Neste sentido, o 8 de Março é uma data de todas as mulheres, mas neste cenário de aprofundamento da exploração sexista, racista e capitalista, o Dia Internacional da Mulher tem forte relação e interesse para as mulheres negras.
Juliana Borges
Fonte: Justificando
Data original da publicação: 02/03/2017
O 8 de março, Dia Internacional da Mulher, se aproxima numa preocupante conjuntura internacional e nacional, o que acaba ampliando seu simbolismo e representação de luta.
O capitalismo passa por uma profunda reorganização e uma crise que impacta tanto no campo econômico quanto no campo político e simbólico. A ascensão de representantes de uma agenda conservadora acontece em diversas partes do globo, desde as guerras em territórios árabes com o avanço do Estado Islâmico, produto de intervenções ocidentais sistemáticas na região, passando pelo contexto dos conflitos e guerras no território africano também com esta configuração político-religiosa, os golpes e derrotas nos países latino-americanos que, até então, contavam com hegemonia progressista, a ascensão de políticos de extrema-direita na Europa, culminando na eleição de Donald Trump nos Estados Unidos com uma pauta nacional-protecionista e extremamente conservadora e retrógrada no campo dos direitos civis e democráticos.
O sequestro do Estado pelo Capital tem se aprofundado e, se antes eram necessárias mediações nesta relação por uma classe política, não necessariamente proveniente do sistema, hoje o capitalismo tem apresentado, sem mediações, suas próprias representações para a “gerência” do Estado e seus interesses. Soma-se a isso o aprofundamento da crítica e apatia à democracia como sistema político vigente numa crise de representação e participação. A democracia representativa tem contado, cada vez, com menos adeptos entusiastas.
No entanto, é também nestes territórios, tendo referência principal os países do sul global, que tem emergido resistência e contestações tanto ao modelo econômico quanto a modelos políticos autoritários. Novas formas de interação, ação e organização surgem utilizando-se, principalmente, das redes e tecnologias sociais para transpor a participação do campo digital para o ativismo também nas ruas. As mulheres são a linha de frente nos processos destes territórios.
É neste sentido que o 8 de Março ganha contornos centrais.
Há muito, mulheres tem produzido e construído ação pelo entendimento de que não há luta emancipatória e anticapitalista sem as lutas estruturais contra o machismo e o racismo. Da compreensão de intelectuais militantes, como Audre Lorde, de que não há hierarquia de opressões, conjugando-se à teoria da interseccionalidade, mulheres tem construído lutas e ações contra opressões que perpassam todas as relações sociais e que se combinam, indissociadas, da opressão econômica.
Neste contexto que podemos pensar as lutas protagonizadas por mulheres no Brasil no último período e em como elas conectam-se a esta nova onda internacional de resistência feminista.
A esta emergência feminista conecta-se a emergência do feminismo negro. Articulando as lutas necessárias no país contra a ofensiva retrógrada do governo golpista de Michel Temer ao chamado internacional por uma mobilização de mulheres numa luta “contra ataques neoliberais” em escala global.
O Feminismo Negro e interseccional tem como ponto central a inter-relação das opressões, ou seja, não abre mão da luta contra a opressão econômica, mas aponta que estas se relacionam com outras. Se “raça informa classe e classe informa raça”, como bem dito por Angela Davis, está no âmago do Feminismo Negro e na atuação das mulheres de diversas etnias, como base na pirâmide das desigualdades, a luta geral e sistêmica. Em outras palavras, o Feminismo Negro em si é anticapitalista.
No Brasil, nenhuma discussão pode ser feita sem a relação com a questão racial. Foram 328 anos de período escravocrata, tendo os corpos negros desumanizados como a primeira mercadoria do país e sendo a economia da escravidão o sustentáculo da economia brasileira. Além disso, a própria formação de identidade nacional surge a partir das divergências entre a elite portuguesa, que chega ao país fugindo das tropas napoleônicas, e a elite local em torno da abolição da escravidão. Ou seja, a nossa ideia de brasilidade e nação é construída a partir da divergência pela permanência da escravização de negros no país. Isto não é pouca coisa. Assim também deve centrar as discussões e luta política com o 8 de Março.
A luta contra a Reforma da Previdência é uma luta das mulheres negras
O mote de vários atos do Dia Internacional da Mulher este ano é a luta contra a Reforma da Previdência e pelo fim da violência. Algumas de nós pode não fazer a conexão direta entre estas pautas e a vida das mulheres negras, mas elas tem centralidade nas condições de vida da população negra brasileira.
A proposta de Reforma Previdência enviada pelo golpista Michel Temer ao Congresso poderia ser sintetizada como o fim do acesso à aposentadoria pela maioria trabalhadora, e negra, da população. Os impactos serão mínimos em curto prazo e desastrosos em médio e longo prazo. A proposta pretende fixar 25 anos de contribuição mínima e 49 anos de contribuição para acessar o sistema previdenciário com integralidade. Além disso, ela equipara a idade mínima para se aposentar.
Nesta proposta, as mulheres negras, base da pirâmide social e, portanto, recebendo os piores salários e ocupando os trabalhos mais precarizados, que significam ausência de carteira assinada, morrerão trabalhando. Os impactos desta precarização da vida já são visíveis. Segundo a pesquisa “Retratos da Desigualdade”, realizada pelo IPEA, enquanto que as mulheres brancas tinham a expectativa de vida em 73,8 anos, as mulheres negras tinham esta expectativa reduzida para 69,5 anos. Na diferenciação de inserção no mercado de trabalho, as mulheres negras também estão em desvantagem, sendo 66% das mulheres brancas inseridas no mercado, ao passo que 61% de mulheres negras estão inseridas (IBGE).
Mas a diferenciação também ocorre na qualidade destes postos de trabalho. Dos 6, 6 milhões de pessoas ocupando o trabalho doméstico, 92% são mulheres, destas, 61% são mulheres negras. (IBGE, 2011). Não é preciso dizer que a maioria deste contingente trabalha de modo informal. Outro fator que piora nossas vidas é a equiparação da idade mínima. São as mulheres as principais responsáveis pelo cuidado na sociedade patriarcal, isto acarreta em duplas e triplas jornadas de trabalho. A diferença tanto de tempo de contribuição quanto de idade mínima era um importante, se não o único, mecanismo que reconhecia esta divisão sexual do trabalho e, portanto, os efeitos do patriarcado na vida das mulheres.
O argumento utilizado é do déficit previdenciário. Uma falácia! O sistema previdenciário estava em equilíbrio com o crescimento econômico, portanto geração de postos de trabalho e contribuição, que garantia o crescimento das receitas. Além disso, ao indicar o déficit, o governo omite outras fontes de recursos destinados à previdência que, se contabilizadas, demonstram que o sistema é, na verdade, superavitário.
As desigualdades aumentam e aprofundam os riscos de violência. 59, 4% dos registros de violência doméstica na Central de Atendimento à Violência – Ligue 180 são de mulheres negras (2013). 62,8% das vítimas de morte materna são negras, uma situação que poderia ser perfeitamente evitada com acesso à informação e atenção no pré-natal e parto. (SIM/MS, 2012). As maioria das mulheres que afirmam ter passado por algum tipo de violência obstétrica também são mulheres negras, compondo 65, 9% dos dados (2014). Ainda, as mulheres negras tem duas vezes mais chances de serem assassinadas do que as mulheres brancas (MJ/2015), entre 2002 e 2013 houve um aumento de 54,2% dos homicídios de mulheres negras (ONU Mulheres e SPM/2015) e entre 2000 e 2014 houve crescimento de 567% da população carcerária feminina, sendo 68% de mulheres negras e em situação de prisão por crimes que poderiam, sem dúvidas, ter utilizadas alternativas penais que não o cárcere (MJ/2015).
Com a crise sistêmica que temos vivido em escala global, e com a ofensiva de retrocessos em mínimos direitos adquiridos com muita luta no Brasil com o pós-golpe, passamos por um momento no qual o descarte dos corpos negros, que seguem desumanizados, irá aprofundar-se.
O 8 de Março tem origens revolucionárias. A data foi escolhida em uma Conferência Internacional de Mulheres Socialistas para lembrar uma greve iniciada pelas mulheres russas por pão que iniciou o processo que culminou com a Revolução Bolchevique em 1917, sendo, no pós-guerra, adotado pela ONU. O Feminismo Negro, por sua vez, tem, como dito, um forte viés de luta anticapitalista dadas as condições de vida das mulheres negras no Brasil e no mundo.
Neste sentido, o 8 de Março é uma data de todas as mulheres, mas neste cenário de aprofundamento da exploração sexista, racista e capitalista, o Dia Internacional da Mulher tem forte relação e interesse para as mulheres negras.
Seguindo as formulações de grandes e importantes feministas negras como Angela Davis, Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez de que é preciso “Enegrecer o Feminismo”, este 8 de Março torna-se, diante de tantos ataques, fundamental para todas nós. Vamos enegrecer o 8 de Março lutando contra retrocessos sobre nossos corpos e vidas. Aposentadoria fica, Temer sai! Paramos pela vida das mulheres!
Juliana Borges é Feminista Negra. Pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia e Política. Foi Secretária Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013).