Tributação regressiva e estagnação econômica

Um sistema tributário justo e progressista é aquele capaz de mitigar ou reverter quadros histórico-estruturais de desigualdades extremas.

José Carlos Cardoso Jr. e Eduardo Fagnini

Fonte: A Terra é Redonda
Data original da publicação: 14/06/2022

Como romper o ciclo vicioso da concentração de renda e da estagnação econômica no Brasil? Aqui, a tributação regressiva e a financeirização da riqueza e das próprias finanças públicas têm funcionado como mecanismos de concentração de renda e esterilização do potencial produtivo do fundo público no país. Por um lado, isso restringe e penaliza a capacidade de consumo e o poder de compra real da grande maioria da população, e por outro, afeta de forma estrutural o potencial de crescimento econômico e de bem-estar dessa sociedade.

A razão disso é que a tributação no Brasil é altamente regressiva e está na contramão dos países capitalistas relativamente menos desiguais. Temos um sistema marcado por elevada tributação incidente sobre o consumo de bens e serviços e reduzida tributação das altas rendas e dos grandes patrimônios. Com isso, o peso dos tributos indiretos captura parte expressiva da renda dos pobres, ao mesmo tempo que obtém parcela apenas residual da renda das classes mais abastadas.

Como se sabe, a origem do fundo público deriva de relações econômico-monetárias presentes em processos amplos por meio dos quais a arrecadação primária do governo se realiza, mas ela tem sido apropriada, de forma crescente, por poucos e privilegiados agentes privados que detêm poder econômico. Desta maneira, o sistema tributário brasileiro configura-se sob medida para o fenômeno da financeirização, tal qual demonstrado no livro Dominância financeira e privatização das finanças públicas no Brasil (Cardoso Jr, J. C. e Marques, R. – Fonacate, 2022).

No Brasil, a transmutação do fundo público se processa por meio da montagem de um arranjo normativo e institucional que vem cristalizando formas financeiras de valorização dos fluxos de renda e estoques de riqueza para a sua realização dinâmica intertemporal. Em outras palavras: quase todos os segmentos econômicos, sociais e territoriais do país contribuem, por meio das diversas formas de tributação existentes, para a formação do fundo público nacional, porém, uma parte crescente dele se transmuta em gasto público financeiro destinado à rolagem e/ou abatimento da dívida governamental previamente contraída. Configura-se, assim, um regime de dominância financeira fortemente intermediado pelas finanças públicas nacionais.

Ora, sabemos que em uma economia monetária da produção, cujo país emite sua própria moeda e as dívidas e demais haveres financeiros estão expressos nessa moeda, o governo não precisa arrecadar antes para gastar depois, pois em última instância ele sempre vai poder emitir para se autofinanciar, ainda que, em condições de pleno emprego dos fatores de produção, isso possa gerar inflação e outros desequilíbrios reais na economia como resultado não desejável dessa prática.

De todo modo, mesmo sendo assim, é necessário que haja um sistema de tributação obrigatório e preferencialmente progressivo, se um dos objetivos desse país for também produzir justiça tributária e redistributiva, a ser honrado nessa moeda de curso legal, de modo que os agentes econômicos tenham que demandar e usar essa moeda para pagar os respectivos tributos e também para realizar suas próprias transações privadas, legitimando-a como moeda nacional preferencial, ao mesmo tempo que reconhecem e legitimam o próprio poder político do Estado no campo da criação e gestão da moeda nesse espaço geográfico.

Por esta razão, assim como nas crises do século passado, a tributação progressiva sobre as altas rendas e a riqueza voltaram a ser recomendadas pelo establishment internacional. Ou seja, são as próprias instituições internacionais (tais como o FMI, OCDE, Banco Mundial e CEPAL, por exemplo) e governos de países centrais (como os EUA e outros) que estão propondo “gastar mais”. “Por favor, gaste. Gaste o máximo que puder e depois gaste um pouco mais”, disse Kristalina Georgieva, diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI).[i]

Além de “gastar mais”, esses atores propõem “tributar mais”, tanto as altas rendas e riquezas como os lucros extraordinários das grandes corporações, para financiar serviços essenciais. Nessa linha, é emblemática a visão do comentarista econômico da Financial Time, para quem “taxar e gastar pode virar o novo normal na economia”.[ii] O próprio FMI propõe ampliar a “progressividade de impostos sobre grupos mais afluentes e menos afetados” pela crise.[iii] A tributação sobre herança é “o imposto certo na hora certa”, afirmou o chefe de políticas tributárias e estatística da OCDE.[iv]

Economistas do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) também preconizam a tributação progressiva para enfrentar o cenário pós-crise: “os impostos são o preço que pagamos por uma sociedade civilizada”. No caso do Plano Biden, parte do seu financiamento virá do Plano Tributário Made in America, que amplia a tributação das altas rendas e riquezas das pessoas físicas, corporações e grandes multinacionais.

No Brasil, portanto, reduzir a desigualdade e ampliar a justiça fiscal é imperativo civilizatório, pois somos uma das nações com o maior abismo entre ricos e pobres do mundo e nosso sistema tributário é um dos mais regressivos do planeta. O país atravessa a sua maior crise sanitária, socioeconômica e humanitária da história, o que contrasta com o formidável enriquecimento dos seus bilionários desde o início da pandemia. Assim sendo, num país heterogêneo, desigual e injusto como o nosso, os sistemas tributário e fiscal necessitam cumprir papéis socialmente reparadores e economicamente redistributivos.

Para tanto, urge superar dois mitos liberais, segundo os quais: (i) a melhor tributação seria aquela que se propõe neutra do ponto de vista da incidência de impostos sobre as distintas classes de renda; e (ii) a desigualdade de renda seria economicamente benéfica ao estimular maior esforço e desempenho individual, responsável – sempre de acordo com a lógica econômica concorrencial – por maior produtividade, salários e, ao fim e ao cabo, maior bem-estar para todos.

Contra tais argumentos, é preciso lembrar que estudos recentes vêm demonstrando que a desigualdade é, em sociedades capitalistas, tanto um mal social em si, pela desagregação coletiva e infortúnios pessoais que acarreta, como também um mal econômico e político. Do ponto de vista econômico, a desigualdade exacerba a ineficiência geral da economia, já que sociedades economicamente desiguais significam contingentes imensos de populações em idade ativa ou desocupadas/desempregadas/desalentadas, ou inseridas em postos de trabalho precários, geralmente associados a baixos níveis de produtividade e remunerações, instabilidade e insegurança acerca de suas posições no presente a futuro, além de ausência ou precariedade de esquemas de proteção social contra riscos e incertezas do mercado.

Já do ponto de vista político, hoje em dia já está claro que sociedades desiguais contribuem para a deslegitimação da democracia, uma vez que contingentes imensos de populações são impedidos de participar dos processos decisórios cruciais do país, bem como constrangidos a votar tendo como horizonte de cálculo apenas o curto prazo e o imperativo da sobrevivência imediata, situações que favorecem a mercadorização e a desqualificação do voto, bem como a formação de coalizões e governos conservadores pouco comprometidos com soluções estruturantes de médio e longo prazos.

Por tudo isso, um sistema tributário justo e progressista é aquele capaz de mitigar ou reverter quadros histórico-estruturais de desigualdades extremas, tais como se observa no Brasil desde sempre. Para tanto, ele precisa ser progressivo na arrecadação de tributos e redistributivo no gasto público.

Ser progressivo na arrecadação significa dizer que ele precisa ser capaz de taxar/recolher proporcionalmente mais dos mais ricos que dos mais pobres, inclusive tornando isento de recolhimento/pagamento de impostos as classes sociais mais vulneráveis, sem renda suficiente sequer para seu próprio sustento e manutenção. Esse princípio da progressividade arrecadatória precisa ser aplicado tanto aos estoques de riqueza patrimonial e financeira dos diversos grupos econômicos, como sobre os fluxos de renda real e financeira dos mesmos.

Por sua vez, o combate às desigualdades nessas sociedades precisa ser complementado com medidas de redistribuição dos estoques e fluxos de riqueza real e financeira, dos mais ricos aos mais pobres, por meio de políticas públicas sob comando do Estado, mas a serviço das populações mais vulneráveis. Isso pode se dar tanto através de políticas permanentes de valorização sustentada dos salários de base da economia, como por programas de transferência direta de renda monetária, nos moldes de uma renda básica universal de cidadania, seguindo o critério de que apenas aqueles que demandem institucionalmente essa necessidade serão atendidos, como ainda através da universalização plena de acesso dessa população aos bens e serviços públicos essenciais da contemporaneidade, tais como saúde, assistência familiar/domiciliar, educação, trabalho, renda e proteção previdenciária na velhice.

Trata-se aqui, portanto, de uma proposta radical de justiça social para a equidade tributária e fiscal, que transforma o Estado em agente central do processo de combate às desigualdades e de equalização de oportunidades por meio da equalização dos resultados distributivos dessa sociedade. A hora da virada civilizatória para este caminho é agora, e parece que já começou.

Notas

[i] “Gaste o máximo que puder, e depois um pouco mais”, diz FMI aos governos do mundo todo. R7, 16/1/2021. https://livecoins.com.br/gaste-o-maximo-que-puder-fmi/

[ii] “Taxar e gastar pode virar o novo normal na economia”, Martin Sandbu, Financial Times.  Valor, 5/8/2020. https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/08/05/taxar-e-gastar-pode-virar-o-novo-normal-na-economia.ghtml

[iii] Por que taxar mais ricos pode ser saída para países endividados após pandemia, na visão do FMI. Alessandra Corrêa da BBC News Brasil, Folha, 14/10/2020. https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/10/14/por-que-taxar-mais-ricos-pode-ser-saida-para-paises-endividados-apos-pandemia-na-visao-fmi.htm?cmpid=copiaecola

[iv] Taxar herança é ‘imposto certo no momento certo’, afirma OCDE. Folha de S.Paulo, 11/05/2021. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/05/taxar-heranca-e-imposto-certo-no-momento-certo-afirma-ocde.shtml

José Celso Cardoso Jr., doutor em economia pela Unicamp, é servidor público federal no Ipea e atual presidente da Afipea-Sindical.

Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp.

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