesmo os trabalhadores sindicalizados enfrentam problemas de representatividade dentro das próprias organizações trabalhistas. O que dizer, por exemplo, da greve dos garis no Rio de Janeiro, em 2014, quando os mesmos tiveram de enfrentar a oposição do próprio sindicato da categoria? Ou sobre o fato de a Força Sindical ser presidida por um dos mais fortes apoiadores do atual Governo, o mesmo que propõe o desmonte da legislação trabalhista?

É inegável que a sobreposição do negociado em relação ao legislado surtiu bons efeitos em algumas economias sólidas da Europa, mas o que esperar de tal medida em um país de baixíssima organização da classe trabalhadora que, por vezes, enfrenta oposição dos próprios sindicatos na luta pela conquista de mais direitos?

Desse modo, dada a extrema hipossuficiência e falta de organização do trabalhador, como classe, quando este entra em conflito com as empresas empregadoras, a reforma trabalhista mais parece querer solucionar o problema do desemprego com a criação de milhares de subempregos remunerados com subsalários. De nada adianta a criação de novos postos de trabalho se os mesmos não vierem acompanhados de condições e remunerações dignas.

Por isso, uma reforma trabalhista no país deve se preocupar, primeiro, com as condições para que os sindicatos exerçam suas funções de forma independente, sem a influência de setores patronais com poderio econômico. Ademais, deve-se adotar uma nova política que induza a sindicalização em massa do trabalhador brasileiro.

Além disso, para resolver a crise de desemprego e financeira pela qual o país passa, talvez mais valioso seria se o Governo Federal propusesse uma grande reforma tributária, que desonerasse o consumo de bens e serviços, principalmente os de primeira necessidade, de forma a reaquecer o mercado interno, que prontamente responderia com a criação de novos postos de trabalho para atender à demanda de produção.

De quebra, a carga tributária que atualmente recai com muito mais força sobre o consumo e, portanto, onera igualmente pobres e ricos, poderia ser redistribuída sobre os impostos sobre renda e patrimônio, onde é possível fazer uma distinção de classe, isentando os mais pobres.

Por fim, tal reforma poderia, ainda, abarcar os pequenos empreendedores e as empresas familiares, de modo que o aquecimento deste setor deixaria o mercado de trabalho interno cada vez mais independente das grandes corporações que exercem influência na política brasileira. Isso tudo, claro, pensando o sistema de uma forma reformista. Nada impede que pensemos na utopia de uma sociedade na qual os próprios trabalhadores sejam responsáveis por reger toda e qualquer relação de trabalho, sem o domínio do capital.

Referência

http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/fpa_comunica_3.pdf

http://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=UN_DEN&Lang=fr

http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2012/03/120329_salario_include_jp.shtml

PIKETTY, T. O capital no século XXI. Tradução de Monica Baumgarten de Bolle. 1ª ed. Rio de Janeiro. Intrínseca. 2014.

Almir Valente Felitte é advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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