3 de outubro de 1941: vadiagem se torna contravenção

Código Penal do ano anterior havia tirado ociosidade do rol de crimes

Fac-símile do jornal A Noite, 1929

Guilherme Daroit

Infração penal por quase toda a existência do Brasil independente, a vadiagem voltaria à lista de transgressões em outubro de 1941. No terceiro dia daquele mês, o decreto-lei n. 3.688 do Estado Novo, que determinava as contravenções no país, listava novamente a ociosidade habitual entre os costumes passíveis de punição estatal. Criticada como forma de ataque racial, a medida perderia sua efetividade apenas meio século depois, com a Constituição Cidadã de 1988, mas segue vigente até hoje.

O decreto assinado por Getúlio Vargas retomava uma tradição interrompida pelo próprio ditador um ano antes. No fim de 1940, o código penal instituído pelo Estado Novo havia deixado a vadiagem de fora da lista de infrações pela primeira vez. Descrita como a ociosidade corriqueira de alguém apto ao trabalho mas sem renda, a vadiagem fora incluída tanto no Código Penal de 1830, o primeiro do Império, quanto no de 1890, o primeiro da República. Em 1941, no entanto, voltaria à lista de infrações de menor gravidade, com pena de quinze dias e três meses de prisão.

A criminalização da falta de atividade produtiva, porém, não era exclusividade tupiniquim. Na Europa, no início do capitalismo, a situação também era encarada como infração. Por lá, especialmente no berço da Revolução Industrial, o Reino Unido, o combate à vadiagem se sustentava na destinação forçada ao trabalho moderno dos camponeses expulsos das terras. A coerção, dessa forma, aumentava a mão de obra disponível para as indústrias, tornando-as viáveis.

No Brasil, porém, outro elemento ganharia em importância para a repetição do padrão. Por aqui, a questão racial prevaleceria, utilizando-se da legislação para a perseguição à população negra há pouco tornada livre. Em grande parte direcionada a atividades urbanas hoje classificadas como informais, os famosos “bicos”, os negros sofreriam a maior parte das punições por vadiagem, não conseguindo comprovar suas ocupações a policiais que, muitas vezes, eram os únicos julgadores da contravenção. Dado suas penas curtas, as infrações poucas vezes chegavam à Justiça.

Em muitas análises, é atribuído à legislação a cultura de cerco policial contínuo aos cidadãos negros, que se perpetuaria mesmo após a perda de eficácia do regramento. Ao mesmo tempo, é também atrelado ao decreto o costume de pessoas mais antigas de andar sempre com a carteira de trabalho a tiracolo – prova de sua ocupação laboral para eventuais embates com as forças de repressão.

Ainda que tenha entrado para a história como a “Lei da Vadiagem”, o decreto de Vargas na verdade elencava toda a sorte de infrações consideradas contravenções, com menor gravidade e punição do que os crimes propriamente ditos. Na legislação, entrariam a embriaguez em público, o jogo do bicho, a crueldade contra animais, o porte de armas e outras dezenas de situações, quase todas ainda vigentes até hoje.

Uma das poucas contravenções revertidas ao longo da história seria o da mendicância. O ato de pedir esmolas, punido com penas iguais à vadiagem, deixaria de ser uma infração apenas em 2009, encerrando tardiamente uma etapa da criminalização da pobreza no Brasil.

Já em relação à ociosidade, a previsão de punição à vadiagem jamais seria derrubada. A legislação perderia sua efetividade em 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã. Para a Justiça brasileira, a tipificação criminal do costume viola os princípios da carta magna vigente, e, dessa forma, não são mais acatados e julgados processos referentes ao tema.

Apesar disso, a infração segue listada na legislação. As últimas tentativas de mudança viriam em 2012, quando a Câmara Federal aprovaria a retirada da vadiagem do rol de contravenções, medida nunca referendada pelo Senado, e novamente em 2023, quando a iniciativa partiria da câmara alta. Tramitando em comissões, a proposta encontra-se parada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado desde então, estendendo a sobrevida da legislação.

Guilherme Daroit é jornalista e bacharel em Ciências Econômicas, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é diretor do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região

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