Trabalho infantil se torna palco de batalha das guerras culturais nos EUA

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Em novembro do ano passado, a empresa brasileira JBS esteve no centro de uma descoberta que chocou os Estados Unidos. A partir de uma denúncia do Secretário de Trabalho, o Departamento de Justiça constatou que 31 adolescentes entre 13 e 17 anos estavam trabalhando em suas fábricas de processamento de carnes nos estados de Nebraska e Minnesota.

A investigação descobriu que a empresa terceirizada de limpeza, contratada pela JBS, utilizava adolescentes para desempenhar funções perigosas. Uma menina de apenas 13 anos apresentava queimaduras por conta do uso de produtos químicos.

Nos EUA, não existe uma regra geral sobre a idade mínima para começar a trabalhar. A decisão cabe a cada estado. Pesquisadores e ativistas de direitos humanos têm dificuldade de atuar na área por um simples fato: faltam dados confiáveis para compreender o tamanho do problema.

Eric Edmonds, professor do departamento de economia da Dartmouth University e especialista no tema, disse ao Brasil de Fato que “os Estados Unidos pararam em 1971 de coletar dados que nos permitiriam falar alguma coisa sobre os problemas do trabalho infantil nos EUA. Nós não temos estimativas sobre o problema nos EUA e, por isso, não conseguimos afirmar se está aumentando ou diminuindo”.

Edmonds diz ainda que, pelo mesmo motivo, é difícil saber em quais tipos de trabalho crianças e adolescentes são mais empregadas no país, “apesar de haver fortes evidências de que seria na agricultura”.

Ainda que não seja possível afirmar ao certo o tamanho da força de trabalho infantil, a Associação de Programas de Oportunidades dos Trabalhadores Rurais dos Estados Unidos acredita que entre 400 mil e 500 mil menores de idade estejam trabalhando em fazendas do país.

Republicanos querem menos proteções

Mas esse não é um problema que preocupa a todos. Em estados com legislativos dominados por republicanos, deputados estão aprovando propostas que facilitam a contratação de jovens cada vez mais novos, muitas vezes para trabalhos perigosos, ou dificultam a fiscalização.

Esse foi o caso de Arkansas, onde uma lei aprovada desregulamentou o processo de contratação de jovens entre 14 e 15 anos de idade no estado. Desde a aprovação, esses adolescentes podem ser empregados mesmo sem uma autorização dos pais.

“Nós nos opusemos a esta lei porque crianças precisam de mais proteção. De tudo, desde o dia na escola até não serem colocadas em situações perigosas”, diz Laura Kellams, representante da organização Defensores das Crianças e da Família de Arkansas (AACF, na sigla em inglês).

Laura explica que “essa era uma outra forma pela qual estávamos protegendo crianças e jovens no nosso estado. Tudo era colocado no papel, então o jovem empregado sabia as regras, os pais sabiam as regras e o empregador, que seria obrigado a seguir as regras, assinava um papel afirmando saber quais eram e que elas seriam seguidas”. A AACF foi uma das que falou contra a lei na legislatura estadual.

A lei, que foi sancionado pela governadora republicana Sarah Sanders, não muda regras relacionadas ao trabalho infantil em si, mas simplesmente retira uma camada importante de proteção e de garantia do cumprimento das regras vigentes.

A quem interessa menos proteção às crianças e aos jovens?

“Bem, curiosamente, ninguém falou em defesa desta lei na Câmara”, disse Laura,  “ninguém foi a um comitê falar porque precisavam disso, nenhuma empresa foi lá dizer que queria isso, ninguém estava reclamando sobre o processo da permissão. Era gratuito, tinha uma página e o estado costumava responder em três dias. Então, curiosamente, é difícil dizer quem se beneficiaria e por que queriam essa lei, porque essas pessoas não se apresentaram pra dizer por que a queriam”.

Arkansas, porém, não está sozinho. Nos últimos meses outros estados aprovaram leis que desregulamentam o trabalho infantil, como Iowa, New Jersey e New Hampshire.

O argumento de alguns republicanos é a falta de mão de obra no país. Com uma das menores taxas de desemprego da história, empresas nos Estados Unidos simplesmente não conseguem encontrar trabalhadores. Mas Eric Edmonds acha que “isso é desonesto. Não tem nada que ver com a falta de mão de obra”.

O pesquisador explica: “Quem está financiando esses projetos é a Foundation for Government Accountability. É uma fundação da Flórida que está imersa nas atuais ‘guerras culturais’. E essa pressão contra as leis sobre trabalho infantil é parte da guerra cultural, não é parte do mercado de trabalho. Você já ouviu um empregador dizer: ‘sabe do que eu preciso? Eu não preciso dessas pessoas super motivadas e capacitadas que nasceram em outros lugares, o que eu mais preciso é de empregados de 12 anos na minha empresa’. Eu te garanto que você não vai encontrar esse argumento, porque essa seria uma pessoa que iria a falência muito rápido”.

A Foundation for Government Accountability faz lobby de uma série de pautas conservadoras. Dentre as bandeiras apresentadas no site da fundação está uma chamada de “Empoderar Adolescentes pela Força do Trabalho”. Em propagandas, caracterizam estados com proteções como “Estados Babás”.

Eric Edmonds acredita que essas pautas fazem sucesso entre os eleitores mais radicais do partido republicano, e é aí que está um dos maiores problemas. O sistema eleitoral americano seria um dos responsáveis pela crescente popularidade desse tipo de proposta.

“Quando você tem um cargo, você não precisa apelar para a maioria dos eleitores”, explica Edmonds, “você precisa apelar para os eleitores mais extremos do seu partido, que vão aparecer para votar nas prévias. Poder gritar sobre ‘estados-babá’, por mais impreciso que seja, permite que você apele a um certo tipo de eleitor primário republicano que vai estar lá e que vai votar em você, mantendo você no cargo”.

No entanto, a mudança da lei em Arkansas foi amplamente divulgada e criticada em nível nacional. Laura Kellams está otimista que isso faça republicanos pensarem duas vezes antes de avançarem com propostas semelhantes em outros estados.

“Não teve muita atenção do público quando a lei estava sendo apreciada”, lamenta Laura. “Nós tentamos gerar a maior atenção possível, falar contra e explicar aos legisladores por que eles deveriam votar contra, mas não teve um grande clamor popular porque as pessoas não estavam cientes. Mas depois que passou, teve muito destaque no estado, por todo o país e, claro, conversando com você hoje, até mesmo no mundo. Então nós esperamos que esta atenção faça os legisladores pensarem duas vezes sobre se querem seus nomes vinculados a futuras erosões das proteções de trabalho infantil”.

Procurada pela reportagem do Brasil de Fato, a Foundation for Government Accountability ainda não se manifestou.

Fonte: Brasil de Fato
Texto: Pedro Paiva
Data original da publicação: 28/08/2023

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