Diante do mar de incertezas que a pandemia do coronavírus traz para o mundo do trabalho, ao menos um aspecto da economia mundial ela clareou: não é possível compreender os processos comerciais nacionais sem considerar as redes globais de produção. Tudo isso, entre outras coisas, levou à guerra comercial em diversas escalas, na qual o avanço dos EUA sobre os demais países na compra de equipamentos de saúde como respiradores e máscaras produzidos na China são apenas uma face. Há, contudo, uma questão mais sensível: as vidas humanas.
“A pandemia escancarou a interdependência da produção e do trabalho em escala global. Está evidente o quanto necessitamos do trabalho de pessoas dos lugares mais longínquos. O processo de precarização que se proliferou também com a conformação dessas redes perpassa os mais diferentes momentos dessas cadeias e isso se tornou, neste momento, um obstáculo ao enfrentamento da crise”, avalia a pesquisadora Dra. Patrícia Rocha Lemos. “As condições de trabalho a que estavam submetidos, por exemplo, os trabalhadores da área de saúde, de supermercados e de transporte e entrega por aplicativo, com enorme sobrecarga, se agravam ainda mais neste momento. Eles sofrem agora ainda mais pressão, com aumento das jornadas e maior exposição a riscos de vida e adoecimento”, complementa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Nesse sentido, os discursos que colocam em relação à economia e à vida funcionam como uma espécie de cortina de fumaça contra os limites do neoliberalismo. “É preciso recusar a falsa dicotomia entre “vida” e “economia” que alguns setores têm pregado e que tem penetração no governo e se expressa em muitas declarações de Bolsonaro. A superação da crise impõe a necessidade de medidas coordenadas que vão no sentido contrário às políticas trabalhistas de orientação neoliberal implementadas por todo o globo nas últimas décadas. Inúmeros países já têm tomado medidas nesse sentido. Garantir o direito à vida neste momento é criar as condições para reconstruir sob outras bases a economia mundial pós-crise”, sugere. “Não há futuro na defesa dos direitos a partir das organizações de classe se não formos capazes de colocar o direito à vida e a condições dignas de trabalho em primeiro plano. Essa é precisamente a tensão fundamental que vivemos hoje no contexto da pandemia”, complementa.
Patrícia Rocha Lemos é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e mestra em Ciência Política pela mesma universidade. Participou do Programa de Doutorado-Sanduíche no Exterior, da Capes, no Departamento de Planejamento Urbano da Universidade da Califórnia – Los Angeles – Ucla, sob supervisão do Prof. Chris Tilly. Foi pesquisadora visitante no Centre on Labour and Global Productions no Queen Mary – Universidade de Londres.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em primeiro lugar, o que são as redes globais de produção e como se caracterizam?
Patrícia Rocha Lemos – As redes globais de produção são mais conhecidas como cadeias globais ou cadeias globais de valor. Os estudiosos da consolidação e funcionamento dessas redes ou cadeias chamam a atenção para a centralidade da crescente interpenetração das atividades produtivas em escala transnacional. Esse fenômeno se aprofunda e toma novos contornos a partir da década de 1970 como uma das respostas à crise do capitalismo daquele período. Então, podemos dizer que a ênfase nas redes e cadeias globais busca explicar as novas formas como os processos de produção, distribuição e consumo de bens e serviços ganharam escala global nas últimas quatro décadas.
De certa maneira a crise global em torno da pandemia de Covid-19 tem escancarado a importância de investigarmos a estruturação dessas redes e o papel dos diferentes países no interior delas. Quando a epidemia se espalhava pela China, diversos países, inclusive o Brasil, sofreram rapidamente os efeitos da falta de insumos e de componentes importados que são produzidos naquele país, o que levou à paulatina estagnação da produção em diferentes setores. Outro exemplo está na atual “guerra comercial” entre EUA e outros países pela compra e importação de equipamentos como respiradores e máscaras que são produzidas também na China.
Esse fenômeno, como eu já destaquei, não é novo. E as diferentes vertentes teóricas que analisam essas redes ou cadeias globais têm sido fundamentais para explicar de que modo as chamadas “empresas líderes” flexibilizaram e transferiram a sua produção para um conjunto bastante diverso de países, especialmente do “sul global”. Ao mesmo tempo, o controle e o centro das decisões estratégicas dessas empresas permaneceram, em grande parte, no seu país de origem. Isso altera não apenas as relações de poder entre as empresas, mas coloca uma série de desafios às instituições e organizações no âmbito nacional e regional. A minha afinidade com a vertente teórica que usa o termo “rede global de produção” busca justamente fortalecer esse campo que investiga não apenas a relação entre as empresas e suas estratégias, mas a rede de relações que se estabelecem entre empresas, instituições nacionais, organizações sindicais e a própria perspectiva e ação dos trabalhadores.
As características dessas redes variam enormemente, mas podemos dizer que elas evidenciam um crescente poder de grandes empresas transnacionais de países do chamado “Norte Global” sobre o conjunto de empresas fornecedoras e instituições dos locais para onde foi deslocada a produção no Sul do mundo. Nesse aspecto, a varejista norte-americana Walmart destaca-se como um dos principais símbolos dessas mudanças por vários motivos, mas especialmente porque, devido ao seu tamanho e poder de barganha, essa empresa tem conseguido direta ou indiretamente rebaixar as condições de trabalho e de vida em diferentes países. Desse modo, com a consolidação dessas redes globais, a centralização e concentração do capital nas grandes transnacionais tem como outra face a proliferação das chamadas sweatshops, ou “fábricas de suor”, que encontramos em países como Bangladesh, Vietnã etc.
Portanto, do ponto de vista do trabalho e da própria perspectiva de desenvolvimento dos países, não é possível entender os processos nacionais hoje sem considerar as condições de inserção de cada um dos países e regiões nessas redes globais de produção. A compreensão dessas transformações é fundamental porque elas expressam não apenas as mudanças na estrutura competitiva, mas aspectos de uma nova divisão internacional do trabalho, que como eu disse, acabaram ganhando visibilidade com os impactos da pandemia.
IHU On-Line – Como a atual crise da Covid-19 tem afetado o mundo do trabalho?
Patrícia Rocha Lemos – Os impactos dessa crise sobre o trabalho são de várias naturezas. Como mencionei na primeira pergunta, a pandemia escancarou a interdependência da produção e do trabalho em escala global. Está evidente o quanto necessitamos do trabalho de pessoas dos lugares mais longínquos. O processo de precarização que se proliferou também com a conformação dessas redes perpassa os mais diferentes momentos dessas cadeias e isso se tornou, neste momento, um obstáculo ao enfrentamento da crise. As condições de trabalho a que estavam submetidos, por exemplo, os trabalhadores da área de saúde, de supermercados e de transporte e entrega por aplicativo, com enorme sobrecarga, se agravam ainda mais neste momento. Eles sofrem agora ainda mais pressão, com aumento das jornadas e maior exposição a riscos de vida e adoecimento.
Este momento também evidencia a necessidade de garantia de determinadas condições mínimas de trabalho,renda e de saúde tanto aos trabalhadores em atividades essenciais quanto àqueles que precisam se ausentar do trabalho e que estão em situação de alta vulnerabilidade, como informais e desempregados. É preciso recusar a falsa dicotomia entre “vida” e “economia” que alguns setores têm pregado e que tem penetração no governo e se expressa em muitas declarações de Bolsonaro. A superação da crise impõe a necessidade de medidas coordenadas que vão no sentido contrário às políticas trabalhistas de orientação neoliberal implementadas por todo o globo nas últimas décadas. Inúmeros países já têm tomado medidas nesse sentido. Garantir o direito à vida neste momento é criar as condições para reconstruir sob outras bases a economia mundial pós-crise.
IHU On-Line – No caso brasileiro, quais suas especificidades?
Patrícia Rocha Lemos – A particularidade do Brasil está nos problemas estruturais que não fomos capazes de superar ao longo da nossa história. Uma economia baseada na exportação de commodities e o desmonte de nossa já problemática estrutura produtiva colocam o Brasil em um lugar de bastante desvantagem nas redes globais de produção, numa situação de extrema dependência. A isso, soma-se a cruel e criminosa desigualdade social que mantém parte significativa da população em profunda insegurança e vulnerabilidade. Ao mesmo tempo, estamos vindo de um processo de aprofundamento dos problemas estruturais do mercado de trabalho brasileiro na medida em que as contrarreformas trabalhista e da previdência possibilitaram ampliar a precariedade e a informalidade, desconstruir os sistemas de proteção social e fragilizar as instituições, como a Justiça do Trabalho e os sindicatos. As décadas de fragilização, privatização e subfinanciamento dos serviços públicos já vinham reforçando esse processo de degradação social e ameaça à vida das pessoas. Infelizmente, é nesse cenário devastador que se encontrava o Brasil no momento em que a dimensão sanitária da pandemia de Covid-19 vem agravar a crise econômica, política e social na qual já nos encontrávamos.
IHU On-Line – Como o setor varejista no Brasil tem sido reorganizado pelas dinâmicas do capitalismo flexível em escala global?
Patrícia Rocha Lemos – Para entender a reorganização do varejo no Brasil é necessário considerar pelo menos três movimentos mais ou menos simultâneos que se desenvolvem nessa fase do capitalismo. O primeiro está relacionado ao esgotamento dos mercados domésticos de grandes varejistas que impulsionam o processo de internacionalização dessas empresas principalmente em meados dos anos 1990. Ou seja, essas grandes varejistas passam a internacionalizar suas operações para outros países com o objetivo de ganhar novos mercados. Desse modo, ocorre não apenas a expansão das operações dessas empresas, com aberturas de lojas em vários países, mas também a concentração do setor, já que essas grandes varejistas acabaram por comprar várias das pequenas redes locais já estabelecidas nesses países.
Essa internacionalização só foi viável porque facilitada por um segundo movimento fundamental de financeirização e de liberalização crescente das economias, que no Brasil teve o seu auge também na década de 1990. Foi especialmente a partir de 1995 que ocorreu a entrada de empresas e de capital estrangeiro no país até a modificação profunda da estrutura do setor nos anos 2000. Em 2017, as cinco maiores redes supermercadistas, por exemplo, representaram quase 40% do faturamento de todo o setor do varejo, sendo as três maiores redes o Carrefour (de origem francesa), o Grupo Pão de Açúcar (também associado ao grupo Francês Casino) e o Walmart (estadunidense).
Essas mudanças foram impulsionadas e impulsionaram alterações de ordem econômica, mas também cultural, que estou considerando aqui como o terceiro movimento importante. Me refiro aqui à chamada cultura do consumo e ao que autores como Chris Tilly denominam processo de “supermercadorização”. Ou seja, com a reestruturação das empresas, a ascensão do marketing e dos estímulos ao consumo de massa, ocorreu também uma reestruturação no comércio com a expansão do chamado autosserviço, em que o próprio consumidor busca nas prateleiras os produtos que lhe convêm. Essas novas práticas foram impulsionadas pelas novas tecnologias como o código de barras, a containerização e os sistemas computadorizados para a venda e gestão de estoque.
Uma das principais características da supermercadorização é a substituição de pequenos comércios familiares por grandes empresas, o que significou a ampliação das relações de trabalho tipicamente capitalistas e possibilitou aumentar a produtividade. Esse aspecto é bastante concreto, basta pensarmos na nossa experiência como consumidores e compararmos o que e onde fazíamos compras há 25 ou 30 anos e como e em que tipo de estabelecimento compramos hoje.
A chamada supermercadorização também tem duas características importantes menos discutidas que se estabelecem em todos os países onde ela ocorre: a centralização da gestão e do controle no topo das grandes empresas varejistas e a difusão de estratégias de desconto que combinam maior eficiência no sentido de volume de vendas com baixos salários e condições de trabalho precárias para os trabalhadores do segmento. No meu entendimento essas são as principais dinâmicas que moldaram o setor varejista no Brasil e também no mundo nas últimas décadas.
IHU On-Line – De que forma o Walmart Brasil incorporou esses processos de internacionalização no varejo nacional e como isso foi sendo assumido por outras empresas e mesmo pela flexibilização das leis trabalhistas?
Patrícia Rocha Lemos – Existe um extenso e polêmico debate a respeito de como se dão esses processos de internacionalização das empresas. Há uma série de estudos sobre de que modo determinadas práticas de empresas transnacionais são transferidas, adaptadas ou reformuladas nos processos de internacionalização e mesmo sobre as diferenças na internacionalização de empresas da indústria produtiva em relação a particularidades da indústria do varejo.
Essa dinâmica entre os fenômenos que se dão em escala global e de que modo eles se traduzem em práticas locais e em transformações no local de trabalho foi uma das preocupações centrais da pesquisa que realizei no meu doutorado. E, de modo resumido, posso dizer que há sim políticas particulares do Walmart, especialmente no modo de organização e gestão do trabalho que impactam fortemente a flexibilização do trabalho na sua rede e acabam influenciando ou pressionando a redução de custos especialmente nas redes locais e menores que têm maior dificuldade de competir com grandes transnacionais. Porém, não há um processo automático e linear de generalização de práticas para outras empresas, especialmente devido à existência de legislação trabalhista, de instituições como a Justiça do Trabalho e da presença e ação dos sindicatos.
Para explicar melhor, posso dizer que há duas implicações no que diz respeito às possibilidades de a empresa reproduzir aqui práticas do país de origem. Por um lado, devido à existência da legislação trabalhista no país, das características do mercado de trabalho e pelo fato de o Walmart não ser a principal empresa do segmento no Brasil, não foi possível a essa empresa impor no Brasil determinadas condições análogas às praticadas nos Estados Unidos. Como aqui seus trabalhadores são empregados formais, ou seja, possuem carteira de trabalho assinada, a empresa é pressionada a respeitar algumas condições de salário, jornada e contrato de trabalho. Além disso, no Brasil, a varejista também é forçada a reconhecer o sindicato e a aceitar a vigência das convenções coletivas acordadas no setor. Ademais, há uma dinâmica diferenciada no nosso país que não estimula a proliferação dos empregos em tempo parcial como um mecanismo de rebaixamento generalizado de direitos.
Isso não significa dizer que está garantida a qualidade das condições de trabalho para os empregados do Walmart no Brasil. Assim como outras empresas, o Walmart se beneficia das fragilidades da regulamentação e da fiscalização. A verdade é que o trabalho no comércio em geral é tão precário e os trabalhadores do segmento estão tão habituados à instabilidade e à informalidade, que os próprios direitos legais são nivelados por baixo. Os dados de mercado de trabalho mostram bem isso: o comércio não só tem as maiores jornadas de trabalho como a remuneração média só não é menor que a da agricultura. Portanto, em alguns aspectos, o Walmart no Brasil não só reproduz práticas comuns a seus concorrentes como não possui o poder de ganhar vantagens a partir do rebaixamento de determinadas condições de salário e trabalho.
Por outro lado, há um aspecto muito marcante da estratégia da empresa que eu chamei de “Custo baixo todo dia”, fazendo um trocadilho com o lema da empresa: “Preço baixo todo dia” que, por sinal, nunca foi uma realidade no Brasil. A ideia aqui é enfatizar o modo como a empresa desenvolveu práticas de organização e gestão do trabalho bastante despóticas que, na obsessão pela redução dos custos com o trabalho, leva à precarização e ao adoecimento. Nesse aspecto, há um conjunto de práticas de metas, mecanismos de punição e de vigilância bem como uma série de procedimentos similares aos utilizados nos Estados Unidos para forçar o excesso e a intensificação do trabalho sem que os trabalhadores sejam remunerados ou reconhecidos por essas atividades excedentes.
Em relação à legislação trabalhista, podemos dizer que o Walmart no Brasil não tem força para pressionar sozinho pela alteração das normas, mas certamente ele atuou junto às organizações empresariais do comércio pela aprovação da reforma trabalhista de 2017 que possibilitou legalizar um conjunto de práticas que já existiam no setor e que eram muitas vezes objeto de ações trabalhistas. Além disso, podemos dizer que converge com o interesse do Walmart (e de todas as empresas do setor) a possibilidade do trabalho intermitente bem como qualquer outro mecanismo que permita às empresas ajustar os custos do trabalho ao fluxo da demanda e da atividade do setor.
IHU On-Line – Quais são as principais ocupações disponíveis aos trabalhadores nessa nova organização do trabalho varejista? Como se dá a organização do trabalho e quais são os modelos de remuneração?
Patrícia Rocha Lemos – No caso das grandes redes supermercadistas, as principais ocupações são aquelas que podemos perceber no nosso cotidiano como consumidores. A partir dos dados da Relação Anual de Informações Sociais – RAIS, observamos que as operadoras de caixa representam 22% do total de empregados no setor e 19% são de repositores de mercadorias. Esses trabalhadores geralmente possuem o ensino médio e são contratados CLT por prazo indeterminado. Além destas, três outras ocupações me chamaram a atenção: a de promotores de venda, de operadores de venda e as diferentes nomenclaturas de gerência de setor, que substituem os antigos supervisores. Vou explicar melhor por que considero essas três ocupações fundamentais para entender as transformações no trabalho.
O promotor de venda é uma ocupação muito importante que tem crescido muito nos últimos anos. No período de 2006 a 2017, o número de empregados nessa atividade aumentou de 119.538 para 199.261 no país. A sua expansão está muito vinculada à reorganização do varejo impulsionada pelas grandes redes. Isso ocorre porque os promotores são “representantes da marca ou produto”, ou seja, são contratados pela empresa fornecedora, mesmo que suas atividades sejam todas desempenhadas nos supermercados, em diferentes lojas e redes. Inclusive eles não só fazem promoções como são os responsáveis por garantir a divulgação e a reposição dos produtos nas prateleiras. Eles escancaram, portanto, a externalização de atividades que antes eram desempenhadas por empregados diretos dos supermercados, evidenciando uma das estratégias de terceirização como redução de custos com o trabalho nesse segmento.
Já a atividade de operadores de venda é uma tentativa de colocar sob a mesma ocupação diferentes atividades que muitas vezes eram desempenhadas por profissionais mais especializados como açougueiros, padeiros, confeiteiros etc. Essa nomenclatura vai na mesma direção que várias das ocupações em outros setores que buscam dar um caráter de polivalência e multifunção. Isso permite maior flexibilidade à empresa para manejar a atividade dos trabalhadores de acordo com a sua necessidade, o que geralmente leva à intensificação e à desqualificação do trabalho.
Por fim, eu gostaria de ressaltar a importância dos novos “gerentes”, que é a nomenclatura dada a muitos dos trabalhadores que antes eram supervisores de setor e que geralmente têm pouquíssimos ou nenhum subordinado. Essas atividades de média-hierarquia nos supermercados têm sido muito úteis para estimular a autorresponsabilização e o autogerenciamento por parte dos trabalhadores. É comum que eles sejam responsabilizados e pressionados por resultados em termos de vendas e acabem naturalizando a prática das horas extras não pagas, já que os chamados “cargos de chefia” são entendidos como casos de exceção ao limite legal das jornadas. No caso do Walmart, a existência dessa função e a expectativa de promoção tem sido uma importante ferramenta para aumentar a produtividade com pouco custo em termos de salário. Isso é possível porque esses trabalhadores assumem e de desdobram para realizar atividades que geralmente necessitariam de um conjunto maior de empregados e, com isso, eles garantem que as operações da empresa aconteçam mesmo com um quadro de funcionários muitíssimo reduzido.
IHU On-Line – Como as inovações tecnológicas, impulsionadas pela Revolução 4.0, impactam as relações de trabalho e o trabalho propriamente dito? O que trazem de benefícios aos trabalhadores e quais seus limites?
Patrícia Rocha Lemos – Essa é uma pergunta que exige uma pesquisa mais aprofundada, mas o que posso dizer a esse respeito está relacionado ao que observei na experiência do Walmart. Como muitos estudiosos ressaltam, o Walmart foi um importante precursor de uma série de inovações tecnológicas, desde a introdução dos computadores, da comunicação por satélite, até o processo de gestão e controle da cadeia de fornecimento por meio das tecnologias de informação e comunicação – TIC. Essa é uma área central para a estratégia da empresa. Por isso, inclusive, que ela é considerada um ícone tanto da chamada “revolução do varejo”, como da “revolução logística”. No caso dos centros de distribuição do Walmart, por exemplo, vem sendo testada e utilizada uma série de processos automatizados de separação e organização das mercadorias com o uso de robôs. Nos EUA a empresa também testou a utilização desses robôs para a reposição de mercadorias nas prateleiras.
Essas tecnologias têm o potencial de serem bastante eficientes para a empresa, a exemplo de outras já implementadas com a finalidade de eliminar custos, como o processo de controle computadorizado do carregamento e transporte das mercadorias dos centros de distribuição para as lojas, a fim de economizar viagens de caminhão. Houve outras tentativas nos EUA como, por exemplo, de instalar sistemas de captação de vídeo e som nas lojas, mas que recebeu muitas críticas, inclusive de consumidores.
Do ponto de vista do trabalho, o que observamos é que essas tecnologias, mais do que substituir o trabalho humano, têm sido importantes nesse segmento para ampliar o controle e a vigilância sobre o trabalho. A definição das metas, por exemplo, é totalmente realizada via TIC, de modo que todos os dias os empregados podem acessar a listagem detalhada de quantos e quais produtos devem vender. Por meio desse mesmo sistema o seu desempenho individual pode ser consultado em tempo real do escritório da matriz e essa lógica se aplica também para o controle das equipes e do desempenho das lojas. Ou seja, a margem de decisão e de autonomia dos trabalhadores, mesmo para diferentes níveis de gerência, é muito pequeno. Além disso, os sistemas de vigilância permitem não só pressionar pela intensificação do trabalho como também evitar ações coletivas e o contato com os sindicatos.
Seria possível é claro, que fossem desenvolvidas tecnologias para facilitar o trabalho e, inclusive, gerar condições melhores para a saúde dos trabalhadores. Mas não é isso que ocorre e não é nesse sentido que as empresas têm estimulado essas inovações. Um exemplo disso é o trabalho das operadoras de caixa. Ainda que exista o autoatendimento disponível há alguns anos, utiliza-se no Brasil massivamente o trabalho dessas mulheres. No caso da pesagem de frutas e verduras, elas precisam digitar um conjunto de 5 até 8 números, enquanto no autoatendimento o consumidor pode escolher tocar no desenho do produto. A digitação é exatamente o que gera o problema de saúde mais recorrente de lesão por esforço repetitivo (LER) nas pessoas nessa ocupação. Isso sem contar na gama de atividades que foram sendo incorporadas a essas operadoras: pesagem, oferta de produtos, pagamento de contas, ensacamento das mercadorias compradas pelo cliente etc.
Nesse sentido, acredito que o limite das inovações da chamada “revolução 4.0” é o fato de que elas estão sendo desenvolvidas para estar a serviço do capital, da redução de custos com o trabalho e não com o objetivo de eliminar trabalhos monótonos e degradantes. Isso pode sim acontecer, mas apenas na medida em que a novidade é lucrativa para as empresas e não porque a qualidade de vida das pessoas é o seu motivador.
Basta pensarmos em todos os dilemas atuais sobre a privacidade e controle de dados. Parte fundamental, por exemplo, do poder de grandes varejistas como o Walmart é o fato de eles poderem controlar as informações de quem, quando e o que está sendo comprado, a cada segundo, em cada uma de suas lojas. Isso coloca os produtores, mesmo de grandes marcas, em desvantagem. Ao mesmo tempo, esses dados servem para a empresa racionalizar ainda mais seus gastos e investimentos e definir sua estratégia para vender sempre mais e para se relacionar com seus fornecedores. Nesse sentido não importa sob quais condições estarão submetidos seus empregados, se os produtos vendidos são de qualidade ou se a saúde dos consumidores está sendo preservada, mas em que medida eles conseguem vender sempre mais.
IHU On-Line – O que você chama, em sua pesquisa, de “liderança servil” e “política da produção”?
Patrícia Rocha Lemos – Vou começar pelo debate mais amplo em torno da ideia de política de produção porque ele ajuda a localizar a importância da noção de “liderança servil” que foi propagada pelo fundador do Walmart e que eu apresento brevemente na minha tese. O conceito de “política da produção” que eu utilizo foi desenvolvido por Michael Burawoy e é uma das ideias fundamentais da tradição da teoria do processo de trabalho. A partir desse conceito o autor chama a atenção para a existência de três dimensões inseparáveis do trabalho: uma dimensão econômica (na produção de coisas), uma dimensão política (com a produção de relações sociais) e uma dimensão ideológica (produção de uma determinada experiência dessas relações).
No meu entendimento, olhar para essas três dimensões e entender como elas se articulam é o que possibilita, por exemplo, que as nossas pesquisas não apenas descrevam as atividades desenvolvidas e a existência de relações de exploração, mas se atentem para o modo como os trabalhadores vivenciam e percebem seu trabalho e as relações que nele se fazem. Isso foi fundamental para aquele autor estudar o que leva os trabalhadores a trabalharem cada vez mais, para além dos mecanismos coercitivos e violentos. Em suas pesquisas, Burawoy demonstra como se dá o processo de construção do consentimento dos trabalhadores no processo de trabalho. Essa ideia se aproxima de problematizações levantadas por Polanyi e também tem muitos pontos de convergência com a tradição de estudos do historiador Edward P. Thompson e dos estudos feministas e sobre gênero e trabalho.
Entendo que essa dimensão que Burawoy denomina ideológica é especialmente importante para avançarmos para além de leituras mecânicas que ignoram a subjetividade do trabalho. Ao mesmo tempo, complexifica as leituras de que o trabalhador que não se levanta contra sua própria exploração não o faz por ausência de uma determinada “consciência”. No mundo do trabalho como o conhecemos hoje, com as mais diversas artimanhas para encobrir relações de trabalho e estimular o autocontrole e autogerenciamento, não só os mecanismos coercitivos são em alguns casos disfarçados, como o consentimento aparece quase como natural.
É claro que a coerção pelo mercado ainda é muito eficiente e fundamental em países como o Brasil. Ou seja, o fato de muitos trabalhadores se submeterem às mais rebaixadas condições de trabalho por falta de alternativa melhor é de grande força. Mas para explicar por que muitos desses trabalhadores se mostram satisfeitos, comprometidos e engajados em desempenhar suas atividades e defender a imagem da empresa é necessário considerar outros elementos que levam a um determinado grau de consentimento com essa relação de exploração econômica. Um amplo conjunto de estudos, especialmente na sociologia do trabalho francesa, tem se detido a analisar esse fenômeno, sobretudo a partir da análise das formas de gestão do trabalho.
Gostaria apenas de ressaltar que falar em consentimento não significa adesão, não significa identificação total, captura da subjetividade, nem implica a impossibilidade de resistência, organização ou luta contra a exploração ou mesmo por melhores condições de trabalho. No meu entender, olhar para essa dimensão da experiência dos trabalhadores ajuda a reconhecer com mais clareza dificuldades e possibilidades que estão postas particularmente no local de trabalho.
No caso da ideia de “liderança servil”, ela representa parte importante do fundamento da gestão do trabalho que o Walmart e outras empresas têm difundido e que converge com valores e crenças religiosas, especialmente de tradições evangélicas. A noção de “liderança servil” está presente no livro dos associados, criado por Sam Walton, fundador do Walmart, em 1991, e prega uma visão do líder como alguém que serve aos membros escutando suas ideias, apoiando seus esforços e encorajando seu progresso.
O termo ‘líder servil’ foi criado na década de 1970 por Robert Greenleaf, que, anteriormente, fez carreira como diretor da AT&T até 1964. Esse autor enfatiza uma abordagem abrangente do trabalho, um senso de comunidade, trabalho em equipe e o compartilhamento do poder na tomada de decisões. Tal conceito foi popularizado por alguns autores de livros sobre negócios, em sua maioria de orientação explicitamente evangélica.
É evidente que essas premissas, na sua maioria, não são observadas na prática cotidiana do trabalho no Walmart, mas a sua difusão é significativa e ajuda a criar um senso de pertencimento dos trabalhadores à empresa. Uma das maneiras como isso ocorre, por exemplo, é na dissociação entre a prática despótica e a estratégia da empresa. Ou seja, muitas vezes a pressão sofrida no trabalho é identificada como uma postura individual do superior e não uma política deliberada e coerente com a estratégia da lucratividade da empresa. Lichtenstein, um dos principais estudiosos do Walmart nos EUA, explica que essa ideia de liderança servil tem sido uma ideologia muito funcional na medida em que estimula a devoção às vendas, aos serviços e à comoditização de si mesmo. Além disso, ele afirma que essa noção racionaliza a autoexploração e empresta um ar sacerdotal à hierarquia corporativa.
Esse fenômeno, na minha opinião, é um campo muito rico a ser explorado para compreendermos como as mudanças no trabalho também estão permeadas por essas transformações políticas e ideológicas em outros âmbitos da vida. No caso brasileiro, acredito que esse tipo de ideologia tem um campo ainda mais fértil se considerarmos nossa herança escravocrata e essa naturalização de uma postura de “estar a serviço de alguém”. Claro que isso é só um palpite, mas acho que pode apontar um caminho interessante de pesquisa que ajude a entender as relações de trabalho atuais na sua complexidade.
IHU On-Line – De que forma se dão as expressões de resistência dos trabalhadores dentro do atual contexto do trabalho?
Patrícia Rocha Lemos – Existem pesquisas que apontam experiências interessantes em alguns países, como o próprio movimento Our Walmart nos EUA, que esteve na origem do movimento que se ampliou posteriormente de luta pelo salário mínimo de 15 dólares a hora naquele país. No caso chileno também houve um esforço interessante dos sindicatos de organizar os trabalhadores do Walmart nos seus locais de trabalho, bem como outras iniciativas principalmente voltadas a campanhas públicas de denúncia das práticas nocivas da empresa. Parte desse tipo de iniciativa, que alguns autores denominam “sindicalismo de movimento social”, tem muita confluência com movimentos históricos dos trabalhadores no Brasil, mas se diferenciam muito da realidade atual do sindicalismo brasileiro, especialmente comerciário.
No Brasil a situação é bastante dramática no setor como um todo, seja pela inexistência de tradição sindical no segmento, seja pela ausência de organização no local de trabalho e pela acomodação de muitos dos sindicatos que representam os comerciários, com as mais distintas realidades. Na conversa com trabalhadores em determinadas lojas é possível perceber algumas resistências locais, especialmente contra medidas de corte de salários, benefícios ou assédio moral, mas geralmente são questões resolvidas internamente e nem sempre com o respaldo das organizações sindicais. Houve iniciativas de organização no nível global, mas se limitaram principalmente a um diagnóstico dos problemas, com pouco ou nenhum resultado em termos de mobilização dos trabalhadores e conquista de direitos no Brasil.
IHU On-Line – Diante de um enfraquecimento das garantias legais trabalhistas no Brasil, qual tem sido o papel dos sindicatos, especificamente do campo de sua pesquisa? Quais perspectivas futuras se podem vislumbrar na defesa dos trabalhadores?
Patrícia Rocha Lemos – Acho que não existe resposta fácil e breve para essa pergunta. Acredito que os sindicatos têm um papel fundamental na defesa dos direitos dos trabalhadores, mas nem sempre é esse o objetivo que está no centro de sua estratégia. Não estou desconsiderando todas as dificuldades e os ataques sofridos pelas entidades sindicais, o que só reforça como elas são importantes e podem representar uma ameaça aos horizontes neoliberais. No entanto, no setor comerciário, e em geral nos setores precários, muitas das entidades sindicais estão comprometidas com o patronato ou muito apartadas da realidade e do dia a dia dos seus trabalhadores. Muitos trabalhadores desconhecem os direitos e benefícios, inclusive aqueles que só possuem por resultado da ação coletiva de outros trabalhadores no passado.
Vivemos num momento de crise em que muitas das organizações e movimentos sociais estão desnorteados e buscando se defender e reagir pontualmente aos ataques. Isso é necessário, mas insuficiente. Na minha opinião, se os sindicatos quiserem retomar o seu espaço e legitimidade social, precisam estar dispostos a se repensar, a refletir alternativas junto a outros atores sociais e o mais importante: voltar a ouvir seus trabalhadores. Isso não quer dizer apenas entregar panfleto em porta de fábrica, nem abrir mão de ter suas bandeiras e convicções. Trata-se de realmente estar aberto para ouvir. É se dispor a construir um diagnóstico sobre quem são esses trabalhadores e o que eles pensam sobre o sindicato, sobre as reformas, sobre direitos e formular a partir daí estratégias de articulação, mobilização e aproximação. Mas muitas vezes esse tipo de debate não tem penetração nem entre os próprios diretores. Uma vez uma dirigente sindical me disse que “o sindicato são os trabalhadores”. Acho que esse horizonte precisa ser retomado: mais do que a sede ou o reconhecimento do estado, o sindicato precisa fazer sentido e ser uma necessidade para seus membros e para a sociedade. O momento atual pode ser uma oportunidade para essa reconstrução.
Os ataques aos direitos continuarão a impulsionar ações coletivas com ou sem sindicatos, basta olharmos os levantes da última década pelo mundo ou mesmo as ações de trabalhadores de aplicativos em vários países. De que modo as organizações sindicais vão ser capazes de fortalecer essas lutas acho que depende dos caminhos que se traçam agora. Não tem receita pronta, o que se sabe é que não é possível ação sindical se não houver disposição de entender a percepção de jovens, mulheres, negros e negras. Não há futuro na defesa dos direitos a partir das organizações de classe se não formos capazes de colocar o direito à vida e a condições dignas de trabalho em primeiro plano. Essa é precisamente a tensão fundamental que vivemos hoje no contexto da pandemia. Que precisamos dos(as) trabalhadores(as), isso está evidente. Mas sob que condições permitiremos que eles trabalhem para que sejamos abastecidos e tenhamos acesso ao serviço de saúde é um dos dilemas que temos que enfrentar, bem como a sobrevivência daqueles que vivem informal e precariamente como supostamente “autônomos” ou desempregados.
Fonte: IHU On-Line
Texto: Ricardo Machado
Data original da publicação: 14/04/2020