Vocês não estavam aqui

Fotografia: Zeitgeist Films

Se é possível aprender alguma coisa com “Você não estava aqui”, é que a capacidade transformadora do indivíduo se limita a tentar minimizar os custos físicos e emocionais de um trabalho insalubre sobre ele mesmo e as pessoas próximas de sua convivência.

Henrique Weiss

Em meio a uma paisagem recheada de caixas de papelão, envelopes, vans brancas e scanners, Ken Loach retrata os efeitos do trabalho para além da realização do trabalho no filme “Você não estava aqui”. No mundo todo, o incerto, o arriscado, o sem direitos é vendido como o melhor caminho possível à “boa” vida do consumo – a ideia tradicional de emprego estaria ultrapassada. Como acontece com todas as questões da vida real, esta não é nem uma plena verdade, nem uma plena mentira.

O filme britânico retrata uma realidade que se torna especialmente cruel quando aplicada ao contexto brasileiro. Em um país onde a estrutura formal de empregos é minguante e frágil, e a medida dos salários pode ser usada como indicador direto da desigualdade e da miséria, é fácil vender a ideia de empresário de si mesmo como um modelo para uma vida melhor. 

A matemática para fechar a conta impõe a quem trabalha os custos e riscos da realização de seu próprio trabalho; a empresa contratante – que não se assume dessa forma – apenas se posiciona como um intermediário entre a oferta e a demanda. É preciso lidar com os custos da van para as entregas, da bicicleta ou do carro para levar os passageiros. Mesmo assim, dirigir ou pedalar durante mais de 12 horas diárias vem se tornando um atrativo para uma quantidade cada vez maior de brasileiros e brasileiras. Por quê?

Em 1914, Henry Ford havia entendido que a exploração deveria extrapolar a fábrica. Era necessário uma massa de trabalhadores-consumidores tranquilizados com a promessa de bem estar material e que isto seria suficiente para uma boa vida. O dia se dividiria em três porções: 8 horas para dormir, 8 para trabalhar e 8 para consumir.

Em 2020, esta dinâmica está cada vez mais em migalhas. Não que a jornada de 8 horas vinculada a direitos trabalhistas tenha sido a realidade da maior parte das pessoas – talvez no contexto britânico onde se passa o filme, consideravelmente diferente do brasileiro -, mas era ao menos um horizonte, algo compreendido como positivo e necessário buscar. As 8 horas de trabalho já se tornam 10, 12, 16… e não são raros os casos que ultrapassam esses números.

Ainda não existe uma resposta conclusiva sobre o porquê de tanta gente simplesmente naturalizar jornadas de trabalho que beiram o limite da capacidade humana – tanto pelas exigências temporais quanto físicas. Talvez seja um mecanismo necessário de autoconvencimento para manter um mínimo de sanidade mental, talvez seja apenas um entendimento de que “é assim que funciona”; mas, de fato, a carga horária parece não ser algo identificado como um grande problema. É ao investigar essa questão que começa a profundidade da produção de Loach.

O inquietante e real do filme é demonstrar não só o trabalho em si, mas os efeitos afetivos e físicos deste. Assistindo ao filme enquanto pesquisador do trabalho mediado por aplicativos, se fez visível no protagonista Ricky a mesma esperança e empolgação inicial que afeta os entregadores-ciclistas vinculados a aplicativos. “Fulano ganha 200 libras por dia”, fala um companheiro de trabalho ao personagem; este faz as contas e logo conclui que será fácil realizar todos os desejos até então destroçados pelas intermináveis crises do século XXI. A repetição de diálogos assim como esse é cotidiana entre jovens montados em suas bicicletas nas praças e ruas brasileiras.

A dimensão material é uma das vertentes desse convencimento, se impondo por meio da baixa remuneração de outras atividades e da necessidade em sustentar a própria vida. Entretanto, uma dimensão simbólica também tem efeito profundo: o sentir-se livre para realizar o trabalho da sua forma, com os seus horários, recebendo pelo seu esforço. A versão mais sofisticada da arapuca do mérito.

Num Brasil onde doze milhões de pessoas estão desempregadas e metade da população vive com menos de 413 reais por mês, essas duas dimensões se fundem. Ganhos acima de dois mil reais mensais e uma suposta liberdade ao pedalar uma bicicleta durante doze horas sem um patrão, acabam por se tornar condições tentadoras.

Um resumo do pensamento emerge do relato de um entrevistado: “Ficam desempregados, apavorados… aí tá ali, tem uma bicicletinha e uma bag: é só pegar e pedalar, mano! Coisa mais fácil que existe no mundo. […] E ganha melhor do que qualquer louco que tá na rua aí!”. Termina a fala explicando como a sua esposa trabalha em uma loja de forma exaustiva, ganhando metade do que é possível ganhar no mesmo período fazendo entregas.

Dentro dessas contradições do trabalho e as suas implicações práticas, se faz importante compreender que nem tudo é tão simples quanto parece. As condições estruturais acabam por estruturar de forma ainda mais profunda uma dinâmica onde condições de trabalho absurdas ganham status de normalidade e de potência para o êxito: agora qualquer um pode trabalhar e tudo depende do seu esforço pessoal. O responsável e culpado pelo sucesso individual é cada vez mais o indivíduo – e não o conjunto da organização e da estrutura social.

Se é possível aprender alguma coisa com “Você não estava aqui”, é que a capacidade transformadora do indivíduo se limita a tentar minimizar os custos físicos e emocionais de um trabalho insalubre sobre ele mesmo e as pessoas próximas de sua convivência. Para compreendermos as relações contemporâneas de trabalho e termos a possibilidade de transformá-las, é necessário o entendimento de que a realidade retratada no filme existe num plural crescente, e que somente movimentos coletivos podem libertar o indivíduo da crença de que o bem viver se dá de forma individual.

Henrique Weiss é  aluno do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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