Ao mesmo tempo que os trabalhadores da Ucrânia fazem enormes sacrifícios para defender o país do imperialismo russo, o Parlamento da Ucrânia aprovou duas leis que destroem os seus direitos e “as condições de trabalho em toda a Europa”. Perante este ataque, o movimento sindical pede à comunidade internacional que mostre forte apoio aos ucranianos contra as medidas impostas pelo governo neoliberal do partido Servo do Povo (Sluha Narodum, SN), de Volodymyr Zelensky.
Na sua página de internet, a European network for solidarity with Ukraine (ENSU), promotora da petição “O presidente Zelenskyy deve vetar as leis anti-laborais 5161 e 5371!”, destaca a sua solidariedade com o povo da Ucrânia, que “luta contra uma invasão brutal da Rússia de Putin” e afirma desejar “a vitória da resistência do seu povo sobre essa agressão criminosa”.
“No entanto, é com consternação que verificamos – bem no meio da sua luta de vida ou morte – que os trabalhadores da Ucrânia foram atacados numa segunda frente: leis que atacam os seus direitos laborais e condições de trabalho estão a ser adotadas pelo Parlamento ucraniano”, escreve o coletivo criado por membros de movimentos sociais, sindicatos, associações e partidos, da Europa Oriental e Ocidental, contrários “à guerra e a todas as formas de neocolonialismo no mundo”.
No texto da petição, é defendido que a legislação em causa deve ser substituída “por medidas que aumentem a segurança dos trabalhadores e permitam que os mesmos e as suas famílias sobrevivam à devastação da guerra e construam uma Ucrânia nova e mais forte”.
Expressando a sua “sincera solidariedade com o povo da Ucrânia diante da agressão russa”, “membros dos sindicatos europeus e globais” exortam Zelensky a “impor o seu veto presidencial às controversas leis 5371 e 5161 recentemente adotadas”. “Caso contrário, milhões de trabalhadores podem perder a sua proteção contra os abusos dos empregadores”, alertam.
Os sindicalistas e ativistas sociais expressam a sua preocupação perante a possibilidade de a implementação da Lei 5.161 (que introduz os contratos “zero hora”) e a Lei 5.371 (“Alterações a Certos Atos Legislativos para Simplificar a Regulamentação das Relações de Trabalho nas Pequenas e Médias Empresas e Diminuir a Carga Administrativa do Empreendedorismo”) resultar “na abolição efetiva de importantes direitos laborais e algumas das últimas proteções que protegem os trabalhadores contra as ações arbitrárias dos empregadores, casos que se tornaram mais frequentes neste tempo de guerra e recessão económica”.
A ser ratificada, a Lei 5371 permitirá que os empregadores “restrinjam contratualmente” os direitos dos trabalhadores em empresas que empregam até 250 trabalhadores. Ou seja, os direitos da grande maioria dos trabalhadores, o equivalente a cerca de 70%.
Para os trabalhadores, este “regime simplificado” traduzir-se-á em despedimentos arbitrários, horas extras por motivos espúrios ou desrespeito pelos acordos coletivos no que concerne ao pagamento de salários. Também comprometerá as possibilidades de os trabalhadores se sindicalizarem e poderem defender os seus direitos. Basicamente, o diploma estipula que o código nacional do trabalho deixa de se aplicar aos trabalhadores das pequenas e médias empresas.
Já de acordo com a nova legislação de contratos “zero hora”, os empregadores que optarem por recorrer a este tipo de contrato poderão convocar os trabalhadores à vontade, embora os contratos devam definir o método e o prazo mínimo para informar um trabalhador sobre o trabalho, e o tempo de resposta do trabalhador para concordar ou recusar-se a trabalhar. A legislação também diz que as pessoas empregadas nesses novos contratos devem ter garantido um mínimo de 32 horas de trabalho por mês, e que a percentagem de contratos com contratos de zero horas na empresa não pode ser superior a 10%.
A ENSU refere ainda que a aplicação das leis, que foram fortemente criticadas pelos sindicatos ucranianos e internacionais, agravaria a desigualdade social e dificultaria o diálogo social, e poderia minar as perspetivas da Ucrânia no que concerne à integração europeia. Efetivamente, a Comissão Parlamentar para a Integração da Ucrânia na União Europeia considerou a Lei 5371 incompatível com os padrões sociais mínimos do Acordo de Associação Europeu. A legislação também viola as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não cumpre uma série de normas mínimas consagradas na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, na Carta Social Europeia (revista) e noutros regulamentos da União Europeia.
Leis “protegerão os interesses de todos os empresários”
O partido no poder, Servo do Povo, citado pela Open Democracy, argumenta que a “extrema regulamentação excessiva do emprego contradiz os princípios da auto-regulação do mercado [e] moderna gestão de pessoal”. E alega que a burocracia nas leis de recursos humanos da Ucrânia “cria barreiras burocráticas tanto para a auto-realização dos funcionários quanto para aumentar a competitividade dos empregadores”.
Danylo Hetmantsev, um membro importante do partido de Zelenskyi, defendeu no início de julho, antes da aprovação dos diplomas, que se tratavam de “projetos de leis que os negócios estão à espera, projetos de leis que protegerão os interesses de todos os empresários. E os trabalhadores também, a propósito”.
“Um trabalhador deve ser capaz de regular a sua relação com um empregador. Sem o Estado”, assinalou Hetmantsev, chefe do comité de finanças do Parlamento ucraniano.
“Um passo desastroso em direção à precarização”
O advogado ucraniano especialista em direito do Trabalho George Sandul, da Labor Initiatives, disse anteriormente ao Open Democracy que os parlamentares usaram a invasão do país pela Rússia como uma “janela de oportunidade” para tentar promover mudanças drásticas na legislação laboral.
Nataliia Lomonosova, analista na organização não-governamental ucraniana Cedos, reforçou que a desregulamentação e a eliminação da proteção social já constituía uma política de longo prazo do governo ucraniano mesmo antes da guerra, e provavelmente fazia parte de um esforço para atrair investidores estrangeiros.
A ativista apontou o facto de ambas as leis aprovadas esta semana constarem de uma tentativa inicial do governo Zelenskyi e do partido no poder de desregulamentar a legislação laboral em 2020-21. Essa tentativa foi derrotada devido à mobilização dos sindicatos ucranianos. Lomonsova advertiu, no entanto, que, neste novo contexto de guerra e lei marcial, a luta pelos direitos laborais se encontra fortemente condicionada.
Vitaliy Dudin, especialista em legislação laboral e membro do Movimento Social, organização da esquerda ucraniana, referiu que os empregadores ucranianos “serão capazes de reduzir radicalmente os custos laborais”. Dudin alertou também que a legislação de contratos de zero horas pode traduzir-se em discriminações flagrantes, com empregadores a oferecerem empregos seguros para trabalhadores leais ou não sindicalizados, enquanto outros enfrentam empregos precários ou despedimentos discricionários. “Este é um passo desastroso em direção à precarização”, defendeu o ativista, sublinhando estar em causa “o próprio direito dos ucranianos que foram afetados pela guerra” a assegurar a sua subsistência.
Grupos sindicais europeus há muito criticam a tendência crescente de liberalização laboral na Ucrânia desde que Zelenskyi e o seu partido político, Servo do Povo, chegaram ao poder em 2019. Em 14 de julho, quando os rumores de uma nova votação sobre o projeto de lei 5371 se espalharam, três confederações sindicais europeias expressaram a sua preocupação de que o governo ucraniano e o partido no poder “continuassem a rejeitar os valores da UE de diálogo social e direitos sociais”.
“Estamos fortemente preocupados com a continuidade das reformas laborais regressivas após o término da emergência da guerra”, enfatizaram.
László Andor, ex-comissário da União Europeia (UE) para o Emprego, Assuntos Sociais e Inclusão disse ao Open Democracy considerar que a nova legislação sugere que a Ucrânia está a ir numa “direção completamente diferente” das normas da UE sobre trabalho decente. “Este caso é uma grande dose de oportunismo”, disse Andor, agora secretário-geral da Fundação para Estudos Progressistas Europeus, um think tank de Bruxelas.
Fonte: Esquerda
Data original da publicação: 30/07/2022