Muitos de nós nos sentimos exaustos e insuficientes, sem alegria no trabalho e nos culpando por nossa suposta preguiça. Mas não somos preguiçosos – apenas vivemos sob um sistema econômico que quer extrair mais e mais trabalho de nós.
Chuck McKeever
Fonte: Jacobin Brasil
Tradução: Deborah Almeida e David Guapindaia
Data original da publicação: 16/02/2021
Em seu novo livro Laziness Does Not Exist (“A Preguiça Não Existe”), o psicólogo social Dr. Devon Price procura explicar aos leitores que seu cansaço, seus sentimentos de inadequação e sua falta de alegria em seu trabalho não nascem de suas próprias falhas morais, mas são as consequências inevitáveis de viver e trabalhar sob o capitalismo. (Foto: Sam Solomon / Unsplash)
No romance de George Saunders de 2017, Lincoln in the Bardo, o filho de Abraham Lincoln, Willie, morre e vai para uma espécie de purgatório ao lado das almas de outras pessoas que, como Willie, não sabem ou não podem admitir que estão mortos. A história culmina com a percepção de Willie, ao testemunhar seu próprio funeral e a dor que mudou a vida de seu pai, que ele de fato havia morrido. Sua corajosa recusa em se esconder desse fato acaba por libertá-lo e a todas as outras almas no limbo.
“‘Você não está doente’, disse [Willie].
‘Pare de falar’, disse o Sr. Vollman. ‘Você vai gentilmente parar de falar agora’.
‘Há um nome para o que nos aflige’, disse [Willie]. ‘Você não percebeu? Você realmente não sabe?… Morto’, disse o menino. ‘Pessoal, estamos mortos!’”
No mundo de Willie Lincoln e de outras almas torturadas conjurado por Saunders, é apenas reconhecendo e dando nome à sua condição que eles podem se libertar. Se eles não souberem o que os aflige, ficarão presos em um presente eterno e sem esperança.
Para muitos trabalhadores sob o capitalismo, o problema é o mesmo. Nós não temos um nome para o que nos aflige, e acreditamos que estamos apenas temporariamente presos à uma situação ao invés de que somos perpetuamente explorados. Se não somos capazes de nomear e confrontar aquilo que nos aflige, carecemos da primeira ferramenta fundamental para nos libertar. As tentativas de explicar esse problema às pessoas poderiam encher bibliotecas inteiras de textos marxistas e servem como razão de existência para publicações como esta. Onde você teria menos probabilidade de encontrar tal explicação é a seção de autoajuda na sua livraria local.
Isso mudou com Laziness Does Not Exist (“A Preguiça Não Existe”), em que o psicólogo social, Dr. Devon Price, procura explicar aos leitores que seu cansaço, seus sentimentos de inadequação e sua falta de alegria em seu trabalho não nascem de suas próprias falhas morais, mas são as consequências inevitáveis de viver e trabalhar sob o capitalismo. Livros de autoajuda, via de regra, existem para pregar aos leitores que eles podem e devem fazer mais: mais trabalho, mais exercícios, mais autocuidado, mais auto-suporte. Nossas vidas podem ser transformadas, nos dizem esses livros, através de melhores escolhas individuais.
Price adota uma abordagem diferente, postulando que toda a lógica da autoajuda corre no sentido contrário da realidade. Não somos infelizes porque não trabalhamos duro o suficiente pela felicidade, somos infelizes porque todos trabalhamos muito em tudo. Além do mais, ninguém parece acreditar nisso, incluindo nós mesmos.
Price se concentra especificamente em um aspecto desse fenômeno, o que eles chamam de “A Mentira da Preguiça”. De acordo com Price, a mentira da preguiça tem três princípios centrais: nosso valor é nossa produtividade; não podemos confiar em nossos próprios sentimentos e limites; e sempre há mais que poderíamos estar fazendo.
Nós internalizamos essa lógica a tal ponto que aprendemos a acreditar que “nossas habilidades e talentos não pertencem realmente a nós; eles existem para serem usados. Se não doamos com prazer nosso tempo, nossos talentos e até mesmo nossas vidas para os outros, não somos heróicos ou bons.” E certamente estamos mais suscetíveis a sermos despedidos.
O nascimento da “preguiça”
De onde vem esse sistema de crenças? Price (com quem, para ser franco, me correspondi sobre as ideias do livro ao longo dos anos, mas nunca encontrei pessoalmente) traça a mentira da preguiça ao longo da história estadunidense, revelando suas raízes no cristianismo dos colonos do país e sua utilidade na racionalização da escravidão, servidão contratada e trabalho infantil. Na época da revolução industrial, escreve Price: “a preguiça tornou-se oficialmente não apenas uma falha pessoal, mas um mal social a ser derrotado – e assim permaneceu desde então”.
Parece apropriado que os Estados Unidos tenham acabado de eleger um presidente que fez campanha em parte com base na ideia de que os millennials não merecem empatia pela miséria de sua geração e que encerrou uma questão política incisiva de um participante em uma reunião aberta o desafiando para uma competição de flexões de braço. Obviamente, a ideia de que pessoas com dificuldades não merecem simpatia é besteira. O fato do novo presidente zombar de pessoas arruinadas por uma crise de dívidas que ele ajudou a arquitetar em sua longa carreira como defensor dos banqueiros no Senado dos EUA é apenas uma crueldade extra espalhada por cima do resto. Mas mesmo o mais experiente socialista que odeia Biden não está imune aos modos como essas atitudes se infiltram em nossas vidas e em nossas atitudes em relação a nós mesmos e aos outros.
O capitalismo exige que funcionemos em um estado constante de “aceleração” no trabalho, precisando amontoar cada vez mais atividades nas horas que passamos acordados, independentemente de nossa eficiência ou produtividade real. O que Price chama de “Mentira da Preguiça” é na verdade essa demanda por “velocidade” levada ao seu extremo inevitável, de modo que permeia todos os aspectos da vida de uma pessoa dentro ou fora do horário de trabalho.
Repetimos e ratificamos a lógica de nossos chefes em nossas próprias vidas por meio das redes sociais e outras vias onde se espera que a “agitação” nunca tenha fim, mesmo em casa. A cultura dos influenciadores, na visão de Price, amplificou a “mentira da preguiça”: nossas refeições devem ser dignas do Instagram; nossos espaços de vida minimalistas e arrumados; nossos corpos bem tonificados e bem vestidos. Como resultado, tratamos o sobrepeso, a falta de “bom gosto”, estar fora dos padrões e outras imperfeições aparentes como desprezíveis, e não como formas normais de existência.
Perversamente, esse fenômeno pode até mesmo absorver seu aparente oposto. Nenhum feed de Instagram de influencers está completo sem um punhado de postagens confessionais. Olha só, hoje foi um dia difícil, sou abençoado por esta vida, mas não é tão glamorosa quanto parece. Só que tenho que continuar sorrindo … Essas ofertas humanizadoras não desmantelam a lógica da cultura da agitação, elas a reforçam – porque a conclusão implícita em cada uma delas é… e mesmo assim estou me levantando e fazendo isso todos os dias, então por que você não faz o mesmo?
As demandas incessantes colocadas sobre nós por nossa própria crença neste mito pernicioso – e as expectativas concomitantes de sermos um amigo aberto e disponível, um membro da sociedade com consciência política e social, um parceiro romântico generoso e comprometido e assim por diante – se combinam para colocar um peso esmagador sobre quase todo mundo que trabalha para viver.
Price relata anedotas e dados sobre as maneiras como determinadas populações, como pessoas com transtornos mentais, são agravadamente prejudicadas por nosso desprezo social pela preguiça. Mas sua análise também inclui o dano causado àqueles que não possuem barreiras particularmente notáveis e que ainda assim não se destacam como alunos, funcionários ou eleitores. Em outras palavras, o mito da preguiça fere a grande maioria de nós.
A preguiça é falsa, a privação de direitos é real
Éa privação de direitos, não a preguiça, argumenta Price, que faz com que até mesmo pessoas relativamente saudáveis se mantenham distante de desafios e se afastem do mundo. Se não vemos sentido em nossos trabalhos escolares ou qualquer significado nos empregos para os quais pensamos nos candidatar, provavelmente não vamos concluir essas tarefas.
Em um país como os EUA, onde as eleições ocorrem durante a semana, em um dia de trabalho normal, se não votamos, mesmo quando pressionados por outros sobre o cumprimento de nosso dever cívico, não é por sermos preguiçosos demais nos preocupar – provavelmente tivemos de trabalhar naquele dia e não tínhamos energia para entrar na fila das urnas por algumas horas depois disso (para não falar das opções lamentáveis nos sendo oferecidas nas urnas, embora Price não mencione isso).
Além de tudo isso, a maioria das outras pessoas que conhecemos também está passando por alguma versão desses problemas, o que significa que as demandas exaustivas sobre o nosso tempo não terminam quando nossas obrigações profissionais ou acadêmicas terminam. Precisamos de ajuda, assim como nossos amigos e familiares, e todos estamos usando uns aos outros para isso.
Um texto mais explicitamente socialista provavelmente desdobraria esses mesmos fenômenos como produtos da alienação capitalista, não apenas uma forma geral de privação de direitos. Mas Price não se apoiou nas camadas mais óbvias da classe trabalhadora para apresentar a maior parte de seus argumentos (embora trabalhadores de varejo, profissionais de saúde e bartenders apareçam em suas entrevistas).
Em vez disso, obtemos um grupo diversificado de pessoas cujo tempo não é delas, desde pessoas sem teto, passando por estudantes de pós-graduação sobrecarregados, e chegando em streamers semiprofissionais e mães que ainda estão se perguntando se podem mesmo “ter tudo“, sem precisar abdicar de suas carreiras ou da experiência da maternidade.
Embora as histórias e as condições variem, um único fio percorre todas elas: ninguém realmente escapou do desgosto consigo mesmo e de outros comportamentos prejudiciais que absorvemos ao tentar trabalhar e sobreviver em uma sociedade capitalista. Price descreve corretamente a normalização do excesso de trabalho como uma crise de saúde pública, e suas entrevistas confirmam esse diagnóstico – casamentos, futuros brilhantes e, no caso de um entrevistado memorável que estava tão sobrecarregado de trabalho que começou a vomitar sangue, órgãos internos foram todos danificados pela incapacidade dos trabalhadores de dizer não às demandas de uma sociedade capitalista.
Nesse sentido, o livro é meio que uma raposa no galinheiro: Price diz aos leitores que não estamos sozinhos em nos sentirmos profundamente maltratados e doentes por causa das demandas de nossa economia e cultura, e torna seus argumentos radicais amplamente atraentes ao lançar sua rede em um poço tão variado de entrevistas. (Também não faz mal que o título do livro seja ambíguo o suficiente para disfarçar sua intenção. Se sua chefe visse você o lendo, poderia considerá-lo um funcionário especialmente motivado em busca de dicas sobre como parar de procrastinar.)
Ação coletiva, e não “autoajuda”
Esse truque de A Preguiça Não Existe – existir como um manifesto anticapitalista posando como livro de autoajuda – deixa Price em uma sinuca de bico. Os livros de autoajuda são, por natureza, dedicados à melhoria – bem, no caso, à melhoria de si mesmo. No entanto, a transformação social em grande escala necessária para libertar o mundo sobrecarregado pelo capitalismo só pode ocorrer por meio de uma ação de massa organizada e sustentada.
Price está nitidamente ciente dessa contradição, já que uma das correntes do livro é sobre como poucos e preciosos indivíduos são capazes de manter qualquer coisa semelhante a uma vida decente sob as demandas do capitalismo, muito menos salvar o mundo.
Este não é um livro projetado para ensinar os estadunidenses oprimidos como se livrar do jugo de seus exploradores, embora Price repetidamente conecte a ação coletiva no local de trabalho e a sindicalização como ferramentas. Em vez disso, A Preguiça Não Existe diz aos seus leitores, talvez pela primeira vez em suas vidas, que eles estão sendo explorados, e que há um nome para o que os aflige: “capitalismo”. E mesmo que as prescrições do livro sobre como desmontar sistemas inteiros sejam escassas, trata-se de um compêndio útil de anedotas, percepções e dados que podem ajudar mais pessoas a sobreviver sob esses sistemas.
“Às vezes”, opina Price, “a melhor coisa que pessoas boas podem fazer é se abrigar, cuidar umas das outras e sobreviver”. A simples sobrevivência não é suficiente para mudar o mundo, mas mudar o mundo exige que massas de pessoas entendam suas condições mais plenamente e tenham tempo e energia para lutar.
Esta é uma mudança drástica das ofertas habituais na seção de autoajuda, que geralmente começam do mesmo lugar – tudo bem você sentir o sente sobre a sua situação – mas seguem na direção oposta – e aqui está como superar esses sentimentos para ir produzir, ganhar e fazer mais!
A autoajuda não perpetua a ideologia capitalista apenas através da propagação do mito de que cada indivíduo seria capaz e responsável por mudar suas próprias condições. Ela o faz através da insistência de que o nosso próprio desejo humano de viver para algo diferente do trabalho seria simplesmente um desafio a ser superado.
Compare o livro de Price com dois recentes campeões de vendas de autoajuda de Rachel Hollis, Girl, Wash Your Face (“Menina, Lave o Rosto”) e Girl, Stop Apologizing (“Menina, Pare de Pedir Desculpas”), em que a autora “incentiva, diverte e até dá um chute na bunda, tudo para te convencer a fazer o que for preciso para cair na real … Porque você realmente pode viver com paixão e pressa.”
Ela “identifica as desculpas das quais devemos abrir mão, os comportamentos a adotar e as habilidades a adquirir no caminho para o crescimento, a confiança e a autoconfiança”. Hollis não está ensinando a seus leitores que seus sentimentos e experiências importam simplesmente porque eles são seres humanos com necessidades emocionais, mas que são importantes porque podem ser catalogados para uso ou descarte a serviço de suas ambições.
A ironia final de A Preguiça Não Existe é que ele pode na verdade ser uma ferramenta útil para os empregadores, já que contém resmas de pesquisas sobre como fazer as pessoas trabalharem menos na prática as faz trabalhar melhor – se não nos termos de seus chefes, pelo menos nos seus próprios termos. Abolir o excesso de trabalho e outras práticas abusivas pode aumentar a produtividade de muitas empresas e, certamente, a longevidade dos funcionários.
Mas o excesso de trabalho não se trata apenas de lucro ou produtividade, trata-se de controle. As empresas são incentivadas a controlar o máximo possível do tempo de um funcionário por aquilo que ele recebe, seja através da extensão da semana de trabalho assalariado para noites e fins de semana ou por meio da redução do tempo de descanso dos trabalhadores em meio à jornada diária.
A Preguiça Não Existe é o raro livro de autoajuda que entende a verdade básica de que a maioria dos nossos problemas não são de nossa própria criação e, portanto, não podem ser resolvidos individualmente. Assim, Price não promete ferramentas para a salvação, mas ferramentas para a sobrevivência e permissão para perdoar a si mesmo por não ser capaz de mudar o mundo sozinho.
Não pode haver uma verdadeira “autoajuda” sem trabalho coletivo para compreender e desmantelar o sistema sob o qual todos trabalhamos. Como a morte em Lincoln in the Bardo, devemos ser capazes de nomear aquilo que nos aflige antes de podermos nos libertar: é “capitalismo”, não “preguiça”.
Chuck McKeever é um professor e escritor de Seattle, Estados Unidos.