Ao avançar para o ramo dos serviços financeiros e da gestão de dívidas, a Uber consolida a sua gestão de negócio assente na precariedade e controle sobre os trabalhadores, aliando ao modelo perverso de exploração laboral a lógica coerciva da dívida.
Vicente Ferreira
Fonte: Esquerda.net, com ajustes para o português do Brasil
Data original da publicação: 12/12/2019
Há um par de dias, um artigo publicado no The Guardian por Veena Dubal, professora de Direito na Universidade da Califórnia e colunista do jornal britânico, chamava a atenção para os novos planos da Uber com a criação da equipe Uber Money, cujo objetivo declarado é “fornecer serviços financeiros e tecnologias avançadas” aos seus motoristas. Dubal considera que a empresa se prepara para reproduzir nos EUA o modelo que já está sendo desenvolvido em países como o Brasil, a Índia ou o Peru, em que fornece créditos de curto prazo (os chamados “payday loans“) aos motoristas, a serem pagos com horas de trabalho adicionais. Além disso, o objetivo da Uber Money é entrar no ramo dos serviços financeiros e passar a fornecer produtos que vão desde contas bancárias a cartões de crédito – a empresa afirma que pretende “dar às pessoas acesso a serviços financeiros dos quais estavam excluídas.”
No entanto, a concessão de empréstimos de curto prazo ou cartões de crédito aos motoristas precários não resolve os problemas de vulnerabilidade econômica. Na verdade, o fornecimento de serviços financeiros a pessoas e comunidades marginalizadas com termos abusivos (taxas de juro incomportáveis, prazos de pagamento apertados, entre outros) constitui o que alguns sociólogos têm descrito como processo de inclusão predatória, que reproduz e acentua as desigualdades, como lembra a autora. A precarização como modelo de negócio não é novidade para a “economia do compartilhamento”.
Este simbolismo do compartilhamento esconde a natureza das relações laborais por detrás destes serviços. Apesar de ter 4 milhões de condutores em mais de 700 cidades pelo mundo, a Uber apenas emprega oficialmente 22.000 trabalhadores – a empresa consegue este truque ao não reconhecer os condutores dos veículos como trabalhadores da empresa, mas como motoristas independentes. Para efeitos legais, a Uber limita-se a gerir a aplicação digital que coloca em contato os motoristas com as pessoas que procuram o serviço de transporte, não assumindo responsabilidade pelas condições de trabalho e proteção social dos trabalhadores. Sob a ilusão de se tornarem “os seus próprios patrões” e terem controle sobre quando e quanto trabalham, os trabalhadores não são reconhecidos como tal e não têm direito a dias de férias, faltas por doença ou subsídios, enquanto a Uber estende o seu domínio sobre todos os aspectos da nossa vida.
Apesar de instituições como o Tribunal de Justiça da União Europeia ou estados norte-americanos como a Califórnia ou Nova Jersey terem classificado a Uber como empresa de transportes e exigido que cumprisse a legislação em vigor, reconhecendo a existência dos motoristas como empregados e assegurando os seus direitos, a verdade é que o modelo se tem mantido.
Ao avançar para o ramo dos serviços financeiros e da gestão de dívidas, a Uber consolida a sua gestão de negócio assente na precariedade e controle sobre os trabalhadores, aliando ao modelo perverso de exploração laboral a lógica coerciva da dívida. Ao fazê-lo, crê Dubal, “a Uber prova novamente que o seu maior argumento – que proporciona liberdade aos condutores – é também a sua maior mentira.” Precisamos de mobilização para a travar.