Transparência para melhorar a repartição de renda

Antonio David Cattani

Colaboração: Raquel Paese

O conflito distributivo é um acontecimento inevitável na organização capitalista da produção. A repartição dos frutos da produção social é decisivamente marcada pela correlação das forças organizadas da sociedade. De um lado, os detentores do capital procurando aumentar seus lucros por meio da redução dos salários e dos impostos e, também, com frequência, graças a vantagens extraordinárias obtidas fora da esfera produtiva, como é o caso dos subsídios governamentais. Na outra ponta, os trabalhadores tentando ampliar a remuneração do seu esforço na esfera produtiva. No meio, o governo. De acordo com sua capacidade e orientação política, este pode beneficiar o lado dos trabalhadores via programas sociais ou via proteção de direitos coletivos, incluindo-se a determinação do valor do salário mínimo; ou o lado patronal, repassando recursos diretos ou indiretos para as empresas.

A disputa capital-trabalho ocorre num primeiro momento na órbita da empresa ou das empresas de um mesmo setor, sendo as negociações intermediadas habitualmente pelo sindicato da categoria. Não havendo acordo entre as partes, existe a possibilidade de se ampliar a pressão: ameaças de demissão e lockouts pelas empresas; operações tartaruga, greves etc. pelos trabalhadores; e quando nada mais adianta, existe a possibilidade de recorrer ao arbitramento judicial para solução do conflito. Entretanto, esse recurso tem sido cada vez menos utilizado, sendo substituído frequentemente pelo entendimento entre as partes. Como sabem todos os participantes do processo ou os observadores isentos, não existe nenhum critério técnico ou científico para definir a justa ou correta retribuição para cada parte; da mesma forma, não existe princípio religioso, político ou moral que faça os empresários pagarem mais do que a média do mercado ou que leve os trabalhadores a abrirem mão dos salários pretendidos. Cada lado tentará obter o máximo possível na disputa pela repartição da renda.

No Brasil, nessa primeira fase do conflito distributivo, trabalhadores ou sindicatos são penalizados pela falta de informações sobre a exata situação das empresas. Patrões e seus representantes (diretores de RH, gerentes ou negociadores contratados) dispõem de uma vantagem decisiva: a posse de dados financeiros e econômicos da empresa (produção, receitas e despesas, investimentos etc.) que podem ser jogados na mesa de negociação, e o são quando os dados são desfavoráveis à pretensão dos trabalhadores. Os negociadores do lado laboral raramente têm possibilidade de conferir a veracidade dessas informações. Longe de ser uma questão menor, a saúde econômica das empresas tem quase sempre uma importância decisiva. Um quadro sombrio, recheado de informações sobre a redução das margens de lucro, sobre a inadimplência dos clientes ou sobre o aumento dos custos industriais, é o preâmbulo para ameaças de demissões ou para justificar a impossibilidade dos aumentos salariais nos percentuais reivindicados pelos trabalhadores.

Independentemente da sua qualificação técnica e argumentativa, os representantes dos trabalhadores são confrontados a informações que, em muitos casos, nem de longe correspondem a real situação da empresa. Os casos mais frequentes podem envolver as seguintes possibilidades: a) intrincados sistemas contábeis envolvendo várias empresas controladas pelo mesmo holding, algumas são convenientemente deficitárias enquanto outras são superavitárias graças a superfaturamentos de importações ou subfaturamento de exportações ou, ainda, graças a repasses de custos ou lucros entre empresas distintas; b) custos inflados por gastos pessoais dos proprietários; c) utilização de paraísos fiscais com todas as possibilidades de fraudes corporativas; d) dados sobre o câmbio (favorável ou desfavorável), preços das matérias-primas, preços de vendas sobre os quais não existe nenhuma comprovação podem ser usados como argumentos contrários às reivindicações. Quando as negociações não são diretas, mas envolvem os sindicatos do ramo, os representantes patronais utilizam a mesma estratégia.

Além disso, o absolutismo discricionário do patronato permite fazer doações para partidos políticos que atuam em sentido diametralmente oposto aos interesses dos trabalhadores e essas despesas podem ser contabilizadas como custos de produção!

Sob todos os aspectos, a efetiva capacidade de atendimento de reivindicações trabalhistas permanece obscurecida. A contabilidade e os balanços empresariais são caixas pretas protegidas legalmente mesmo no caso de empresas concessionárias de serviços públicos. A campanha cívica pela transparência em todos os registros governamentais trouxe excelentes resultados para a administração da máquina pública. O mesmo poderia ser proposto para grandes empresas e corporações na medida em elas afetam o interesse público.

Antonio David Cattani é professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Brasil) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFRGS). Pesquisador 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Atualmente, é Pesquisador Visitante na Universidade de Oxford (Inglaterra). Doutor pela Université de Paris I – Panthéon-Sorbonne (1980). Pós-doutorado na École de Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, 1993-1994). Professor visitante na Université Laval (Québec – Canadá). Coordenador de convênios de cooperação internacional (Université de Montréal, Canadá) e Centre National des Arts et Métiers (França).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *