“Ah, mestre Gonzaguinha! Como seria bom receber carinho e atenção, calor no coração, suar, mas de prazer, ter saúde…”
Maria Regina Paiva Duarte
Fonte: Brasil de Fato
Data original da publicação: 19/01/2021
Gonzaguinha, nome artístico de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, brilhante compositor e músico brasileiro, quem diria, formou-se em economia na Universidade Cândido Mendes/RJ. Mas foi pela música que o conhecemos. Sua primeira composição data de 1959, quando tinha apenas 14 anos. Crítico à ditadura, era seguido de perto pelo DOPS. Das 72 canções apresentadas ao órgão, 54 foram censuradas!
À parte o sucesso encontrado ao longo da carreira, Gonzaguinha sintetizou, na letra de sua canção “É”, de 1988, os desejos de um povo que recém havia vencido a ditadura. Neste ano, o da implementação da nova Constituição da República, os ventos sopravam a favor da liberdade, da igualdade e de uma perspectiva de um país melhor:
“A gente quer viver pleno direito
A gente quer viver todo respeito
A gente quer viver uma nação
A gente quer é ser um cidadão
A gente quer viver uma nação”
Passados mais de 30 anos da canção, o povo brasileiro ainda não encontrou seus plenos direitos, ou todo respeito. É difícil ser um cidadão; mais fácil ser consumidor. Viver uma nação? Estamos distantes ainda.
Afinal, um ano depois da Constituição Federal de 1988 (CF/88), o governo brasileiro dava sinais de que o financiamento do Estado, via tributação, seria mais leve aos mais ricos. A tabela do IRPF foi alterada naquele ano, passando a ter apenas duas alíquotas. A liberalização e a abertura do país do início dos anos 1990, sem o devido planejamento, o confisco das poupanças e a política econômica davam pistas do que viria pela frente: a aplicação, à risca, das medidas liberais ditadas pelo Consenso de Washington.
O que vimos então, desde a década de 1990 do século passado, foi uma caminhada vigorosa em direção à desoneração dos rendimentos do capital e a elevação da tributação sobre consumo. Foram medidas legais, numa espécie de reforma tributária silenciosa, que começaram com a redução das alíquotas marginais do IRPF de 45% para 25% e a isenção do IR sobre lucros e dividendos distribuídos na Pessoa Física.
Na Lei 9.249/95, a mesma que desonerou distribuição de lucros e dividendos, surgiu a mais famosa jabuticaba tributária, conhecida como Juros sobre capital Próprio (JCP). O JCP é uma espécie de despesa fictícia que a empresa deduz do seu IR e paga aos acionistas como dividendo, digamos assim, tributados a 15% (abaixo da tabela do IRPF, inclusive). Ou seja, o lucro que deveria ser tributado à taxa nominal de 34% (25% IR + Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL) passou a ser tributado a 15%. E a distribuição não era isenta e passou a ser. Então, no conjunto, as medidas reduziram a tributação sobre o lucro.
E como foi compensada essa diminuição da tributação sobre o capital? Deslocando-a para o consumo. Em 1998, a alíquota do Cofins passou de 2 para 3% e a CPMF de 0,2 para 0,38%. Como resultado dessa reforma tributária silenciosa, ou sorrateira, a Carga Tributária saiu de 24,4% em 1995 para 31,9% em 2002, sendo que esse aumento recaiu sobretudo no andar de baixo, e ajudou os mais ricos a pagarem poucos impostos, concentrando a renda e riqueza no andar de cima e agravando o quadro de desigualdade.
Como dizia Osiris Lopes Filho, ex-secretário da Receita Federal e professor da Universidade de Brasília, vivemos no paraíso fiscal do capital e no inferno tributário do assalariado e do pequeno empresário.
Outra vez recorro à canção de Gonzaguinha:
“A gente quer valer o nosso amor
A gente quer valer nosso suor
A gente quer valer o nosso humor
A gente quer do bom e do melhor
A gente quer carinho e atenção
A gente quer calor no coração
A gente quer suar, mas de prazer
A gente quer é ter muita saúde
A gente quer viver a liberdade
A gente quer viver felicidade”
Ah, mestre Gonzaguinha! Como seria bom receber carinho e atenção, calor no coração, suar, mas de prazer, ter saúde… Seria muito bom, mas parece que isso é para poucos. Em plena pandemia, num intervalo de cinco meses, 42 bilionários brasileiros aumentaram suas fortunas em valores equivalentes a um orçamento anual do SUS, conforme dados da Oxfam. Isso ocorreu enquanto milhares de brasileiros perderam seus empregos, tiveram que fechar seus pequenos negócios, ficaram sem renda, e tantos outros foram obrigados a trabalhar em circunstâncias precárias para sobreviver.
Então veio o auxílio emergencial. A proposta do governo era de pagar apenas R$ 200,00, mas a pressão popular e alteração no Congresso Nacional conseguiram elevar o valor para R$ 600,00. Ao final do ano, como se já tivesse passado a crise sanitária e a econômica, o governo extinguiu o auxílio. E deixou milhares literalmente suando, mas de medo, preocupados em garantir alimento e dignidade. Não foram poucas as pessoas que receberam auxílio: foram 32 milhões de brasileiros e brasileiras.
É essencial, neste contexto, seguir pagando auxílio emergencial. E de onde podemos obter recursos? Tributando as grandes fortunas, historicamente subtributadas. Por meio de alterações na legislação podemos alcançar as grandes fortunas, conforme proposta apresentada pelo IJF e mais de 70 entidades da sociedade civil na campanha Tributar os Super-Ricos.
Tributar grandes fortunas não implica em fuga de investimentos, especialmente com as alíquotas residuais que estão sendo propostas. Se medir a riqueza e cobrar o imposto é difícil, que se fortaleça a administração tributária. Afinal, somos o segundo país com maior concentração de renda no topo da pirâmide social e o sétimo país com maior número de bilionários.
Neste sentido, a Campanha Tributar os Super-Ricos propõe tributar as grandes fortunas, sim, mas também tributar mais a renda. Reduzir desigualdades sem tributar as fortunas e as altas rendas é impossível. São medidas complementares e necessárias, ainda que tentem nos fazer crer que o imposto sobre grandes fortunas seja ineficiente, pouco efetivo e arrecade pouco. Não se pode desprezar R$ 40 bilhões!
Precisamos fazer justiça, tributar as grandes fortunas, mesmo que a Receita Federal e o Ministério da Economia não pensem assim. Dizem por aí que “a Receita só pega pequeno, quero ver cobrar dos grandes”. A oportunidade de fazer a mudança, retirar essa imagem negativa, está posta.
Afinal, queremos viver a liberdade e a felicidade, como escreveu e cantou o saudoso Gonzaguinha. E desejamos mudanças.
“É!
A gente não tem cara de panaca
A gente não tem jeito de babaca
A gente não está
Com a bunda exposta na janela
Pra passar a mão nela”
Maria Regina Paiva Duarte é Presidenta do Instituto Justiça Fiscal (IJF).