Passa da meia-noite.
A Lua é a única fonte de luz sobre as ruas de terra e a passarela que cruza um pequeno rio em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo. O coaxar de sapos, barulhos indecifráveis em meio à escuridão e a incerteza do que pode surgir da mata aceleram o batimento cardíaco e apertam o passo de Sidinéia Aparecida Chagas, de 27 anos.
À noite, o caminho de 1 km do ponto de ônibus até sua casa parece muito mais longo que de dia, diz ela.
Esse é o último trecho do caminho da gestora de uma biblioteca comunitária após um dia de trabalho e faculdade, intercalados por uma saga de 5 horas dentro de seis ônibus diferentes antes de rever o marido e o filho de 9 anos.
“A sensação é de desespero. Mulheres foram estupradas neste caminho e a minha irmã já foi assaltada. Ontem mesmo ouvi um barulho vindo da mata e saí correndo desesperada até chegar em casa”, conta. Ela disse que o marido não vai buscá-la no ponto de ônibus porque prefere que ele fique em casa cuidando do filho.
“Fizemos este acordo porque entendemos que é mais perigoso uma criança ficar em casa sozinha do que eu andar na escuridão. Sem opção, eu não ligo o celular para não chamar a atenção e torço para que pelo menos tenha alguém para me acompanhar. Se alguma coisa acontecer, não tem sinal de celular para pedir ajuda nem pessoas perto para pedir socorro. A única saída é fugir para o mato”.
Durante uma semana, a BBC News Brasil acompanhou o trajeto diário de três trabalhadores que passam até um terço de suas vidas dentro de ônibus ou trem. Uma pesquisa feita em parceria pelo Ibope e a Rede Nossa São Paulo em setembro de 2018 revelou que o tempo médio de deslocamento dos paulistanos é de 2h43 por dia.
Mas a rotina do zelador Ludovico Jesus Tozzo, de 58 anos, se descola desses números. Ele conta que quase nunca vê a luz do dia ao lado da mulher, de seus dois filhos e netos porque passa cerca de 7h de seu dia no trajeto de ida e volta do trabalho. Quando há um acidente, chove ou é época escolar, passa facilmente das 8h – um terço da vida sendo enxergada por meio de uma janelinha de ônibus.
Às 4h40, ele dá um beijo na mulher, guarda a marmita na mochila e anda apressado pelas ruas sem calçada do Jardim do Sol, em São Mateus (extremo leste de São Paulo), em direção ao ponto de ônibus. Em 15 minutos, ele chega à primeira das três conduções que usa em seu trajeto até a Vila Andrade, na zona sul.
São 40 km que separam a casa do zelador – três horas para ir e outras quatro para voltar. Logo no primeiro micro-ônibus, ele se junta a dezenas de outros trabalhadores rumo à estação Itaquera do metrô – da casa dele. Até lá, são 40 minutos em pé no transporte.
Desde o último domingo, as pessoas que moram longe enfrentam ainda mais uma barreira no transporte público paulistano. Desde então, as passagens de Metrô, trens e ônibus passaram de R$ 4 para R$ 4,30. A integração entre os modais, usada por quem mora longe, foi de R$ 6,96 para R$ 7,48.
Horas perdidas
O urbanista especializado em trânsito Flamínio Fichman diz que os trabalhadores entrevistados pela reportagem “são como escravos”, pois o tempo que eles gastam com trabalho e transporte praticamente os impede de ter lazer e cultura.
Para Fichman, entretanto, a melhor solução para resolver o problema da mobilidade não é investir prioritariamente em transporte público, mas, sim, em reduzir a distância entre o empregado e o emprego.
“Temos sim que aumentar nossa malha de trem, metrô e corredores de ônibus, mas isso só vai remediar temporariamente. A solução é aproximar as empresas e o comércio do domicílio, mudar o uso do solo. Isso porque a gente está com uma cidade muito grande, que passou do limite. É necessário levar o trabalho para onde as pessoas residem através de uma legislação que reduza impostos e incentive o deslocamento de empresas para as periferias. Também é necessário construir mais habitações populares no centro”, afirmou.
Questionado, o Governo de São Paulo afirmou que vai construir 3.683 moradias populares no centro da capital “justamente para aproximar o local de moradia do local de trabalho”. Em nota, a Secretaria Estadual da Habitação disse que “80% das unidades do projeto serão para inscritos que moram fora da área central e que tenham pelo menos um membro da família trabalhando no centro da cidade”.
A Secretaria Estadual de Transportes, por sua vez, diz que vai fazer uma “expansão significativa” dos transportes em massa, mas sem dizer quanto vai aumentar até o fim da gestão. A prefeitura promete construir 72 km de corredores até 2020.
A gestão municipal informou ainda que 35 imóveis localizados no centro expandido serão destinados para a moradia social. A prefeitura diz que também implantará um plano que propõe aumentar a população na região, com incentivo à oferta de empregos e serviços.
O urbanista entrevistado pela BBC News Brasil explica que a superlotação nos transportes foi causada principalmente por uma valorização constante das áreas centrais da cidade. Isso fez a população mais pobre morar cada vez mais longe por não conseguir comprar um imóvel na região e necessitar se deslocar por horas para ter acesso a serviços de qualidade, como parques, museus e shoppings.
“As pessoas fazem muitas compras no centro expandido. É necessário reforçar os subcentros localizados em áreas mais distantes, como Itaquera, São Miguel Paulista e Tucuruvi. Investir em mercados municipais, comércio local e serviços mais distantes do centro. O poder público também deve descentralizar as atividades culturais, bibliotecas e levar opções de lazer de qualidade para a periferia”, afirmou.
A prefeitura diz que há 83 parques em áreas consideradas periféricas e que oferece incentivos fiscais para empresas na zona leste, “com o objetivo de aumentar a oferta de empregos em locais densamente povoados da periferia”. Segundo a administração, mais de 20 empresas se instalaram na região por meio desse programa.
Outra solução, segundo Flamínio Fichman, é o incentivar o home office, o trabalho em casa.
“Isso tem que ser considerado pelas empresas porque tem muita gente saindo de casa para trabalhar sem necessidade. Gente que pode ficar em casa com seu notebook está se deslocando à toa. Os serviços de entregas e o e-commerce também devem receber incentivos, pois contribuem para evitar deslocamentos desnecessários”, disse.
A gerente de biblioteca Sidinéia inicia sua jornada diária às 8h em direção à biblioteca comunitária onde trabalha no bairro Colônia, no mesmo distrito onde mora, em Parelheiros. De lá, às 17h, ela pega um ônibus até a faculdade onde cursa administração, em Santo Amaro, também na zona sul. No trajeto de ida e volta são seis conduções, que totalizam cinco horas por dia no transporte público.
“O maior problema é o caminho de casa até o ponto de ônibus porque tenho que atravessar uma ponte por cima de um pequeno rio. Se chove, é certeza que você vai chegar no trabalho com a roupa suja de barro ou com água espirrada pelos carros. Mas se está seco, sobe uma poeira e você chega com o tênis sujo e o cabelo cheio de terra. Difícil escolher quando é menos pior. O jeito é levar um paninho na bolsa para limpar pelo menos os sapatos”, conta.
Se tivesse mais tempo, ela conta que poderia “fazer um curso, ficar mais tempo com o filho ou dormir. Até mesmo no ônibus eu poderia fazer parte dessas coisas se eu conseguisse me sentar”, diz.
Estratégias
Ao longo de anos de experiência no transporte, os trabalhadores entrevistados pela reportagem desenvolveram técnicas para economizar dinheiro e ter mais chances de conseguir um assento no ônibus ou trem – ou ao menos evitar fazer a viagem “esmagado”.
A empregada doméstica Marlene Fernandes de Lima, de 59 anos, por exemplo, faz a chamada “rota negativa”. A estratégia é começar a viagem no sentido oposto ao que quer ir, para descer numa estação com mais chances de conseguir um assento e, aí sim, seguir no sentido correto.
“Faço isso porque ninguém oferece o lugar. Só levantam quando entra (no metrô) uma gestante ou um idoso com mais de 70, 80 anos. Para não levantar, eles fingem que estão dormindo ou mexendo no celular”, conta ela.
Marlene relata que o excesso de viagens em pé a deixa cada vez mais dia mais cansada e desgastada.
“Isso piorou depois que passei dos 50 anos. O pior é que eu chego em casa e ainda preciso fazer comida, lavar louça e limpar a casa. Tenho sorte porque minha filha mora do meu lado e muitas vezes limpa tudo antes de eu chegar”, diz a empregada doméstica.
A primeira parte da jornada de Marlene começa em Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo, às 4h20, e termina no Ipiranga, na zona sul da capital, às 7h. A volta tem a mesma duração.
“Se eu perdesse menos tempo, eu poderia ficar mais em casa ou até passeando. É triste pensar nessa vida perdida. Eu já pensei em desistir, mas não dá para ficar sem trabalhar, ainda mais agora que fiquei viúva. Quero trabalhar só mais dois anos até eu me aposentar porque eu não aguento mais”, conta ela.
Já Ludovico usa uma estratégia econômica. Para não pagar mais uma passagem, ele não passa a catraca do ônibus até chegar à sua primeira baldeação em Itaquera.
“Como eu demoro mais de três horas para ir de casa ao trabalho, se eu passar o Bilhete Único logo quando entro no ônibus, perco a integração e tenho de pagar mais uma passagem”, explica.
A Prefeitura de São Paulo confirmou que o Bilhete Único Vale-Transporte e o Bilhete Único Estudante podem ser usados em até quatro veículos diferentes durante duas horas, Porém, disse que não há nenhum projeto para mudar essa regra.
Depois de Itaquera, o caminho de Ludovico continua pela linha vermelha do metrô até a estação Anhangabaú, onde desce e caminha até o terminal Bandeira. De lá, ele embarca em outro ônibus e, depois de 40 minutos de viagem, ainda faz mais uma caminhada de 15 minutos até o prédio onde trabalha como zelador.
Ele disse que já tentou diversos caminhos e estratégias diferentes para reduzir o tempo do trajeto. Segundo ele, essa é a melhor opção porque, além de demorar o mesmo tempo do trem, evita caminhadas mais longas.
“Eu não sou mais um menino. Trabalho todos os dias e só folgo uma vez por semana, sábado ou domingo. Então, evito caminhar mais do que eu preciso”, diz o zelador.
Ciclo de pobreza
O professor de economia da Fundação Getúlio Vargas e do Mackenzie Raphael Bicudo diz que essa perda de tempo no transporte público causa um fenômeno chamado de ciclo intergeracional de pobreza.
“Os pais dessas pessoas viveram em situação pior ou semelhante a elas e, salvo raras exceções, seus filhos não conseguirão romper esse ciclo e também viverão assim. Isso ocorre porque as dificuldades fazem essas pessoas terem uma perda de oportunidade e ascensão social. Elas não conseguem se dedicar a cursos, faculdades e têm dificuldades para chegar pontualmente em entrevistas e no trabalho porque dependem de ônibus e trens e algumas ainda enfrentam enchentes”, afirmou.
Ele explica que isso dificulta, e muito, principalmente a vida dos trabalhadores mais pobres. Em seu ponto de vista, isso torna desigual a competição por uma vaga no mercado de trabalho.
“A longo prazo, isso causa um desgaste físico e emocional, que resulta numa perda de produtividade. Isso faz com que essas pessoas sejam inseridas em empregos com salários menores e precários. Eu tenho alunos que saem 23h da faculdade, chegam 1h em casa e acordam às 4h para o trabalho. Como essa pessoa pode concorrer a uma vaga com outra que vai à faculdade de carro com ar condicionado e não precisa trabalhar?”.
O urbanista Flamínio Fichman diz que essa é a realidade de outras cidades brasileiras que tiveram um grande crescimento populacional nas últimas décadas, como Rio de Janeiro, Salvador e Belo Horizonte.
“Isso ocorre no país inteiro onde há uma taxa de crescimento populacional desenfreada. Florianópolis (capital de SC), por exemplo, é outra cidade que está perdendo muito em conforto por causa desse crescimento que ela não comporta mais. Outra cidade que piorou muito é Curitiba, no Paraná. O Governo Federal precisa incentivar que cidades não cresçam de maneira desordenada como São Paulo”, afirmou.
Sonhos
Com tanto tempo gasto apenas com deslocamentos entre o trabalho e a casa, os trabalhadores entrevistados quase não conseguem ter um momento de lazer e cultura. Mas têm muitos sonhos e a esperança de ter uma vida menos corrida no futuro.
Ao serem questionados pela reportagem sobre quais eram seus maiores sonhos, a resposta foi unânime: viajar.
Sidinéia diz que seu maior desejo é conhecer o continente africano, principalmente Guiné-Bissau.
“Eu sou apaixonada pelas histórias que são contadas. Aqui no Brasil, porém, nosso passado é negado o tempo todo. Hoje, para eu me reconhecer como mulher negra, eu tive de passar por um processo. Mesmo assim, eu não me vejo em lugares em que eu frequento. Para mim, conhecer Guiné-Bissau é conhecer uma realidade diferente do que a imprensa mostra, de que é um lugar feio e sem prosperidade”, conta.
Já Marlene conta que nunca saiu do Estado de São Paulo em seus 59 anos de vida. O lugar mais longe que ela visitou foi a cidade de Avanhandava, a 470 km da capital paulista, viagem feita em seis horas, o mesmo tempo que ela gasta para ir e voltar do trabalho. Um voo de São Paulo para Recife demora três horas.
“Eu já fui lá algumas vezes visitar a minha irmã lá (Avanhandava). Mas eu quero conhecer outras cidades, passear. Eu gostaria de conhecer Recife. Meu sonho é andar de avião”, conta.
O sonho de Ludovico, que também nunca saiu do Estado de São Paulo, é conhecer o Nordeste e o Norte.
“Se Deus me ajudar que eu me aposente, eu queria conhecer outros lugares. Só conheço a Baixada Santista (litoral) e Sorocaba (97 km de SP). Eu queria conhecer a Bahia, Fortaleza, Amazonas. Tudo no Brasil mesmo”, conta.
Hoje, ele conta que já se sente realizado quando consegue chegar em casa antes dos filhos irem para a cama ou dormir mais de seis horas numa noite.
Fonte: BBC News Brasil
Texto: Felipe Souza
Data original da publicação: 14/01/2019