Cristina Pereira Vieceli
Um dos temas principais nos estudos sobre gênero e trabalho trata sobre a questão do uso do tempo. A forma como a sociedade capitalista se organiza é baseada na produção de mercadorias e aumento da taxa de lucro, por conseguinte, as relações humanas e a maneira como as pessoas vivem, acabam se subordinando à lógica do mercado. Por consequência, o tempo das pessoas, tanto cronológico como biológico, é controlado pelo modo de produção: tempo de ir ao trabalho, tempo de cuidar da casa, tempo de estudar, tempo de descansar e cuidar do corpo. Da mesma forma, a lógica de produção procura subordinar a própria reprodução da natureza – ao acelerarmos a produção de alimentos, a extração de minérios, a poluição do meio ambiente, por exemplo, sem destinar tempo para a sua renovação. Ainda que as mulheres e homens estejam subordinados à mesma lógica produtiva, a forma como os gêneros se relacionam com o uso do tempo é divergente e gera desigualdades.
O que diferencia o sistema capitalista de outros pretéritos, conforme Deddeca (2012)1, são três características principais: a primeira está relacionada com a compulsoriedade do trabalho a partir da monetização do consumo. A segunda diz respeito à capacidade de organização antecipada da produção e, por consequência, do tempo de trabalho, o que se intensificou com a difusão da energia elétrica. Por fim, a terceira característica está relacionada com a tensão na distribuição do tempo voltado para a produção de mercadorias e a reprodução da força de trabalho, já que o sistema não conseguiu nem estender as horas do dia além das 24h (ainda que diversas tecnologias tenham sido inventadas para que as tarefas sejam realizadas de forma concomitante), e tampouco não conseguiu eliminar o tempo necessário para a reprodução das pessoas. Ou seja, ainda precisamos, depois de uma longa jornada de trabalho, descansar, nos alimentar, além de afeto, carinho e outros cuidados. A tensão entre produção e reprodução foi historicamente bandeira de luta da classe trabalhadora, reivindicando a redução da jornada de trabalho, o fim do trabalho infantil, e leis de proteção à maternidade.
Outra característica que marca o sistema capitalista, apontada pela literatura feminista2, e que está relacionada com o controle do tempo, é a forma como a mulher foi proletarizada. Essa dinâmica é essencial para entender a inserção feminina, não só no mercado de trabalho, como também o seu papel na família. A proletarização da mulher ocorreu de forma diferente da masculina, porque, na passagem para a sociedade de mercado e monetizada, somente as mercadorias trocadas por dinheiro passaram a ser consideradas como parte da economia, excluindo, por conseguinte, a esfera doméstica. O trabalho realizado nos domicílios, exercido principalmente pelas mulheres, ainda que essencial para garantir a reprodução e manutenção de trabalhadores para o sistema, passou a ser invisibilizado. A garantia que as mulheres permanecessem trabalhando de forma gratuita para a manutenção da sociedade ocorreu por meio do rebaixamento salarial, e, por consequência, sua subordinação ao homem, através do contrato de casamento, mas também por um aparato simbólico e institucional, que define os papéis de homens e mulheres na sociedade, segundo Federici3 (2019 p. 44).
Devemos admitir que o capital tem sido muito bem-sucedido em esconder nosso trabalho. Ele criou uma verdadeira obra-prima à custa das mulheres. Ao negar um salário ao trabalho doméstico e transformá-lo em um ato de amor, o capital matou dois coelhos com uma cajadada só. Primeiramente, ele obteve uma enorme quantidade de trabalho quase de graça e assegurou-se de que as mulheres, longe de lutar contra essa situação, procurariam esse trabalho como se fosse a melhor coisa da vida (as palavras mágicas “sim querida, você é uma mulher de verdade”). Ao mesmo tempo, o capital também disciplinou o homem trabalhador, ao tornar “sua” mulher dependente de seu trabalho e de seu salário, e o aprisionou nessa disciplina, dando-lhe uma criada, depois de ele próprio trabalhar bastante na fábrica ou no escritório.
As mulheres, por conseguinte, são penalizadas com a falta tanto de recursos monetários, como também de tempo. Essa característica pode ser evidenciada a partir das pesquisas sobre uso do tempo, realizadas em diversos países do mundo. Atualmente, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que há, no mundo, 117 pesquisas em 94 países realizadas por meio de diversas metodologias. A América Latina possui dados compilados pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). Em relação aos dados desta região, constata-se que, do total dos países analisados, em todos eles o tempo de trabalho destinado às atividades não remuneradas pelas mulheres é superior à masculina, chegando a uma diferença máxima de 30,3 horas a mais para as mulheres na Guatemala, em média a diferença permanece em 21,6 horas, conforme a Tabela 1.
Tabela 1 – Tempo de trabalho semanal remunerado, não remunerado e total, por homens e mulheres por países da América Latina
A jornada superior das mulheres para as atividades não remuneradas as penaliza em relação ao tempo voltado para o mercado, o tempo médio masculino voltado para as atividades remuneradas supera o feminino em todos os países – os homens destinam em média 19 horas a mais que as mulheres para essas atividades. Ao somarmos as duas jornadas, tanto a voltada para o mercado, quanto a não remunerada, a jornada total das mulheres supera a dos homens em boa parte dos países – 11 das 16 economias analisadas (TABELA 1).
A sobrecarga de trabalhos domésticos dentre as mulheres, por conseguinte, as penaliza tanto por disponibilizarem menos tempo às atividades remuneradas, como também por estender suas jornadas de trabalhos totais. A jornada média total das mulheres no Chile, México e Peru, por exemplo, alcançou 61,9 horas, 62,4 horas, e 62,5 horas, respectivamente, e, em todos eles, superou a média masculina. Além de termos menos tempo para as atividades remuneradas, a pobreza de tempo feminina impacta nas horas destinadas ao lazer e as atividades de cuidados pessoais.
Considerando as desigualdades, o movimento feminista historicamente luta para que sejam implementadas políticas públicas, tanto para compensar as jornadas remuneradas e não remuneradas diferenciadas entre homens e mulheres, como também para visibilizar o trabalho doméstico não remunerado, e, por consequência viabilizar a manutenção da reprodução social. Dentre as quais, a ampliação da oferta de escolas de educação infantil, licenças parentais, equilibrando o tempo de trabalho masculino e feminino no cuidado das crianças, aposentadorias diferenciadas entre homens e mulheres.
No Brasil, os direitos das mulheres, relativos à autonomia econômica, sobre sua sexualidade e escolhas reprodutivas são incipientes e ainda bastante restritivos. A exemplo disso, somente em 1962 foi garantido às mulheres casadas o direito à capacidade civil plena, através da Lei n.4.121, conhecida como Estatuto da Mulher casada, o homem permaneceu reconhecido como “chefe da sociedade conjugal”, mas a partir daquele ano, com “colaboração da mulher”. Antes do Estatuto, era vigente o Código Civil de 1916, pelo qual a mulher era definida como incapaz, ou seja, era necessário a autorização do marido para que ela pudesse trabalhar, abrir contas em bancos e fazer transações comerciais. Somente em 1977 as mulheres conquistaram direitos iguais de propriedade e nesse mesmo ano, foi aprovada a lei do divórcio4. Em relação aos direitos reprodutivos, as brasileiras ainda não têm assegurado pelo sistema público, nem a gravidez segura, tampouco a garantia ao aborto legal, conforme descrito em coluna anterior5. Acerca da licença maternidade e paternidade, as mulheres que possuem carteira assinada têm garantida 120 dias pagos, podendo ser estendido para 180 dias pelo programa empresa cidadã, enquanto os homens possuem cinco dias corridos, podendo ser estendido para 20 pelo mesmo programa.
Ou seja, a legislação brasileira reforça o papel doméstico e maternal da mulher, bem como cerceia suas decisões sobre a sexualidade, constrangendo o seu tempo de trabalho produtivo e voltado para a reprodução. Essa característica se agrava com o avanço das diferentes formas de flexibilização do trabalho (seja reduzindo e fracionando o tempo, seja aumentando a jornada). É o caso da ampla reforma na legislação trabalhista, promulgada pelo governo Temer em 2017 (Lei 13.467), que, dentre outras mudanças, instituiu diversas novas modalidades de contratação como a intermitente, e a recente Medida Provisória 905, que amplia a jornada de trabalho para a categoria bancária, e libera o trabalho aos domingos e feriados6.
Com a justificativa de criar mais empregos, o governo possibilita aos empregadores diminuírem os custos com folha de pagamentos. Essas medidas foram tomadas em um ambiente de esvaziamento do diálogo e enfraquecimento da democracia e das representações da classe trabalhadora. Como consequência, possivelmente haverá, por um lado, ampliação do desemprego, com a destruição de postos formais, e, por outro, a ampliação do tempo de trabalho, seja produtivo como reprodutivo, impactando principalmente sobre a autonomia das mulheres.
Notas:
1 https://www.ie.ufrj.br/aparte/pdfs/nota_tecnica_tempo_trabalho_e_genero.pdf
2 Sobre a questão da passagem do sistema feudal para o capitalista e a proletarização feminina ver: FEDERICI S. O calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017.
Em relação à subordinação feminina ao contrato de casamento, ver PATEMEN, C. O contrato sexual. São Paulo: Paz e Terra
3 Federici S. O ponto zero da revolução. Trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.
4 BIROLI, F. Gênero e Desigualdades, limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2017.
5 https://www.dmtemdebate.com.br/e-pela-vida-das-mulheres/
6 Para saber mais sobre o tema ler NT 2015 – Dieese: https://radiopeaobrasil.com.br/wp-content/uploads/2019/11/DIEESE-Nota-T%C3%A9cnica-n%C3%BAmero-215-a-MP-905_2019.pdf
Cristina Pereira Vieceli é economista, mestre e doutoranda em economia pela FCE/UFRGS, foi pesquisadora visitante do Centro de Pesquisas de Gênero na York University – Toronto. Atualmente é técnica licenciada do Dieese, bolsista do CNPQ, colunista do site DMT e integra o coletivo Movimento Economia Pró-Gente.