1888 e 2021: sobre escravidões e abolicionismos

Fotografia: Marc Ferrez/Instituto Moreira Salles

A nova agenda trabalhista deve assumir um caráter virtualmente neoabolicionista.

Luis Eduardo Soares Fontenelle

Fonte: Justificando
Data original da publicação: 19/11/2021

“(…) A proposta que se vai votar é inconstitucional, antieconomica e deshumana. E’ deshumana, porque deixa expostos á miseria e á morte os invalidos, os enfermos, os velhos, os orphãos e crianças abandonadas da raça que quer proteger, até hoje nas fazendas a cargo dos proprietarios, que, hoje arruinados e abandonados pelos trabalhadores validos, não poderão manter aquelles infelizes, por maiores que sejam os impulsos de uma caridade, que é conhecida e admirada por todos os que frequentam o interior do paiz (…)” 

(Senador Ricardo Ferraço, no relatório sobre a reforma trabalhista, apresentado em 23.05.2017; aprovada em julho, resultou na Lei 13.467/17, em vigor desde 11.11.2017).

“Assim, uma legislação trabalhista generosa, que é bem intencionada mas é alienada da realidade, vai prejudicar justamente os trabalhadores que visa proteger, restringindo a criação de vagas formais e o crescimento da renda via produtividade (…)” 

(Senador Ricardo Ferraço, no relatório sobre a reforma trabalhista, apresentado em 23.05.2017; aprovada em julho, resultou na Lei 13.467/17, em vigor desde 11.11.2017).

Novembro de 2021 marca o quarto aniversário de vigência da “reforma trabalhista” – dia 11 – e o centésimo ano de morte da Princesa Isabel – dia 14. Coincidência que convida à reflexão e um paralelo entre as agruras do trabalho nos Brasis imperial e contemporâneo.

Separadas por 129 anos, as duas afirmações acima transcritas obviamente se referem a circunstâncias muito diferentes, mas carregam na essência – e em alguns trechos, quase na literalidade – o mesmo intuito: usar o mito da proteção nociva como pretexto para justificar a defesa de retrocessos civilizatórios. No exemplo da Lei Áurea, como último suspiro de uma ordem prestes a cair. No caso da reforma trabalhista, para anunciar sua virtual restauração. 

Conectam-se, assim, dois Brasis, das elites liberal do século XXI e escravocrata do XIX, numa grande viagem em marcha-a-ré.

Viagem feita a bordo do clima de ódio e revanchismo político que, instalado em 2013, culminou no reducionismo da reforma “trabalhista” que mal passava de um conjunto de alterações legislativas desconexo, casuístico e restrito à CLT. Um retrocesso que finge ignorar a transformação do Direito do Trabalho a um sólido sistema, enobrecido pela construção que acompanhou a evolução da vida e das lutas sociais, incorporando normas internacionais, leis, convenções e acordos coletivos, jurisprudência e a própria disciplina direta pela Constituição que o consagra. 

Evolução que, iniciada em meados do século XIX, os escravistas brasileiros também tentaram desqualificar, resistindo o quanto puderam à imensa vaga, sendo afinal derrotados pelo que o papa Leão XIII, em 1891 – apenas três anos depois da sanção da Lei Áurea, reconheceria na encíclica Rerum Novarum“(…) A classe indigente (…), sem riquezas que a ponham a coberto das injustiças, conta principalmente com a proteção do Estado. Que o Estado se faça, pois, sob um particularíssimo título, a providência dos trabalhadores (…)” (grifo nosso). 

A jornada para trás continua, sequestrando consciências por expedientes antigos e modernos. A repetição do terrorismo retórico do discurso de Paulino de Sousa em 1888 e as seguidas advertências de que o País estaria condenado a uma grave crise, aliadas às mais sofisticadas técnicas de persuasão, incluindo risonhas – e risíveis – promessas de novos e áureos tempos de um suposto neoempreendedorismo, comerciais de TV atirando Carteiras de Trabalho ao fundo de gavetas, palestrantes eufóricos em seminários vislumbrando trabalhadores a “ostentarem” dezenas de anotações simultâneas; e até a invenção de um certo “Direito Empresarial do Trabalho”, comparável a um Direito do Consumidor para o Prestador de Serviço, ou a um Direito de Família do Pátrio Poder…

Nessa viagem, vale também recorrer ao revisionismo histórico. Rotular a CLT como um entrave ao desenvolvimento socioeconômico do País, e fazer esquecer o crescimento da primeira década e meia do século XXI, sob a égide dessa mesma Lei. O mesmo estratagema que o Senador Dantas denunciava, na sessão de 13 de maio de 1888, recordando a Lei do Ventre Livre, de 1871

“(…) dentro de espaço de 17 annos 800.000 escravos têm desapparecido do Brazil. Pois bem, senhores, é justamente neste periodo que se nota maior riqueza no paiz, grande augmento de trabalho e com elle maior producção, e, como consequencia, consideravel augmento na renda publica. Si, pois, este facto se deu; si foram estas as consequencias da diminuição, em mais de metade, do trabalho escravo, o que se deve esperar é que o desapparecimento de 600.000 creaturas escravas não produzirá a nossa ruina, antes augmentará a nossa prosperidade e o engrandecimento do Brazil, graças ao trabalho livre, ao trabalho nobilitado, o que não só levantará os creditos da nossa patria, como attrahirá para nós o estrangeiro, que encontrará no sólo fecundo e uberrimo deste paiz certas e inexcediveis vantagens”.

Não contente em trafegar de marcha-a-ré, a elite brasileira contemporânea não se acanha em pegar a contramão, dando as costas para as novas tendências internacionais. Apesar do alinhamento incondicional à política externa dos países centrais do capitalismo a partir de 2016, para efeito interno o Brasil resiste a aceitar a mudança de panorama, de modo semelhante à postura diante das pressões exercidas pelos ingleses pelo fim da escravidão, ao longo de boa parte do século XIX. 

A retomada da agenda anti-varguista, iniciada nos anos 1990 e de algum modo contida na década seguinte, ocorreria desta vez no cenário de rescaldo da profunda crise financeira de 2008 que, agravado pela pandemia, ameaça a sobrevivência dos Estados nacionais do centro do capitalismo liberal e impõe sua intervenção, com especial destaque para o mundo do trabalho. Renda mínima, redução de jornada, estabilidade no emprego, disciplina rígida do teletrabalho, reconhecimento do vínculo de emprego e outros direitos a trabalhadores por aplicativos, aqui e ali surgem novos exemplos de reconstrução e reforço da tutela jurídica do trabalhador hipossuficiente. 

No Brasil, contudo, a elite brasileira permanece atavicamente condicionada ao projeto capitalista periférico colonial, insistindo obsessivamente na tecla da falsa nocividade da proteção, cuja defasagem remonta aos anos 80 – escolha o leitor, se do século XIX ou XX…-, e resumida no mantra do “menos direitos, mais empregos”. Falta, talvez, uma nova “Bill Aberdeen”…

As transformações do conturbado século XX, decorrentes das guerras mundiais e da Guerra Fria, do choque do petróleo, das crises financeiras e das transformações radicais da tecnologia e dos processos produtivos, levaram à consolidação dos direitos humanos como pilares da ordem jurídica global, da consciência coletiva e da própria sobrevivência da humanidade. Como não poderia deixar de ser, repercutiram no próprio conceito de escravidão. Hoje, salvo em estado de completa alienação mental, não se encontra quem defenda abertamente a escravidão em seu sentido clássico. 

Mas a adaptação do capitalismo a essas mesmas transformações mudou também a expressão de sua característica opressiva, que ganhou contornos novos e mais sutis. A escravidão moderna opõe-se agora ao conceito do trabalho decente; agrega meios opressivos mais sofisticados aos métodos violentos do passado – nunca abandonados de todo, especialmente no campo -, mas continua a impingir, aos atuais trabalhadores, danos existenciais muito similares aos dos escravos nos 350 anos anteriores à Lei Áurea.

Sob tais premissas, o destino da retrógrada viagem não poderia ser outro. O desastre da reforma de 2017, notável antes mesmo da pandemia, consumou-se de forma implacável e tão previsível quanto o silêncio atual de seus entusiastas, quebrado apenas por uns poucos e pretensos caçadores de “ativismos”. Mas é perda de tempo exigir autocrítica. O que se espera é que todos aqueles sinceramente comprometidos com o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana assumam a dianteira no processo da necessária retomada.

A identificação entre as elites dos Brasis da escravatura clássica e o da precarização e do trabalho escravo moderno, revela que a aplicabilidade da reforma trabalhista, mais que pelo exame de sua constitucionalidade ou convencionalidade, ou pelas diferenças políticas e ideológicas com as quais se a enxergue, distingue e desafia os estudiosos e operadores do Direito no que há de mais essencial: humanismo, compaixão, generosidade. A legitimação da reforma de 2017 está na razão direta da normalização da perspectiva e das estratégias dos defensores do escravagismo do século XIX, e é dessa aceitação que derivam todos os equívocos conceituais da reforma atual. 

Assim como a escravidão clássica foi desnaturalizada e se tornou uma aberração ao senso comum, é preciso que o mesmo se faça quanto à escravidão moderna e a precarização, recorrendo às lições do movimento abolicionista e dos exemplos de coragem dos próprios escravos. Logo, não basta criar uma nova agenda que devolva a proteção jurídica aos trabalhadores, restaure as prerrogativas dos sindicatos e reconstrua as instituições públicas tutelares. Há de se agregar a esta pauta a consciência de que, tanto quanto a Lei Áurea significou o marco formal do fim da escravidão clássica, o retrocesso da reforma de 2017 contribui para institucionalizar uma escravidão moderna; deve, então, ser combatido com a mesma indignação que se voltou contra a primeira. 

Por tudo isto, a nova agenda trabalhista deve assumir um caráter virtualmente neoabolicionista: tão grande, veemente e acolhido pela sociedade civil quanto o movimento que marcou o século da Princesa Isabel. Tanto para derrotar o retrocesso, quanto para impedir que o ciclo secular e perverso jamais se repita.

Luis Eduardo Soares Fontenelle é Juiz do Trabalho do TRT-17 (ES) e membro da AJD.

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