Vale mais do que pesa

Uma pequena fileira de camionetas com logotipo da prefeitura paulistana se perfila diante de um galpão de 900 metros quadrados às margens do Rio Tietê, em São Paulo, quase invisível, atrás do muro alto caiado, para o trânsito da via expressa. Ao entrar, os caminhões despejam enormes sacos brancos que, empilhados, atingem quase 3 metros de altura e conferem um aspecto de paisagem lunar ao terreno. Eles trazem material reciclado oriundo dos chamados PEVs, os pontos de entrega voluntária, para serem triados e reenviados para centrais de reciclagem.

Diante do galpão, a organização não é rígida. É difícil distinguir o espaço destinado ao material bruto, aos resíduos já separados e aos fardos de papelão, isopor ou plástico prontos para reciclar. A aparente confusão não existe aos olhos dos quase 70 membros da cooperativa Viva Bem, que se ocupam do conteúdo dos sacos. São resíduos recicláveis, a maior parte obtida por meio de convênios com empresas. O material é levado para duas esteiras, triado, prensado e vendido a centrais de reciclagem. Os cooperados são parte dos entre 300 mil e 1 milhão de pessoas no Brasil que trabalham com a recuperação de resíduos recicláveis, como carroceiros das grandes cidades, catadores nos lixões e separadores nas mesas de triagem. Após décadas de mobilização, só em 2010 esses trabalhadores foram oficialmente contemplados pela legislação. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) publicado ano passado, 90% da recuperação de resíduos recicláveis no Brasil são fruto do trabalho de catadores, gerando uma movimentação que o Ipea calcula entre R$ 1,4 bilhão e R$ 3,3 bilhões.

O reconhecimento do trabalho dos catadores está em diversos pontos da Lei nº 12.305/2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Segundo o catador Ronei Alves, que preside a Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis do Distrito Federal (Centcoop-DF), esse reconhecimento dependeu de muita pressão sobre as Comissões de Constituição e Justiça do Senado e da Câmara dos Deputados entre 2006 e 2010. “O movimento está forte”, diz. “Agora estamos procurando nos especializar e estudar. Vários companheiros estão fazendo faculdade de Administração de Empresas, Gestão Ambiental e outras”, completa. Ele mesmo é estudante de Direito.

A maior ajuda que a sociedade pode dar é mandar o material limpo. “Não precisa lavar. Basta passar água”, diz consultor

A presença do catador na lei é interpretada e celebrada pelos ativistas e sindicalistas a partir de dois conceitos: a inserção social, por um lado, e o serviço ambiental que fornecem, por outro. Afinal, segundo dados referentes a 2008, também do Ipea, 32% do lixo produzido nas cidades é reciclável, a coleta seletiva se expandiu 120% na última década, mas não atinge mais de 18% dos municípios do País. Como resultado, diz o estudo, “mais de 90%, em massa, dos resíduos são destinados para a disposição final em aterros sanitários, aterros controlados e lixões [1], sendo os 10% restantes distribuídos entre unidades de compostagem, unidades de triagem e reciclagem, unidades de incineração, vazadouros em áreas alagadas e outros destinos”.

Enquanto isso, o serviço ambiental é o principal campo de batalha para os movimentos de catadores, a começar pelo Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Alves afirma que “a maior dificuldade é tirar essas determinações do papel. O governo federal pode dar todo o apoio que for, mas, quando se chega às prefeituras, que devem implementar as resoluções, as dificuldades são gigantescas”.

A lei que instituiu a PNRS determina que o catador deve estar presente em todas as etapas da logística reversa [2]. Hoje, lembra Alves, a responsabilidade pela reciclagem é compartilhada entre Estado e setor privado, mas ele reclama que as empresas só querem tomar atitudes que revertam em ganhos de imagem. Quanto ao poder público, ele estima que um sistema eficaz de limpeza para o Distrito Federal custaria R$ 80 milhões, mas “é mais fácil gastar R$ 2 bilhões em estádio”.

Uma iniciativa que visa usar um instrumento de mercado para dar corpo à determinação da lei de resíduos sólidos é o acordo entre o MNCR e a Bolsa Verde do Rio de Janeiro (BVRio), que criou uma plataforma virtual de negociação de créditos de logística reversa para empresas e catadores de todo o Brasil. O sistema é semelhante a outros mecanismos da bolsa carioca, como as transações com pneus ou créditos de reserva ambiental. Segundo Maurício de Moura Costa, diretor da BVRio, desde a promulgação da PNRS a instituição estuda a lei para entender como seria possível desenvolver um mecanismo desses e, em contato com a indústria e o movimento dos catadores, chegou ao formato dos créditos negociáveis em bolsa.

A vantagem do modelo de créditos é enfrentar um dos principais problemas na reciclagem: tanto para catadores como para empresas, os materiais têm valores muito díspares. Enquanto a garrafa pet vale em São Paulo cerca de R$ 1,70 por quilo, o papel misto é negociado a R$ 0,05. Com isso, o papel corre o risco de ser ignorado e não ir para a reciclagem.

É por isso que os movimentos de catadores reiteram a necessidade de remunerar o serviço prestado, não só o peso entregue. No sistema da Bolsa Verde, a logística reversa se faz por meio do serviço dos catadores, ao qual é atribuído um crédito semelhante aos créditos de carbono criados na esteira do Protocolo de Kyoto. “No mínimo, a venda desses créditos para as empresas será uma fonte de renda adicional”, diz Moura Costa.

A partir de outubro, prazo para início das operações da plataforma digital, quando uma cooperativa vender material para reciclagem, receberá uma nota fiscal com um determinado número de créditos correspondentes ao serviço de recuperação do material. Indústrias catalogadas na plataforma poderão adquiri-los para cumprir suas metas, a serem definidas em negociação em curso com o governo. “Os preços serão determinados pela oferta e a demanda”, diz o executivo.

Triagem Cotidiana

Os mecanismos de mercado ainda não chegaram ao dia a dia da maior parte dos catadores do Brasil. A cooperativa Viva Bem, citada no início, é uma das maiores de São Paulo e também uma das mais equipadas. A maioria das cooperativas não dispõe de esteira, quanto menos de duas. Nesse caso, a triagem é feita sobre uma mesa. A Viva Bem dispõe de três prensas e dois caminhões próprios, mas recebe material de outros 11 pertencentes à Prefeitura. Graças a essa estrutura, obtida a partir de convênios com institutos ligados a grandes empresas e à Prefeitura, a cooperativa gera uma receita entre R$ 80 mil e R$ 100 mil a cada mês.

Em muitos Estados, dificilmente um catador fatura mais que R$ 400 por mês. Férias remuneradas, como têm os cooperados da Viva Bem, exigem uma saúde financeira raramente atingida. Na cooperativa paulistana, os trabalhadores mais diligentes conseguem um rendimento mensal superior a R$ 2 mil, embora a média esteja entre R$ 1 mil e R$ 1,1 mil. Um catador, que circula apressado por entre as esteiras e mal se interrompe para falar com a reportagem, orgulha-se de faturar quase R$ 3 mil.

A remuneração varia segundo a produção. “Senão, a pessoa relaxa”, diz José Maria Batista, que coordena o trabalho externo, isto é, da chegada do material até o envio para as esteiras. Ele se vangloria da produtividade, que chega a 80 toneladas por mês por catador sob o sistema de remuneração variável, em oposição a 35 toneladas por quem ganha um valor fixo.

Apesar do estado relativamente avançado dessa cooperativa em particular, persistem problemas ligados ao profissionalismo incipiente. Atrasos e faltas sem justificativa passaram recentemente a ser punidos com rigor. Muitos catadores que trabalham na esteira rejeitam o uso de luvas, estimando que torna seu trabalho mais lento, o que é problemático para quem é pago por produtividade. Também há acidentes. Alguns são potencialmente graves. Em agosto, um rapaz, embora usasse luvas, feriu-se com uma agulha de seringa e foi enviado imediatamente para exames. Outros soam prosaicos. Uma pessoa que recolhia o material recém-chegado deixou cair uma lata. Ao recuperá-la, atirou-a com displicência e atingiu uma colega, que levou pontos na testa e tirou um dia de licença médica. O regime das esteiras é coordenado por Edileusa Conceição, que se tornou catadora nos anos 1990, quando estava desempregada e uma amiga sugeriu que fossem recolher materiais no lixão. Ficou lá por 14 anos. Mais tarde, trabalhou também como funcionária de uma empresa de reciclagem que, recentemente, decidiu se concentrar em negociar entulho, muito mais lucrativo.

Ela explica que organiza entre 12 e 14 pessoas para trabalhar em cada esteira, mas sempre há faltas. Quase todos os cooperados que trabalham nas esteiras são mulheres. “Os homens acham que não cai bem para eles, preferem ficar no apoio, trabalhos que exigem força”, ela explica. Cada pessoa na triagem é responsável por identificar e recolher três tipos de objeto reciclável. Com pausa para o almoço e duas outras menores para descanso, a triagem vai das 8h às 17h, com plantões alternados no fim de semana.

O engenheiro de produção Adriano Pimenta é consultor técnico da ITCP-FGV, incubadora de cooperativas da Fundação Getulio Vargas. Responsável pela interlocução com os cooperativados da Viva Bem e mais quatro cooperativas de catadores, ele explica que cerca de 30% do material que chega às esteiras não vai para a reciclagem. O rejeito é tão alto por dois motivos. Primeiro, a remuneração por produtividade leva os catadores a deixar passar peças pequenas e de baixo peso. Mas também, e isso é mais importante: muito material chega tão sujo que o torna inutilizável.

“A maior ajuda que a sociedade poderia dar seria mandar o material limpo”, diz Adriano. “Não precisa lavar direitinho. Basta passar água.” Nas esteiras, veem-se embalagens de comida congelada com o fundo coberto de molho apodrecido, garrafas de refrigerante e cerveja ainda com metade da bebida, guardanapos usados.

Para Moura Costa, um efeito benéfico da PNRS é incentivar a profissionalização dos catadores. Hoje, esses trabalhadores ainda dependem da ajuda do poder público para se manter minimamente rentáveis. O executivo diz que, para participar das negociações na plataforma ambiental, os catadores têm de fazer parte de cooperativas formais, o que incentivará os autônomos, hoje sem nenhuma proteção social, a entrarem para a formalidade.

Outro movimento na direção do profissionalismo está nas chamadas cooperativas de segundo grau. Essas cooperativas formam “redes de comercialização”, ao agregar as menores, que não têm capacidade de participar de etapas mais complexas da cadeia da logística reversa. “Esse universo é pulverizado, mas há tendência de agregação”, diz Moura Costa. “Com isso, as cooperativas incorporam cada vez mais etapas da reciclagem.”

Pimenta também sonha com um processo profissionalizado de gestão dos resíduos recicláveis. “Penso em um futuro no qual as cooperativas terão um engenheiro de produção contratado”, diz. “Mas, para chegar a esse nível, terão de estar consolidadas e participando de todas as etapas: a coleta, a triagem e a própria reciclagem.” Para o consultor, apesar da baixa formação técnica atual, os catadores estão em posição privilegiada para atingir esse nível de profissionalização. São verdadeiros educadores ambientais, sabem reconhecer tudo que é reciclável e ensinam empresas a preparar seu lixo para a reciclagem. “Hoje, já são indispensáveis.”

Notas

[1] Tecnicamente, aterro sanitário é uma estação de depósito de resíduos sólidos que evita toda contaminação do solo e da água, trata o chorume e queima o metano. O aterro controlado é um antigo lixão que sofreu ajustes para reduzir o impacto ambiental, queimando o metano e recolhendo o chorume. O lixão é uma área de despejo sem qualquer cuidado ambiental.

[2] Em termos simplificados, significa o fluxo de materiais do ponto final de consumo para o local de origem para reaproveitamento ou deposição em lugar seguro.

Fonte: Página 22, com ajustes
Texto: Diego Viana
Data original da publicação: 16/09/2013

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *