Somente taxando em 80% a 90% riqueza dos mais ricos será possível transformar de fato o mundo, inclusive no combate ao aquecimento global. E isso é viável, tanto técnica como politicamente.
Thomas Piketty
Fonte: Outras Palavras
Tradução: Maurício Ayer
Data original da publicação: 19/12/2022
Digamos com toda a franqueza: é impossível combater seriamente o aquecimento global sem uma profunda redistribuição da riqueza, tanto internamente a cada país quanto internacionalmente. Aqueles que afirmam o contrário estão mentindo para o mundo. E aqueles que afirmam que a redistribuição é certamente desejável, simpática, etc., mas que por infelicidade é técnica ou politicamente impossível, estão mentindo também. Eles fariam melhor defendendo o que acreditam (se é que ainda acreditam em alguma coisa) em vez de se perderem em uma atitude conservadora.
A vitória de Lula sobre o campo do agronegócio certamente traz alguma esperança. Mas isso não apaga o fato de que um número enorme de eleitores permanece cético em relação à esquerda social-ecológica e prefere confiar na direita nacionalista e anti-imigração, tanto no Sul quanto no Norte, como mostraram as eleições na Suécia e na Itália. Por uma simples razão: sem uma transformação fundamental do sistema econômico e da distribuição da riqueza, o programa social-ecológico corre o risco de se voltar contra as classes média e trabalhadora.
A boa notícia (por assim dizer) é que a riqueza está tão concentrada no topo que é possível melhorar as condições de vida da grande maioria da população combatendo as alterações climáticas, só precisamos dotar-nos dos meios necessários para uma redistribuição ambiciosa. Ou seja, todos terão naturalmente que mudar profundamente o seu estilo de vida, mas o fato é que é possível oferecer compensações para a classe trabalhadora e a classe média por essas mudanças, seja financeiramente, seja dando acesso a bens e serviços menos consumidores de energia e mais compatíveis com a sobrevivência do planeta (educação, saúde, habitação, transporte, etc.). Mas isso requer uma redução drástica no nível de riqueza e renda dos mais ricos, pois esta é a única forma de construir as maiorias políticas necessárias para salvar o planeta.
Os fatos e os números são teimosos. Os bilionários do mundo mantiveram firmemente sua ascensão estratosférica desde a crise de 2008 e durante a pandemia de covid atingindo níveis sem precedentes. Enquanto isso, o Relatório Global de Desigualdade 2022 mostrou que os 0,1% mais ricos da população mundial agora possuem cerca de € 80 trilhões em ativos financeiros e imobiliários, ou mais de 19% da riqueza mundial (equivalente a um ano do PIB global). A parcela da riqueza mundial detida pelos 10% mais ricos representa 77% do total, em comparação com apenas 2% para os 50% mais pobres. Na Europa, que as elites econômicas gostam de apresentar como um refúgio de igualdade, a parcela dos 10% mais ricos é de 61% da riqueza total, em comparação com 4% dos 50% mais pobres.
Na França, as 500 pessoas mais ricas aumentaram suas riquezas, entre 2010 e 2022, de € 200 bilhões para € 1 trilhão, ou seja, de 10% para quase 50% do PIB (ou seja, o dobro dos 50% mais pobres). De acordo com os dados disponíveis, o imposto de renda total pago por esses 500 indivíduos ricos nesse período foi equivalente a menos de 5% desse enriquecimento de € 800 bilhões. Isso é consistente com as declarações fiscais de bilionários americanos reveladas no ano passado pela ProPublica, que mostram uma taxa média de impostos na mesma faixa. Ao instituir um imposto único de 50% sobre esse enriquecimento, o que não seria excessivo em um momento em que pequenas economias suadas pagam um imposto inflacionário de 10% ao ano, o governo francês poderia arrecadar € 400 bilhões de euros.
Podem-se imaginar outras fórmulas, mas o fato é que os valores são vertiginosos: quem afirma que não há nada de substancial a ser recuperado com isso simplesmente não sabe fazer contas. Que conste, o governo francês acaba de vetar esta semana uma decisão da Assembleia Nacional de aumentar o investimento na reabilitação térmica de edifícios (€ 12 bilhões) e nas redes ferroviárias (€ 3 bilhões), explicando que não poderíamos nos dar ao luxo de tamanha generosidade. Fica a pergunta: o governo sabe contar ou está colocando os interesses de uma pequena classe à frente dos interesses do planeta e do conjunto da população, que precisa urgentemente de casas reformadas e trens que cheguem a tempo?
Para além desta tributação excepcional das 500 maiores fortunas, é obviamente todo o sistema tributário que precisa ser revisto, na França como em todos os países do mundo. Durante o século 20, o imposto de renda progressivo foi um enorme sucesso histórico. As taxas de imposto de 80-90% aplicadas às rendas mais altas sob o presidente Roosevelt e por meio século (81% em média de 1930 a 1980) coincidiram com o período de máxima prosperidade, inovação e crescimento nos EUA. Por uma razão simples: a prosperidade depende antes de tudo da educação (e os EUA estavam muito à frente do mundo naquela época) e não precisa de desigualdade estratosférica.
No século 21, precisamos estender esse legado a um imposto progressivo sobre a riqueza, com taxas de 80 a 90% para bilionários, e colocar os 10% mais ricos na lista dos pagadores de impostos. Acima de tudo, uma parte substancial da receita dos mais ricos deveria ser paga diretamente aos países mais pobres, proporcionalmente à sua população e à sua exposição às mudanças climáticas. Os países do Sul não podem mais esperar a cada ano que o Norte se digne a cumprir seus compromissos. É hora de pensar no mundo em construção, ou será um pesadelo.
Thomas Piketty é economista que se tornou figura de destaque no meio acadêmico internacional com seu livro “O Capital no século XXI” (2013), no qual defende, através da análise de dados estatísticos, que o capitalismo possui uma tendência inerente de concentração de riqueza nas mãos de poucos. Sua obra mostra que, nos países desenvolvidos, a taxa de acumulação de renda é maior do que as taxas de crescimento econômico.