Divididos entre o medo da deflação e de tremores inflacionários, banqueiros centrais nas economias avançadas mais importantes estão escolhendo uma abordagem “espere e verá”. Somente uma reformulação progressista de suas ferramentas e objetivos pode ajudá-los a ter um papel pós-pandêmico socialmente útil.
Yanis Varoufakis
Fonte: Carta Maior, com Project Syndicate
Tradução: Isabela Palhares
Data original da publicação: 29/10/2021
Enquanto a pandemia do coronavírus recua nas economias avançadas, seus bancos centrais cada vez mais se assemelham com o provérbio do asno que, igualmente com fome e com sede, sucumbe pelos dois males por não conseguir escolher entre a água e o feno. Divididos entre o medo da deflação e de tremores inflacionários, legisladores escolheram uma abordagem de “espere e verá” que pode ser custosa. Somente uma reformulação progressista de suas ferramentas e objetivos pode ajudá-los a ter um papel pós-pandêmico socialmente útil.
Os banqueiros centrais já tiveram uma única alavanca política: as taxas de juros. Diminuíam para revitalizar uma economia enfraquecida; aumentavam para conter a inflação (frequentemente às custas da criação de uma recessão). Cronometrar essas movimentações, e decidir o quanto mover a alavanca, nunca foi fácil, mas ao menos só tinha uma movimentação a ser feita: movê-la para cima ou para baixo. Hoje, o trabalho dos banqueiros centrais tem o dobro de complicação, porque, desde 2009, eles têm duas alavancas para manipular.
Depois da crise financeira global de 2008, uma segunda alavanca se fez necessária, porque a original ficou emperrada: embora tenha sido abaixada o máximo possível, levando as taxas de juro a zero e, frequentemente, forçando-a para um território negativo, a economia continuou a estagnar. Seguindo o exemplo do Banco do Japão, os bancos centrais mais importantes (liderados pelo Federal Reserve dos EUA e pelo Banco da Inglaterra) criaram uma segunda alavanca, conhecida como flexibilização quantitativa (QE). Movê-la para cima criava dinheiro para adquirir ativos de bancos comerciais na esperança de que os bancos injetariam o novo dinheiro diretamente na economia real. Se a inflação aparecesse, tudo o que precisavam fazer era mover a alavanca para baixo e estreitar a compra de ativos.
Essa era a teoria. Agora que a inflação está no ar, os bancos centrais estão nervosos. Deveriam restringir a política?
Se não o fizerem, podem esperar a ignomínia sofrida pelos seus antecessores dos anos 1970, que permitiram que a inflação ficasse embutida na dinâmica de preço-salário. Mas se seguirem seus instintos e mudarem suas duas alavancas, afunilando a QE e aumentando modestamente as taxas de juros, eles correm o risco de desencadear duas crises de uma vez: uma fogueira de empregos, ao passo que as crescentes taxas de juros reduzem a demanda agregada e amortecem o investimento, e um colapso financeiro, ao passo que os mercados e corporações, viciados em dinheiro gratuito de QE e com mais dívidas do que podem arcar, entram em pânico com a perspectiva de retirada. O “pânico coletivo” de 2013, que ocorreu após o Fed meramente sugerir que iria conter a QE, será fichinha em comparação.
Os bancos centrais estão aterrorizados com esse cenário porque inutilizaria suas duas alavancas. Embora as taxas de juros possam subir, ainda haveria pouco espaço para reduzi-las. E quantidades politicamente proibitivas de QE seriam necessárias para ressuscitar mercados financeiros submersos. Então, os legisladores se sentam sobre suas mãos, emulando o asno que não conseguia decidir qual das suas duas necessidades era mais latente.
Mas pressupondo que as duas alavancas devem ser movidas sequencialmente e em tandem, o dilema dos bancos centrais considera um passado que não precisa ser repetido. Historicamente, é claro, a segunda alavanca, a QE, foi inventada somente após a primeira, as taxas de juros, parar de funcionar. Mas porque deveríamos presumir que com o aumento da inflação, a sequência deve ser agora revertida eliminando primeiro a QE e então aumentando as taxas de juros? Porque as duas alavancas não podem ser movidas simultaneamente e na mesma direção, sugerindo uma política monetária bifásica que aumenta as taxas de juros E a QE?
As taxas de juros deveriam de fato aumentar. Para que não esqueçamos, mesmo em tempos de taxas de juros oficiais zeradas, os 50% da base de distribuição de renda são inelegíveis para crédito barato e acabam pegando empréstimos com taxas exorbitantes por meio de empréstimos de curto prazo, cartões de crédito e empréstimos privados inseguros. Somente os ricos que se beneficiam das taxas de juros ultrabaixas. Em relação aos governos, enquanto taxas de juros oficiais baixas permitem que eles enrolem suas dívidas sem muito custo, suas restrições fiscais parecem impossíveis de afrouxar, de modo que o investimento público está sempre em falta. Por essas duas razões, 13 anos de taxas de juros ultrabaixas contribuíram com uma desigualdade massiva.
Essa crescente desigualdade ampliou o excesso de poupança, ao passo que os ultra ricos não conseguem gastar suas montanhas de dinheiro. Pelo fato de que as poupanças crescentes representam o fornecimento de dinheiro, ao passo que investimentos insignificantes representam a demanda por ele, o resultado é uma pressão negativa no preço do dinheiro, que mantém as taxas de juros fixadas em um limite inferior a zero. Os bancos centrais devem, por isso, ter coragem para aumentar as taxas de juros para quebrar esse ciclo vicioso de desigualdade insustentável e estagnação desnecessária.
Certamente, os bancos centrais temem que aumentar as taxas de juros vai falir governos e causar uma séria recessão. É por isso que esse aumento deve ser embasado por duas ações políticas cruciais.
Em primeiro lugar, uma séria reestruturação das dívidas pública e privada é inevitável, por isso, os bancos centrais deveriam parar de tentar evitá-las. Manter as taxas de juros abaixo de zero para jogar para frente a falência de entidades insolventes (como os Estados grego e italiano e um grande número de empresas zumbi), como estão fazendo o Fed e o Banco Central europeu atualmente, é uma aposta de tolos. Ao invés, vamos reestruturar dívidas impagáveis e aumentar as taxas de juros para impedir a criação de mais dívidas impagáveis.
Em segundo lugar, ao invés de acabar com a QE, o dinheiro que ela produz deveria ser direcionado para longe dos bancos comerciais e dos seus clientes corporativos (que gastaram a maior parte do dinheiro em recompra de ações). Esse dinheiro deveria financiar uma renda básica e a transição verde (via bancos de investimento público como o Banco Mundial e o Banco Europeu de Investimento). E essa forma de QE não será inflacionária se a renda básica da classe média alta e além for taxada mais duramente, e se o investimento verde começar a produzir a energia e bens verdes que a humanidade precisa.
Os bancos centrais não são limitados a escolher entre a paralisia e a contração. Uma política monetária progressista elevaria as taxas de juros enquanto investe o fruto da árvore de dinheiro em ação climática e na redução da desigualdade. Se ajudar a vender a política, chame-a de “fortalecimento monetário sustentável”.
Yanis Varoufakis é ex-ministro das Finanças da Grécia, é líder do partido MeRA25 e professor de Economia na Universidade de Atenas.