Eduardo Camín
Fonte: Carta Maior
Tradução: Victor Farinelli
Data original da publicação: 09/09/2018
O Uruguai sempre aceitou de bom grado os investimentos estrangeiros diretos, outorgando tratamento preferencial às empresas do exterior que se instalam no país sem nenhum tipo de discriminação. Esta dinâmica de investimento é acompanhada por um marco de segurança jurídica e estabilidade política, além de um suporte inegável de novas tecnologias e infraestruturas de todo tipo.
Durante a última década, o Uruguai manteve uma taxa de crescimento superior à média do continente, graças a esses investimentos estrangeiros, especialmente europeus, e mais especificamente os espanhóis, com destaque aos bancos, serviços e a produção de celulose. A cifra de investimentos diretos relacionados ao PIB é de 5,3%. Só o Chile supera esta marca no continente, o que significa uma certeza quase infalível e inclusive dogmática da equipe econômica liderada pelo contador Danilo Astori.
Na representação popular, a ideia mais generalizada do fenômeno é simples: um país rico, um organismo internacional ou alguns fundos de investimento emprestam capital ao país, e com esses empréstimos o governo investe em novas infraestruturas, estradas, ampliação das fontes energéticas… mas, sobretudo, esse dinheiro se usa para pagar as dívidas antigas.
Resumindo em uma ideia simples: sem tais empréstimos não poderíamos enfrentar nossas obrigações, nem melhorar nossos serviços, nem produzir mais no setor agropecuário, nem criar novas empresas. Ou seja, não poderíamos nos desenvolver. Mas observemos um instante o que acontece ao nosso redor, e ordenemos os fatos, ou teremos que seguir mentido para nós mesmos, tratando os desejos como realidades e assimilando grandes e vazias palavras.
Num mundo onde a economia está globalizada e a política fraturada, o choque entre estes dois movimentos contrapostos só pode conduzir à paralisia e ao conflito.
Em tal marco, vale a pena perguntar qual é o sentido de seguir com a discussão sobre as facetas, os ângulos e as minúcias do pensamento político da “esquerda progressista”, quando a prática se tornou impossível, uma vez que os instrumentos antigamente capazes de impulsar as organizações políticas nacionais se tornaram reféns da lógica instrumental de um capitalismo multinacionalizado.
Poderão dizer que o tempo transcorrido de governos progressistas é pequeno se comparado em termos históricos, o que impede realizar valorações que condenem os mesmos, mas depois de três gestões progressistas, já não são os sinais governamentais os que nos preocupam e nos levam a opinar, e sim os fatos cujos riscos envolvem a todos, e beneficiam a alguns poucos.
Os fatores mais relevantes dessa análise ganham mais significados quando examinados em comparação com outras realidades. Se a crítica cultural foi uma parte fundamental da tradição da esquerda, não deveríamos nos esquecer das razões da política sobre as da economia, que foi o que levou a esquerda às altas esferas do Estado.
Assumido este rol através da expressão da vontade popular, o desafio real esperado era a intervenção na esfera pública para contrapesar o poder da minoria proprietária da riqueza. Sem a pueril pretensão de ser analista infalível, destacamos alguns dos aspectos principais sobre os quais o governo, sumária e talvez arbitrariamente, tem insistido.
A modificação da estrutura agrária, a reforma do ensino, a planificação da economia: três medidas que servem para entender quais os projetos que o governo vem desenvolvendo, suas principais linhas de trabalho, as quais alguns considerarão pouco, e outros acharão que é muito. Isso é inevitável. Estas três políticas que destacamos bastariam para se ter uma ideia definitiva sobre se – além da concepção geral à qual respondem – elas servem para se chegar a uma concordância a respeito.
Em primeiro lugar, a produção agropecuária – para a qual estamos especialmente dotados, por diversas razões: demográficas, climáticas, geográficas, etc – enfrenta um ajuste visando uma estrutura que é insuficiente e que será cada dia mais, porque suas melhoras foram planejadas tendo em vista apenas os termos de competitividade. Agir sobre esse aspecto não deveria significar copiar outros modelos, que tem a ver com outras necessidades e realidades, e sim fazer com que a estrutura seja produtiva e eficiente.
Mas mudar não significa andar abraçado às cobras, com o chapéu na mão, mendigando empréstimos no exterior. Não adianta proclamar um princípio nacionalista e defendê-lo, se as circunstâncias, no fim das contas, podem fazer com que tudo termine sendo ajustado às necessidades do mercado global. Neste sentido, se está entregando soberania e patrimônio, basta ver quem são os donos das fazendas.
Em segundo lugar, a reforma do ensino se resumiu à criação de um órgão consultivo, com uma equipe numerosa e recursos moderados, mal distribuídos, sobre o qual confluem interesses específicos e diversos, e que não serão capazes de realizar essa obra urgente: reunir, ordenar, analisar os casos e dar a solução adequada a cada um deles. O órgão, tal como está organizado, não passa de um corpo que só pariu divagações e projetos. O alto índice de conflito interno e os desencontros cada vez mais evidentes entre os líderes comprovam esta situação.
Em terceiro lugar, a partir desta pequena síntese de discordâncias ministeriais, podemos extrair, talvez (ou talvez não), a causa fundamental do discurso dissimulado do governo. Efetivamente, uma política financeira deve ser a expressão da política econômica. Em outras palavras, a política financeira é uma das formas de realização, por parte do Estado, de uma política econômica.
Portanto, deve haver uma política conjunta que abarque o processo em sua totalidade e ajuste essa visão e finalidade comuns, em resposta às diferentes e paulatinas soluções parciais que os problemas demandem.
O governo diz que o país deve produzir, e para produzir tem que trabalhar e investir. Diz que precisamos dos capitais estrangeiros, de assistência técnica e econômica, uma espécie de placebo usado como verdade axiomática, mas poucos, bem poucos mesmo, apresentam o problema em termos exatos, emitem suas dúvidas sobre as vantagens do sistema, ou se perguntam sobre as repercussões dele. E agora estamos neste cenário.
Nem todo investimento, pelo simples fato de sê-lo, deve ser justificado. Nesse sentido, não pareceu adequada, em seu momento, a introdução de parques industriais como a planta de celulose na região de Fray Bentos, ou as zonas francas, ou as medidas que fizeram o país estar condicionado aos estouros das bolhas imobiliárias, em nome dos investimentos, do mercado e da criação de fontes de trabalho.
Mais grave ainda é o fato de que, na atual conjuntura, o processo de globalização implica numa desarticulação das classes sociais. As novas formas de acumulação e poder pretendem deixar obsoletas as interpretações onde o domínio e a exploração social têm sua origem numa estrutura classista. Agora, são elites independentes, sem conexão nem origem de classe, as que determinam o processo de acumulação e reprodução do capital. Por isso, se recomenda que as análises sobre as classes devem ser superadas, por serem marginais.
Sob este enunciado, tenta-se demostrar que as relações sociais de produção não respondem mais à contradição capital-trabalho. O que existe agora seria mais como um processo de concentração da riqueza, ajudado pelas formas de exploração das novas elites empresariais, políticas e financeiras, como se este fosse parte de um mecanismo de decomposição da ordem social determinada pela existência de classes sociais.
Discutir sobre a organização política é diferente de apontar a existência de uma ordem social fundada numa estrutura de classes sociais antagônicas e complementárias.
Os conceitos de burguesia, proletariado industrial ou rural, assim como os de elites, ainda constituem o princípio sobre o qual se analisa a ordem social e política dependente do processo de acumulação e reprodução do capital global.
Por isso predominem, entre os editorialistas e articulistas dos novos tempos, conceitos genéricos de povo, nação, população, consumidores e cidadãos; como se fossem entidades abstratas, que não levam em consideração as diferenças entre as relações de classes – e que muitas vezes as negam – dentro de um conjunto indeterminado de extratos sem vínculo algum, e observam a configuração de um projeto social de domínio e exploração, como o que representa o capitalismo atual.
Os analistas classistas chegaram a uma conclusão, ao outorgar uma posição política à classe operária, revolucionária ou não, e permitir a ela uma luta contra a exploração e pela democracia e a justiça social. Contudo, durante os Anos 60 houve essa homologação, porque o lugar desse embate foi a arena política, nas universidades e nas ruas, através de grandes manifestações, e não os pulcros salões da burguesia, e abordando meramente as formas nas quais se estrutura a sociedade contemporânea.
Mas as certezas muitas vezes se transformam em dúvidas e essas se tornam realidade quando os fatos assim o determinam. De pouco serviu o dogmatismo da condução econômica, que pretendia blindar o país contra as inclemências dos mercados internacionais, e as crises dos nossos vizinhos, Argentina e Brasil, que transbordam e arrastram as frágeis economias periféricas como um ramo levado pela corrente do rio.
Talvez, se começarmos a tentar compreender o significado de José Artigas para além do limiar de sua estátua, e a conhecer seus ensinamentos, como aquele que nos lembra que é melhor ter alguma defesa a não ter nenhuma, e que é preferível morrer lutando que se entregar antes de lutar, com doce resignação, ajoelhados e anestesiados pela falácia do capitalismo globalizante, poderemos mudar o triste papel dessa esquerda de sonhadores desvelados.
Eduardo Camín é jornalista, membro da Associação de Correspondentes de Imprensa da ONU, redator-chefe internacional do Hebdolatino e analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE).