Tragédia brasileira. “Os nossos liberais estão perfeitamente perdidos e fora de lugar”. Entrevista com Luiz Carlos Bresser-Pereira

Fotografia: FETEC-PR

A câmera da plataforma Zoom mal abre e, com um sorriso largo, o economista e professor Luiz Carlos Bresser-Pereira responde: “eu estou muito bem, tomei a terceira dose da vacina [contra Covid] e estou bem”. Mas, não se engane. Esse alto astral logo no começo da entrevista proposta pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU vai mudando na medida em que a conversa vai entrando na conjuntura brasileira. E não é por menos, pois, como define, “no plano social, é uma tragédia. Estamos com um índice de desemprego que continua no topo, 14% de desemprego aberto”.

Assim, Bresser, que sempre se intitulou como otimista, vê esse como um momento único e muito tenso na História do Brasil. “No plano político, é a pior crise que nós tivemos até aonde minha memória alcança”, observa. Mas o que não quer dizer que não acredite nas necessárias mudanças. “Não vou dizer que esteja pessimista porque o Brasil sempre pode dar a volta por cima, mas, para isso, é preciso que haja uma mudança muito grande na visão das elites”, diz. Aliás, um quadro que, segundo ele, ensaia mudança, na medida em que o ódio que tomou a sociedade parece estar arrefecendo.

Começada essa mudança na visão das elites, é preciso assumir algumas perspectivas, segundo o economista. A mais tácita delas é de que o liberalismo morreu. “O neoliberalismo enquanto política econômica, enquanto estratégia econômica, morreu. Morreu lá no norte [do globo]. Começou a morrer em 2008, com a grande crise financeira de 2008”, analisa. Para ele, olhando para movimentos de grandes potências econômicas como os Estados Unidos de Joe Biden e até a Alemanha de Angela Merkel, é inevitável que se conclua: “o Estado está de volta”. No entanto, Bresser reconhece que o Brasil parece alheio a esses movimentos. “Os nossos liberais aqui estão perfeitamente perdidos e fora do lugar, do espaço e do tempo”, lamenta.

Em certa medida, já projetando a corrida eleitoral de 2022, esse pensamento agarrado a um neoliberalismo moribundo é o que inviabiliza, por exemplo, a ascensão de uma terceira via na disputa à presidência. “A questão da terceira via, no momento, está difícil. O que tem mais condições de ocupar essa ‘via’ é o Ciro, mas a centro-direita não se sente confortável com ele”, pontua. Para Bresser, o que a centro-direita quer é como que usar remédios que já se provaram sem eficácia para salvar o cadavérico neoliberalismo.

E essa interdição de uma terceira via não chega a ser problema para Bresser, embora não aceite a tese de nem Jair Bolsonaro e nem Lula. “Isso é ridículo. Não se pode colocar esses dois homens no mesmo nível. Um é um desastre completo, o outro é um homem de centro-esquerda, um democrata que tem seus defeitos e limitações e isso é tudo”, dispara. Por isso, num cenário de uma terceira via natimorta pela direita e centro-direita atrasadas, diz com tranquilidade que sua opção pode ser à esquerda. “Desta vez acho que eu vou votar no Lula no primeiro turno. Só não voto se o Ciro também estiver com grande possibilidade de ir para o segundo turno”, confessa.

Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, atuou como professor visitante de desenvolvimento econômico na Universidade de Paris I (1978), de teoria da democracia no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo – USP (2002/03), e de Novo-Desenvolvimentismo na École d’Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, entre outras universidades pelo mundo. Também foi ministro da Fazenda, da Administração Federal e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia no governo Fernando Henrique Cardoso. Bacharel em Direito pela USP, é mestre em Administração de Empresas pela Michigan State University, doutor e livre docente em Economia pela USP. Entre os livros publicados destacamos A construção política do Brasil: Sociedade, economia e Estado desde a Independência (São Paulo: Editora 34, 2016), Desenvolvimento e Crise no Brasil (1968/2003), Construindo o Estado Republicano (2004), Macroeconomia da Estagnação (São Paulo: Editora 34, 2007) e Globalização e Competição (Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2009).

Confira a entrevista.

IHU – Que leitura o senhor faz do atual quadro econômico e social do Brasil?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – No plano econômico, o Brasil entrou numa crise em 2014. Foi uma recessão que durou três anos, mas a crise continuou. Nós saímos da recessão, passamos a ter um crescimento muito pequeno, uma recuperação absolutamente frustrante, de forma que a taxa de câmbio que sempre se deprecia fortemente quando há uma crise se depreciou em 2014 e continua depreciada. Isso porque as empresas não tem confiança em investir, porque com a taxa de câmbio a R$ 5,20 está até boa demais.

Com 5 estava bom, com 5,20 os investimentos se tornam interessantes, mas as empresas não fazem esses investimentos porque não tem confiança no governo e, especificamente, não tem confiança que essa taxa de câmbio permaneça assim. Como não há nenhum mecanismo de neutralização da Doença Holandesa, a taxa de câmbio baixa, podendo ir para quatro e pouco e, então, o investimento feito nos padrões anteriores dará prejuízos.

A inflação subiu um pouco, mas não é nada muito preocupante e o Banco Central está aumentando os juros, embora pudesse ter esperado um pouco para fazer isso.

Social

No plano social, é uma tragédia. Estamos com um índice de desemprego que continua no topo, 14% de desemprego aberto, embora muita gente tenha desistido de procurar emprego e sai da estatística de desemprego aberto.

Política

E, no plano político, é a pior crise que nós tivemos até aonde minha memória alcança. Temos um presidente que não tem nem o apoio da sociedade civil, praticamente todos os formadores de opinião tem criticado ele de maneira muito forte e muito justa. Assim, estamos todos esperando, já que não dá para fazer impeachment, já que o centrão dificulta o impeachment, ficamos esperando pelas eleições para eleger um candidato decente.

IHU – Então, o senhor defende e acha que o impeachment poderia ser uma saída para agora?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Seria uma ótima saída porque a cada dia que o senhor Bolsonaro fica no poder é um atraso para o Brasil. Não tenho nenhuma dúvida de que, se o impeachment não acontecer, nas eleições ele perde. É capaz de nem ir para o segundo turno, mas, enfim, isso vai depender inclusive do que a centro-direita resolva apoiar, que é o que eles estão chamando de terceira via. O que, por enquanto, não apresenta viabilidade.

IHU – E por que esse impeachment não sai? É só por ação do centrão?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – É por causa do centrão e uma popularidade, que está caindo, que o presidente ainda mantém com intenções de voto de cerca de 23%. Isso é muito e também dificulta o impeachment. Mas o principal motivo é mesmo o centrão, porque o presidente deu tantas oportunidades para impeachment, cometeu tanto crimes de responsabilidade que sob esse ponto de vista não há nenhuma problema, já deveria estar, há muito tempo, fora do governo.

IHU – O senhor considera que caímos na “armadilha da liberalização”. No que consiste essa armadilha e como caímos nela?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Caímos nessa armadilha da liberação em 1990, no Governo Collor, quando o Brasil realizou logo no início dos anos de 1990 a abertura comercial e, dois anos depois, diante de uma crise, fez um acordo com o Fundo Monetário Internacional – FMI e a abertura financeira. Isso é uma armadilha, que chamo de armadilha da liberalização, porque é a partir daí que o crescimento do Brasil se torna quase inviável. Nem resolvendo os dois problemas fundamentais que aconteceram nos anos de 1980, que foram uma grande crise da dívida externa e a alta inflação inercial conseguimos superar a estagnação. A inflação foi resolvida um pouco depois, em 1994, mas nem por isso o crescimento aconteceu.

Essa expressão ‘armadilha da liberalização’ é usada por mim somente há um ano, porque foi quando eu e mais dois jovens economistas escrevemos um trabalho fazendo a crítica da chamada ‘armadilha da renda média’.

Este é um conceito que os economistas ortodoxos lá dos Estados Unidos inventaram para dizer que muitos países de renda média chegam nesse nível e param. Nós examinamos os dados, fizemos uma análise econométrica bastante aprofundada e ficou claro para nós que:

1) o conceito de armadilha da renda média, usado por esses economistas, é muito frouxo. Cada economista coloca um espaço para ser considerado renda média muito grande;

2) os países de renda média do leste da Ásia não pararam, continuaram crescendo e cresceram muito, especialmente a China e, agora, o Vietnã, já no sudeste da Ásia.

Então, a explicação não era boa. Por outro lado, nós criamos a hipótese de que realmente o que aconteceu foi que os países que fizeram uma liberalização comercial e financeira e não tinham Doença Holandesa sobreviveram, é o caso da China. Agora, os países que fizeram a abertura comercial e financeira e, além disso, tinham a Doença Holandesa, ou seja, toda a América Latina e não só o Brasil, e boa parte da África também, caíram não na armadilha da renda média, mas na armadilha da liberalização.

Foi, evidentemente, a explicação novo desenvolvimentista que está por trás dessa quase estagnação da economia brasileira desde 1990. Na verdade, tenho mostrado que são duas as causas fundamentais, ambas implicando queda nos investimentos. São elas:

1) uma é essa armadilha da liberalização, ou armadilha da taxa de juros alta e o câmbio apreciado, podemos entender como a mesma coisa;

2) e o fato de que o investimento público caiu muito. O investimento público que nos anos de 1970 chegou a ser de 6, 7% do Produto Interno Bruto – PIB, hoje está em um. E é fundamental se ter investimentos públicos.

IHU – Em suas reflexões para um projeto de política econômica, o senhor destaca que “não basta promover a educação e a saúde pública, reduzir o custo-Brasil e não basta adotar política industrial e tecnológica”. Mas por que essas áreas tem sido vistas como a porta de saída para as crises? Quais os limites dos investimentos nessas áreas para sairmos do atual estado de crises?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – O desenvolvimento econômico exige que o Estado garanta as condições gerais de investimento, as condições gerais de acumulação do capital. E sobre essas condições gerais há quase unanimidade em relação a educação, a instituições que garantam as propriedades e os contratos e que, portanto, garantam o funcionamento do mercado, os investimentos da infraestrutura e a existência de um sistema financeiro interno capaz de financiar investimentos. Isso todo mundo sabe que é necessário, mas aí veio [o economista John Maynard] Keynes e disse que há uma outra ‘condição geral’: que haja demanda, pois todas aquelas variáveis que citei estão na área da microeconomia enquanto que demanda é macroeconomia.

Isso foi uma revolução na Teoria Econômica. Agora, quando chega o novo desenvolvimentismo, que é essa teoria que estou desenvolvendo junto com um grupo de economista desde o início desse século, dizemos que há uma última condição: que as empresas, quando existe demanda, tenham uma taxa de câmbio que garanta o acesso delas ao mercado, tanto ao interno quando ao externo. Acontece que uma taxa de câmbio apreciada no longo prazo tira o acesso. Então, considero isso uma coisa muito importante e que os economistas estão começando a reconhecer. A Teoria do Novo Desenvolvimentista é a única teoria que tem essa ideia como uma de suas ideias centrais.

IHU – Ou seja, não significa que educação e a saúde pública, reduzir o custo-Brasil e uma política industrial e tecnológica não sejam importantes. O senhor enfatiza que precisa se ir além. Correto?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Isso, corretamente. Agora, sobre política industrial, uma ideia que se tornou muito importante a partir do anos de 1980 foi de que uma política industrial era muito importante. Isso aconteceu nos anos de 1980 porque foi nesse ano que foram publicados três livros [Johnson, Chalmers (1982) MITI and the Japanese Miracle, Stanford: Stanford University Press, Amsden, Alice H. (1989) Asia’s Next Giant: South Korea and Late Industrialization, New York: Oxford University Press e Wade, Robert (1990) Governing the Market, Princeton: Princeton University Press.], um sobre o Japão, outros sobre a Coreia do Sul e outro sobre Taiwan, que mostravam que esses países tinham usado ampla política industrial.

Em consequência, os desenvolvimentistas brasileiros, e mais amplamente latino-americanos, passaram a defender fortemente a política industrial. E, no caso do Brasil, quando se chegou ao governo Lula, adotou-se essa perspectiva e convocaram os melhores economistas especializados nessa área para estabeleceram uma política industrial. Não deu certo. No segundo governo Lula, estabeleceram uma segunda política industrial e novamente não deu certo. Quando chega o governo Dilma, idem, também não dá certo.

Não deu certo não porque não fosse necessária ou porque estivesse errada, é porque não basta e esse é o problema. Além de você ter uma política industrial, que certamente se deve ter para estimular o desenvolvimento dos setores mais estratégicos da economia ou nos quais esteja envolvida a segurança nacional, é preciso ter os cinco preços macroeconômicos certos, não é somente a taxa de câmbio.

IHU – Justamente, gostaria que detalhasse essa visão de “manter os cinco preços macroeconômicos no lugar certo”, destacando o que o governo precisa fazer para alcançar isso.

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Essa ideia de cinco preços macroeconômicos também foi introduzida pelo novo desenvolvimentismo, mas o fato concreto é que esses preços existem há muito tempo. São:

1) a taxa de juros,

2) a taxa de câmbio,

3) a taxa de salário,

4) a taxa de lucro e

5) a taxa de inflação.

E os economistas, inclusive os ortodoxos, há muito tempo procuram administrar a taxa de inflação e a taxa de juros e do resto não querem saber, enquanto que novo desenvolvimentismo entende que é fundamental colocar no “nível certo” esses cinco preços. É uma coisa que o mercado, definitivamente, é incapaz de fazer.

Você me pede uma definição básica do que seja “um preço certo”. Coloco “preço certo”, entre aspas, porque é uma provocação aos economistas neoclássicos porque eles acham que o mercado garante que todos os preços da economia estejam certos, o que é um absurdo. Agora, se é um absurdo para os bens e serviços em geral, em relação aos cinco preços é ainda mais absurdo.

1) O que é uma taxa de juros certa? É uma taxa de juros cujo o nível dentro do qual o Banco Central faça sua política monetária seja relativamente baixa. No caso do Brasil e dos países em desenvolvimento, é preciso que sejam igual a taxa de juros internacional mais o custo Brasil.

2) A taxa de câmbio certa é a aquela que entendo que seja competitiva, entendida como uma taxa de câmbio que torna competitivas as empresas industriais do país que utilizam a melhor tecnologia existente.

3 e 4) Os salários devem crescer com a produtividade, pois, se crescerem mais do que a produtividade haverá redução na taxa de lucro, que é necessária para as empresas. O que temos visto no Brasil é que com uma taxa de juros alta, uma taxa de câmbio apreciada, a taxa de lucro dos empresários se torna insatisfatória. Então, a taxa de lucro certo é uma “taxa satisfatória”. E satisfatória para que os empresários continuem a investir. As empresas tem um poder de veto sobre o investimento. Só investem se tem segurança nos seus investimentos e se as expectativas de lucro são razoáveis. Com isso, a taxa de salários não deve onerar a taxa de lucros se ela estiver num nível satisfatório.

IHU – Mas, agora, como se distribui renda nesse país em que a taxa de câmbio cresce com a produtividade?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Há três maneiras:

1ª) pelo aumento do salário mínimo, mas isso quando há espaço. Lula, por exemplo, aproveitou muito bem o espaço e fez uma elevação importante no salário mínimo, que melhorou a distribuição de renda no país, mas, depois já no governo Dilma continuou, mas aí já não tinha mais espaço. Esses salários, então, começaram a inviabilizar a taxa de lucro da indústria;

2ª) a segunda maneira, que é fundamental para distribuir renda, é ter o Estado do Bem-estar social. É o que o Brasil começou a fazer a partir de 1985 ou a partir da transição democrática e a partir da Constituição de 1988, que é uma Constituição muito boa;

3ª) a terceira política fundamental, uma outra maneira de distribuir renda, é a política de ter impostos progressivos. Isso significa ter impostos que sejam pagos mais do que proporcionalmente pelo ricos ao invés dos pobres. No Brasil, o sistema tributário é altamente regressivo. Essa questão da progressividade é muito importante. De acordo com esse índice, a desigualdade nos Estados Unidos era apenas um pouco pior do que na Suécia. Agora, fizerem o mesmo cálculo de Gini depois da incidência dos impostos, a diferença é enorme, a Suécia tinha uma ótima distribuição e os Estados Unidos muito ruim porque no período neoliberal, a partir de Ronald Reagan [presidente dos EUA ente os anos de 1981 a 1989] os Estados Unidos desmontou o seu sistema de impostos progressivos.

Então, com isso se consegue distribuir renda adequadamente.

IHU – Nessa discussão de distribuição de renda não deveríamos, ao menos, voltar a discutir uma renda básica universal?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Eu sou, em princípio, à favor da renda básica. Acho que o trabalho do Eduardo Suplicy vem há muitos anos desenvolvendo é interessante. Agora, o problema é o custo. Há cálculos mais recentes que indicam que o custo não seria muito alto, mas ainda é alto.

O que nós temos é um sistema focado, que é o Bolsa Família, que agora deve ser até ampliado e isso é muito bom, mas que não chega a ser uma renda básica. Renda básica é aquela recebida por todos sem nenhuma condicionante e para isso acho que o Brasil ainda precisa alcançar um nível de desenvolvimento um pouco mais alto. No entanto, penso que essa é uma meta que precisamos seriamente perseguir e fazer os cálculos direito, sempre verificando se realmente ainda não é viável do ponto de vista fiscal.

IHU – Essa viabilidade poderia, quem sabe, passar por esses três fatores, esses três caminhos que o senhor falou acerca da distribuição de renda, especialmente relacionado a impostos?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – O financiamento é sempre um problema, ele vem necessariamente da carga tributária. Os impostos no Brasil são relativamente altos, não são muito altos, é quase tudo imposto sobre consumo como ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] e outros impostos e por isso que é muito regressivo. E, com esses fatores de hoje, aumentar a carga tributária no Brasil está muito difícil. Eu, pessoalmente, sou à favor do reestabelecimento da contribuição financeira, porque esse é um imposto fácil de arrecadar e é muito útil. E poderia ser uma fonte de financiamento para essa renda básica.

IHU – O senhor, então, está falando em retomar um imposto nos padrões do que foi a CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira]?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – É, estou falando da CPMF, reestabelecer a CPMF com algumas modificações, mas ter essa tributação como uma coisa normal na economia brasileira. E eu vincularia isso ao sistema de renda básica.

IHU – Ainda sobre o preços ideais que tratamos anteriormente, o senhor não chegou a falar nada a respeito da inflação, que seria o quinto preço.

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Eu entendo que a inflação certa é uma inflação muito baixa, igual ou um pouquinho superior àquela inflação que você encontra nos países ricos. A explicação de que a inflação no Brasil é alta por problemas estruturais não pode mais ser considerada verdade. Dizer que é pelo poder de monopólio das empresas também é muito relativo, as empresas realmente tem um poder monopolista muito maior do que seria razoável e isso segura a taxa de lucro deles, mas isso não provoca inflação.

A coisa mais importante de caráter estrutural que o Brasil deveria fazer para evitar o problema da inflação é desindexar a economia completamente. A indexação da economia foi a causa da alta inflação inercial durante 14, quase 15 anos, de 1980 a 1994. Quando chegamos, em 1994, no Plano Real, houve uma desindexação, mas foi parcial. De forma que o componente inercial continua sendo relativamente importante no Brasil e dificulta muito, encarece muito o controle da inflação, porque se doura [a pílula], normalmente, aumentando os juros. Essa discussão sobre a indexação não foi feita. Eu venho defendendo isso há muito tempo, mas não há um real debate. Como também não há debate a respeito do sistema tarifário.

Bem, com essa resposta acho que listei o cinco preços macroeconômicos.

IHU – Por falar em juros, por que são tão altas no Brasil? Gostaria que detalhasse isso que tocou brevemente.

Luiz Carlos Bresser-Pereira – São dois motivos, ao meu entender.

1) Um é uma questão de economia política, é o poder dos rentistas e financistas. Poder esse que não se sustentou porque a justificativa era sempre combater a inflação. Como a inflação caiu brutalmente, essa causa dos juros altos perdeu força, mas pode voltar. O sistema financeiro não se conforma com a taxa de juros que está aí e o Banco Central voltou a aumentar.

2) A outra coisa é a política de atrair capitais para crescer com o endividamento externo. Isso é uma causa fundamental, pois nós brasileiros entendemos que se o país tiver um déficit em conta corrente de cerca de 3% do PIB e esse déficit for financiado em mais ou menos 70% por investimentos diretos, “nós estamos nos melhores dos mundos possíveis”. Só que isso é um enorme equívoco. E para viabilizar esse financiamento em 70% é preciso, então, ter uma taxa de juros alta para atrair capitais. Isso é uma coisa profundamente equivocada porque para que haja uma administração da taxa de câmbio é fundamental neutralizar a Doença Holandesa, que, aliás, nesse momento no Brasil não tem porque o preço das commodities caiu e agora está começando a subir e porque a crise faz com o que câmbio permaneça depreciado.

Doença Holandesa

Quando se trata de neutralizar a Doença Holandesa, para que os empresários tenham confiança de que podem investir, é fundamental que o governo estabeleça uma taxa de câmbio com uma meta de cerca de 5 Reais por dólar e adotando políticas para isso. E para que aja essa garantia é fundamental a neutralização da Doença Holandesa e isso passa por tarifas, que é a forma mais simples e fácil de entender como neutralizar essa Doença. Ou seja, é através de política industrial, pois a tarifa é a principal política industrial que os países sempre usaram.

Isso é curioso, pois quando comecei a discutir do problema da Doença Holandesa, em 2008, derivei de um modelo, digamos, uma forma mais elegante e sofisticada de neutralizar a Doença Holandesa, que é o imposto variável sobre a exportação das commodities. Isso continua sendo absolutamente certo, mas é politicamente inviável num país como o Brasil, onde os exportadores de soja, por exemplo, são muito e são poderosos. O mesmo de açúcar e álcool, de suco de laranja, café, enfim.

Agora, existe uma outra forma, inclusive adotada pelo Brasil durante muitos anos, até 1990, e que muitos países adotaram – os Estados Unidos, por exemplo, até 1939 – que é através de tarifas de importação. Na Teoria Econômica, só existe uma justificativa para se ter tarifas de importação elevada, que é o chamado argumento da indústria infante ou da indústria nascente – argumento que foi introduzido na Teoria Econômica por Alexander Hamilton em 1792, quando foi ministro da economia do presidente Jorge Washington, logo depois da Independência dos Estados Unidos. Depois, foi famosamente defendida por um economista alemão Friedrich List [(1789 —1846) economista partidário do protecionismo, até meados do século XX a sua obra era a mais traduzida de qualquer economista alemão com exceção de Karl Marx]. Mas esse tipo de justificativa vale por algum tempo, depois a indústria deixa de ser infante e tem que tratar de ser competitiva.

Novo-desenvolvimentos e outra razão para enfrentar Doença Holandesa

Com a Teoria novo desenvolvimentista, surgiu uma segunda razão para você manter tarifas aduaneiras elevadas, que é a neutralização da Doença Holandesa. Vamos a um exemplo: se a taxa de câmbio corrente é de 4 Reais por dólar e sendo que o equilíbrio industrial competitivo pode levar a 5 Reais por dólar, temos a Doença Holandesa e se pode resolver esse problema aumentando as tarifas de importação dos bens manufaturados. Daí, as empresas situadas no Brasil, nacionais ou estrangeiras, passam a ter igualdades de condições na competição.

As tarifas, porém, só neutralizam a Doença Holandesa para efeito de mercado interno. Para efeito de mercado externo, são subsídios. Foram os subsídios que o Brasil adotou entre 1967 até 1990 que foram um enorme sucesso, pois o Brasil se tornou um enorme exportador de manufaturados nesse período. Por isso, penso que o governo deveria estudar essa possibilidade.

Agora, fico preocupado porque vejo os economistas brasileiros, inclusive aqueles que defendem muito política industrial, não falarem nunca em tarifas de importação. É muito estranho isso, é o domínio hegemônico do liberalismo que ainda existe no Brasil.

IHU – Muitos economistas tem se dedicado a pensar uma outra economia em que o meio ambiente seja central. Que respostas o novo-desenvolvimentismo pode trazer à questão ambiental?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – A questão ambiental é hoje um problema fundamental. Costumo dizer que as sociedades modernas, a partir do século XVIII, foram definindo objetivos políticos e as respectivas ideologias. Ainda nos século XVIII foi definido como objetivo político a liberdade individual e daí surgiu o liberalismo político. Com a Revolução Industrial, na Inglaterra e na França, surgiu a possibilidade de aumentar os padrões de vida da população e, então, as sociedades passaram a ter como objetivo o desenvolvimento econômico e o nacionalismo econômico a ideologia correspondente.

Já na segunda metade do século XIX, surgiram as ideias socialistas e os movimentos socialistas. Surgiu assim uma diminuição da desigualdade ou a justiça social passou a ser também um objetivo fundamental. E o socialismo, enquanto ideologia e não enquanto modo de produção, passou a ser uma ideologia importante, mais bem realizada na socialdemocracia do pós-guerra.

Finalmente, na segunda metade do século XX, a partir da grande conferência da Organização das Nações Unidas – ONU em 1972, em Estocolmo, na Suécia, a humanidade tomou conhecimento do problema da proteção do ambiente. E isso entrou forte e é hoje o último grande objetivo que as sociedades modernas introduziram.

Mas como atender a isso? A sociedade, de um modo geral, percebeu a importância disso e estão sendo tomadas medidas importantes nessa direção. Uma delas são os grandes investimentos na mudança da matriz energética para uma matriz que não seja baseada em petróleo ou carvão, o que é pior ainda.

Uma segunda coisa que é muito importante é um sistema que desincentive a poluição. E para isso existe uma questão que é correta, a tributação. Ou seja, tributar mais quem polui mais. Esse imposto, porém, tem tido muita dificuldade no mundo inteiro, e aqui no Brasil nem é discutido, porque se um país faz essa tributação e outro não faz, o país que não fez, no curto prazo, tem uma vantagem competitiva.

Taxação de poluidores que exportam para grandes economias

Em função disso, surgiu nesses últimos tempos, há cerca de três anos, a ideia de que os três maiores países, Estados Unidos, China e a União Europeia, que na verdade reúne países, adotem impostos de importação elevados e variáveis de acordo com o fato de que o país do qual se está importando tenha ou não políticas de proteção do ambiente. Isso é muito discutido, um exemplo é o artigo que o mais notável economista brasileiro especialista nessa matéria, José Eli da Veiga, publicou no jornal Valor sobre esse tema no dia 24-09-2021. E ele diz que esses dois países e a União Europeia estão começando a entrar num acordo nesse sentido, o que seria muito importante.

Decrescimento

Surgiu também, ainda devido ao problema ambiental, a tese dos antidesenvolvimentistas, dos defensores do decrescimento. Eles defendem que foi o aumento do PIB que está criando todo esse problema. Isso é verdade e, ao mesmo tempo, uma enorme mentira. É verdade porque o mundo já não é mais habitado só por indígenas, por tribos primitivas. Houve um enorme desenvolvimento econômico, uma melhoria nos padrões de vida, uma melhoria na idade média, etc. E isso tem um custo.

Agora, não faz sentido colocar como seu modelo as sociedades primitivas, como vejo muita gente fazer. Isso é tolice. Mas e no curto prazo? No curto prazo se precisa também ter desenvolvimento econômico para poder combater o aquecimento global. Por quê? Porque se precisa fazer esses enormes investimentos na infraestrutura energética, assim como há investimentos que também precisam ser feitos na agricultura. Isso ficou muito claro nos meses que antecederam a grande reunião de Paris [COP 21, realizada em 2015]. Abríamos os jornais naquela época e viamos uma grande discussão sobre quem é que deveria financiar os países em desenvolvimento para realizar esses investimentos que citava antes.

Não importa que não se esteja chagado a uma conclusão sobre isso, apenas cito essa história para dizer ‘olha, quem são os países que melhor protegem o ambiente? São os países da Europa do norte e do oeste, que são países ricos’. Ou seja, são países ricos que têm capacidade de fazer grandes investimentos e esses investimentos estão controlando de maneira bem melhor o clima do que em países em que não tem esse investimento.

Ah, e devemos também mudar a alimentação. Precisamos diminuir fortemente o consumo de carne. Eu mesmo tenho um neto que é vegano. Até acho que isso é um pouco demais, mas é fato que temos que reduzir o consumo de carne de gado.

IHU – Como o senhor avalia as propostas de políticas econômicas que possíveis candidatos à presidência têm aventado, especialmente o desenvolvimentismo de Ciro Gomes e o programa divulgado pelo PT?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Acho que houve avanço nessa matéria. Sempre conto uma história, inclusive já contei em conversas com o IHU, que um ano da eleição de 2018 telefonei para o Ciro Gomes e o Fenando Haddad e chamei eles para uma conversa que levou uma tarde inteira num mês de janeiro. Depois, em seus programas de governo, eles já puserem algumas dessas coisas que falamos. Mas a situação é complicada.

Veja, por exemplo, o caso da taxa de câmbio que não se apreciou nesses últimos anos o quanto deveria, segundo o modelo. Não ter se apreciado não quer dizer que política está errada. Até já expliquei isso no começo da entrevista, isso se dá porque as empresas não tem coragem para investir, não tem segurança. Mas até que ponto os candidatos vão adotar uma política correta quando chegarem ao governo? É difícil responder. Ciro está bem informado e, sem dúvida, é um bom candidato nessa matéria.

No PT, existe o Fernando Haddad e o mais importante assessor dele, que hoje também é o mais importante assessor do PT, um jovem chamado Guilherme Mello e que é muito inteligente, brilhante, e que conhece um pouco do novo desenvolvimentismo. Gostaria ele conhecesse bem mais porque ele vai ser importante caso o Lula ganhe as eleições do ano próximo.

IHU – No atual contexto, temos espaço ainda para discutir uma terceira via, não necessariamente com Ciro Gomes?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – A questão da terceira via, no momento, está difícil. O que tem mais condições de ocupar essa “via” é o Ciro, mas a centro-direita não se sente confortável com ele. Eles querem algo ainda mais à direita e o Ciro não é de direita, ele é de centro-esquerda.

Quando essa questão de terceira via surgiu, surgiu imediatamente uma tese: nem Bolsonaro e nem Lula. Isso é ridículo. Não se pode colocar esses dois homens no mesmo nível. Um é um desastre completo, o outro é um homem de centro-esquerda, um democrata que tem seus defeitos e limitações e isso é tudo.

Então, a terceira via precisa de uma mensagem que faça mais sentido e está difícil isso. Eu não estou torcendo por ela, estou satisfeito com o Lula. Não sou petista, mas desta vez acho que eu vou votar no Lula no primeiro turno. Só não voto se o Ciro também estiver com grande possibilidade de ir para o segundo turno. Aí, nesse caso, vou pensar duas vezes.

IHU – E esse pessoal da direita, que o senhor fala que não aceita Ciro Gomes, o que de fato eles querem? Todas as apostas deles estão no liberalismo ainda?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – É o liberalismo. O neoliberalismo enquanto política econômica, enquanto estratégia econômica, morreu. Morreu lá no norte [do globo]. Começou a morrer em 2008, com a grande crise financeira de 2008, que só não foi tão grave quanto a de 1930 porque foram feitos grandes investimentos contracíclicos keynesianos. Mas, o fato concreto é que esses países do norte estão crescendo a taxas satisfatórias, as da Europa completamente insatisfatórias e eles precisam encontrar uma solução para esse problema. E a solução que, por enquanto, encontraram, e que está certa, é abandonar o liberalismo econômico e passar a ter uma intervenção mais ativa do Estado na economia, como aconteceu no pós-guerra.

Isso se tornou muito forte no caso do [presidente dos EUA, Joe] Biden, que tem toda uma política que é claramente desenvolvimentista. Não é novo desenvolvimentista, mas é desenvolvimentista no sentido amplo. Na Europa também a [chanceler alemã Angela] Markel e o [presidente francês Emmanuel] Macron fizeram manifestações muito claras nessa direção. Quer dizer, o Estado está de volta. O neoliberalismo está morto, não o conservadorismo. Isso é outra história. O desenvolvimentismo pode ser progressista, mas também pode ser conservador.

Agora, o Brasil ignora tudo isso. Não estamos ainda bem na Idade da Pedra, mas estamos bem lá para trás nessa ideia de que todos os problemas de país se resolvem com as reformas, o que é ridículo. Sobre essas reformas, já vimos que as duas mais importantes que foram a abertura comercial e financeira foram na verdade uma causa de nossa semi-estagnação desde 1990. Os nossos liberais aqui estão perfeitamente perdidos e fora do lugar, do espaço e do tempo.

IHU – O senhor começou a entrevista com alto astral, sorrindo, comentando que havia tomada a terceira dose da vacina contra Covid-19. O senhor está otimista também com o Brasil? E nós, podemos ser otimistas com o atual quadro?

Luiz Carlos Bresser-Pereira – Olha, não estou muito otimista com relação ao Brasil. Sempre fui muito otimista, não vou dizer que esteja pessimista porque o Brasil sempre pode dar a volta por cima, mas, para isso, é preciso que haja uma mudança muito grande na visão das elites. O povão está aí e sabe votar razoavelmente bem. Podem até dizer que o povão votou mal no Bolsonaro, mas votou mal no Bolsonaro porque foi uma conjuntura muito especial, foi um momento em que o ódio tomou conta do Brasil. Essa é uma coisa muito importante e aconteceu em 2014, não com Bolsonaro, mas em 2014. Até fiz um artigo na revista Interesse Nacional falando sobre isso naquela época.

Hoje, todos sabem que o ódio tomou conta, fundamentalmente, da direita e esse ódio se manifestava numa rejeição radical ao Lula e ao PT. O que é tudo muito ruim, política não se faz com ódio. Política se faz com adversários que entram em competição, que se criticam, mas se respeitam também. Acho que está melhorando, evidentemente as elites brasileiras já não estão mais com ódio e isso é muito importante. Então, já começamos a ter um espaço para haver mudança na alta classe média, que é a classe formadora de opinião, para que então nós possamos ter a retomada do crescimento econômico. E, claro, [risos] adotando as políticas novo desenvolvimentistas.

Fonte: IHU On-Line
Texto: João Vitor Santos
Data original da publicação: 01/10/2021

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