Aos 13 anos, Cecília Lima* aumentou sua carga de trabalho enrolando cigarros de palha durante a pandemia, já que fica mais tempo em casa com as aulas presenciais suspensas. “Sinto muita dor nas costas”, reclama, enquanto trabalha sentada na calçada de sua casa, em Pitangui, a 130 quilômetros de Belo Horizonte. Sem máscara e usando uma faca para ajudá-la a enrolar, ela conta que sua família ganha R$ 100 por semana por dois mil cigarros enrolados. O valor é pago por um intermediário, que faz a ponte com as fabricantes.
Trabalho infantil, jornada exaustiva, pagamento reduzido, quarteirização da produção e não fornecimento de máscaras, como ocorre na casa de Cecília, são alguns dos abusos trabalhistas que atingem o setor — no qual trabalham milhares de famílias da região centro-oeste de Minas Gerais. Sem nenhum controle, essa cadeia de produção envolve também denúncias de enroladores com coronavírus obrigados a queimar os produtos, sem receberem nada pelo trabalho realizado. São tantas as violações, agravadas pela crise de covid-19, que o setor está na mira do Ministério Público do Trabalho, após ser informado dos problemas pela Repórter Brasil.
No Brasil, o trabalho de crianças e adolescentes com menos de 16 anos é proibido pela Constituição e pela legislação trabalhista. Apesar de não ser considerado crime, é uma das piores violações trabalhistas, atrás apenas do trabalho escravo, segundo auditores-fiscais do Trabalho, e prática comum na produção do cigarro de palha.
Nas margens da rodovia entre Papagaios e Pitangui, no distrito de Vargem Grande, quatro irmãs estão sentadas na calçada enrolando cigarros. Uma delas começou na atividade aos 12 anos. Após cinco anos, aos 17, ela vê o trabalho com desalento. Todas reclamam de dores nas costas, no pescoço e de alergias provocadas pelo contato constante com o fumo. “Quem ganha dinheiro com cigarro de palha é só o dono da fábrica. A gente apenas sobrevive”, afirma uma delas.
A informalidade é total e os enroladores de cigarro de palha não têm garantido nenhum direito trabalhista. Os intermediários que contratam os serviços das famílias não fornecem equipamentos de segurança, como máscaras, e nem itens básicos, como cadeiras adequadas para atividade. Os trabalhadores sentam em bancos sem encosto e até no chão ou nas calçadas.
A pandemia vem deixando ainda mais expostas essas famílias que já vivem em condições precárias, além de provocar prejuízo financeiro. “Avisei que tinha pegado coronavírus e eles mandaram queimar a produção. Fiz isso, mas eles não pagaram nenhum centavo”, relata Joana Silva de 22 anos, moradora de Papagaios, referindo-se à ordem que partiu do intermediário.
Joana começou neste trabalho aos 16 anos, enquanto estudava. Após se formar no ensino médio, procurou emprego, mas não conseguiu. Desde então se dedica à atividade informal. “Aqui tem pouca opção de trabalho”, lamenta. Já recuperada da covid-19, ela segue enrolando cigarros de palha. Tenta produzir cerca de mil por dia, o que gera uma renda R$ 1 mil por mês trabalhando de segunda a sexta-feira por mais de 12h diárias. Além do dor nas costas e no pescoço, ela também se queixa de sinusite e dores de cabeça constantes, provocadas pelo cheiro do fumo.
As queixas são as mesmas de Carla Ribeiro, de 37 anos, que enrola os cigarros sentada na calçada a poucos metros da fábrica da Souza Paiol — maior fabricante do país –, em Pitangui. Ela perdeu o emprego de doméstica há dois meses, por causa da pandemia e, sem conseguir outro trabalho, enrola cerca de 700 cigarros por dia. “Não acho bom, mas é o que tem para fazer.”
O risco de contaminar os cigarros com covid-19 é pequeno, segundo o médico infectologista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Unai Tupinambás. “Há um intervalo de tempo entre a produção e o consumo do cigarro que reduz o risco”, afirma Tupinambás, que é também membro do comitê de enfrentamento à pandemia da prefeitura de Belo Horizonte. “Mas os trabalhadores devem receber pela produção, pois se isso não acontecer eles podem esconder dos contratantes que estão contaminados, além de ser uma falta de respeito”, afirma o infectologista. Para ele, empresa deve fornecer máscara para todos que trabalham na produção.
MPT planeja investigar o setor
O Ministério Público do Trabalho afirmou que vai agir em três frentes contra os abusos trabalhistas no setor, após ser informado das denúncias pela Repórter Brasil. “Contra o trabalho infantil, as condições precárias de trabalho e em possíveis fraudes nas relações de emprego”, afirma a coordenadora de defesa do Meio Ambiente do MPT, Adriana Moura. Segundo Moura, o objetivo é não fechar os postos de trabalho e deixar as pessoas desempregadas em plena pandemia, mas cobrar pela regularização dos trabalhadores.
A procuradora recebeu denúncias sobre trabalhadores que tiveram que queimar a produção por causa do coronavírus e ficaram no prejuízo, assim como as denúncias sobre trabalho infantil. Moura solicitou ao Ministério Público de Minas Gerais a documentação de duas operações realizadas pelo órgão no ano passado mirando os fabricantes de cigarro de palha: ambas focadas no não pagamento de tributos. Uma delas mirou a Souza Paiol, acusada de sonegação fiscal e de não ter pago cerca de R$ 20 milhões em tributos. Segundo as investigações, o grande volume de produção e venda não declarados gerou um lucro que pode ter sido usado para a aquisição de mais de uma dezena de imóveis, em bairros nobres de Belo Horizonte e Nova Lima (MG).
Na segunda operação, a força-tarefa ampliou a investigação para outras empresas, em oito cidades de Minas Gerais e duas de Goiás. A operação Porronca (uma das formas que o cigarro de palha é chamado no interior de Minas Gerais) estima que as empresas deixaram de pagar cerca de R$ 100 milhões de impostos e observou indícios de lavagem de dinheiro, com carros e imóveis de luxo.
Mais de um ano depois das operações, o foco principal do MP é regularizar a situação fiscal das empresas e cobrar os impostos devidos, segundo o promotor Fábio Reis de Nazareth. “Vimos situações de exploração do trabalho humano muito graves”, afirma o promotor.
‘Se colocam menores de idade, o problema é deles’
O fundador da Souza Paiol, José Haroldo de Vasconcelos, é considerado o pioneiro da atividade e maior produtor de cigarro de palha do país. Questionado pela Repórter Brasil sobre o trabalho infantil na cadeia de produção do cigarro que fabrica ele respondeu: “Se colocam menores de idade, o problema é deles”. Vasconcelos entende que se um pai ou mãe assina o contrato de prestação de serviço e descumpre a regra prevista de não poder usar mão de obra infantil, passando trabalho para os filhos, o fabricante não pode ser responsabilizado.
A juíza do trabalho, Valdete Souza Severo, entende de forma diferente. “Quando é exigido um número impossível de cigarros enrolados para uma remuneração minimamente digna, a pessoa dependerá da força de trabalho de toda a família”, afirma Severo, que é presidente da Associação de Juízes para a Democracia. “Portanto, é como se estivesse contratando as crianças diretamente. O mesmo ocorre quando não registra a carteira, não reconhece os direitos mínimos. O empregador, por via oblíqua, obriga a família toda a trabalhar”, avalia.
Sobre as condições de trabalho precárias e a falta de equipamentos como cadeiras adequadas, o empresário também respondeu com ironia. “Se uma pessoa não tiver uma cadeira e uma mesa para sentar e fazer isso aí (enrolar cigarro) é bravo, né?”. Para ele, cada um dos trabalhadores precisa ter “a responsabilidade e o jeito melhor de trabalhar”.
O mesmo vale, segundo ele, para os cuidados com o coronavírus. “Cada um na sua casa tem que tomar os cuidados devidos”, afirma. Ele explica que os prestadores de serviço devem cuidar do material e que se o fumo molhar, por exemplo, o produto é descartado. “A gente perde o material e ele perde a mão de obra”.
Vasconcelos admite, no entanto, que não existe um controle para saber se os prestadores de serviço foram contaminados com coronavírus, pois os cigarros são esterilizados antes de serem colocados nos maços. Ele afirma que a empresa já deu cursos para ensinar os trabalhadores a usarem máscaras por causa do cheiro do fumo. “Mas não por causa desse coronavírus aí”, ressalta. A máscara, contudo, só é fornecida para os 78 funcionários que trabalham dentro da fábrica, responsáveis por embalarem os cigarros.
Sobre o não pagamento de impostos, Vasconcelos confirma que está negociando a dívida com a Receita Estadual. De acordo com o fundador da Souza Paiol, as fábricas de cigarro de palha geram cerca de 150 mil postos de trabalho em Minas Gerais, que vão desde a colheita do milho (que deve ser manual para não estragar a palha), passando pela produção e colheita do fumo até os enroladores de cigarro.
Vasconcelos começou a produção há 21 anos e contabiliza que neste período surgiram mais de 5 mil marcas, a maioria de empresas pequenas. “Eu tenho uma coleção de 3,2 mil caixinhas de cigarro diferentes”, destaca. De acordo com o MP, somente em 2018, o consumo de cigarro de palha foi de 1,2 bilhão de unidades, com 75% dos consumidores concentrados em Minas Gerais, São Paulo e Goiás.
* os nomes são fictícios, para preservar a identidade das crianças, adolescentes e trabalhadores
Fonte: Repórter Brasil
Texto: Daniel Camargos
Data original da publicação: 25/08/2020
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