Legislação encerraria possibilidade de ocupação, limitando opções de libertos e estrangeiros.

Guilherme Daroit
Abrindo as portas para o capitalismo, o Brasil teria, em setembro de 1850, a sua primeira legislação versando sobre a propriedade de terras. Discutida por quase uma década, a Lei de Terras encerraria o modelo vigente, assentado sobre sesmarias (doações) e posses (ocupações), determinando que os campos públicos só passariam a particulares por meio de venda. O regramento, ao mesmo tempo que criava um mercado de terras, tornava proibitivo aos escravos libertos e aos imigrantes possuírem seus quinhões, jogando-os para o trabalho assalariado em centros urbanos ou nos latifúndios – esses, por sua vez, regularizados pela mesma lei.
Apresentada ainda em 1843 por conselheiros do então imperador Dom Pedro II, a Lei de Terras teria tramitação lenta no Congresso até 1848, quando deputados e senadores finalmente começariam a entrar em acordo sobre pontos polêmicos do projeto. Duas propostas criticadas, a criação de um imposto sobre a propriedade rural e a possibilidade de expropriação das terras, seriam retiradas, abrindo caminho para a aprovação da lei em 18 de setembro de 1850, exatamente duas semanas após a promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico negreiro para o país.
A contemporaneidade das decisões não é apenas coincidência. À época, o território brasileiro era recortado por terras concedidas ou ocupadas, quase todas sem qualquer formalização, o que transformava o interior do país em um grande campo de batalhas sobre os limites dos terrenos. Por conta da falta de regularização, praticamente todos, fossem pequenos agricultores alimentando sua família, fossem grandes latifundiários, produzindo para exportação, viviam sob insegurança, correndo risco de verem suas terras confiscadas.
Havia, ainda, os sesmeiros, recebedores, do império português, de propriedades rurais em troca de sua colonização, mesmo que o sistema tenha sido abolido em julho de 1822, meses antes da Independência. Antes pela distância das novas sesmarias em relação ao litoral ocupado, e depois pelo fim das concessões, havia também um grande número de posseiros, que apenas ocupavam as terras virgens, fazendo nelas benfeitorias e, com isso, assumindo a sua titularidade.
O caos fundiário em um território continental permitia, portanto, que, a partir exclusivamente de seu trabalho, desbravando novas terras e as preparando para a agricultura, qualquer pessoa pudesse garantir um pedaço de chão. A abolição da escravatura, já no horizonte, tornava-se, então, um fator relevante para a adoção de um novo regramento, que fechasse a porta da subsistência tanto para os escravos libertos quanto para os imigrantes brancos que passavam a chegar ao Brasil, incentivados para substituir a mão de obra escravizada.
Dessa forma, capitaneados pelos grandes agricultores que ocupavam as cadeiras, Câmara e Senado aprovariam uma Lei de Terras que atendia aos desejos dos latifundiários. Pela legislação, a ocupação de território estava proibida, sujeita a multas e prisão. Não haveria mais forma de aquisição de terras devolutas que não fosse por meio da compra, organizada em leilões. Ao mesmo tempo, uma anistia geral seria concedida aos fazendeiros, fossem sesmeiros ou posseiros, garantindo a documentação de suas propriedades. Um dispositivo, entretanto, excluiria os pequenos agricultores da formalização, ao exigir taxas elevadíssimas para a regularização dos quinhões, que apenas os grandes proprietários conseguiriam absorver.
Com isso, a Lei de Terras criava as condições para o desenvolvimento do capitalismo na jovem nação. Evitando que pudessem ocupar terras devolutas, o regramento obrigava os imigrantes brancos a venderem sua força de trabalho, abastecendo as atividades econômicas que viam o ocaso da mão de obra escravizada. Os pequenos posseiros, sem condições de regularizarem suas terras, também se veriam destinados ao trabalho assalariado, aumentando o exército de trabalhadores pagos, especialmente dos cafezais. Ao mesmo tempo, limitando as mesmas opções para os escravos libertos, os jogava para as atividades secundárias dos centros urbanos.
A lei criava, além disso, um mercado de terras, até então inexistente. O alto preço cobrado pelo Império pelas terras devolutas, sempre à vista, dava, às propriedades já consolidadas, em geral melhor localizadas, valor ainda maior. Com suas terras formalizadas, os latifundiários anistiados passavam a poder vendê-las, ou mesmo fornecê-las em garantia para empréstimos. Antes contabilizada pelo número de escravos, as fortunas passavam a ser ancoradas em terras.
Ao fim e ao cabo, o regramento resistiria a diversos regimes, sofrendo sua primeira alteração significativa apenas em 1930. Após a Revolução daquele ano, o quinhão alvo de interesse público passaria a poder ser desapropriado, mediante indenização. Apenas mais de um século depois, em 1964, após outro golpe que alçaria os militares ao poder, uma nova legislação fundiária entraria em vigor, com a promulgação do Estatuto da Terra.
Guilherme Daroit é jornalista e bacharel em Ciências Econômicas, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é diretor do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre e Região.

