Trabalho infantil deixa 2,4 milhões com infâncias ceifadas no Brasil

Recentemente, começamos a buscar dados sobre trabalho infantil com o objetivo de informar atores municipais e estaduais sobre a situação de suas localidades. E a situação é preocupante.

Marcele Frossard e Andressa Pellanda

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 10/06/2020

Segundo definição da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho infantil priva a criança de sua infância, de seu potencial e de sua dignidade, e é prejudicial ao seu desenvolvimento físico e mental. Outra definição possível é todo trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida, de acordo com a legislação de cada país. No Brasil, o trabalho é proibido para quem ainda não completou 16 anos, como regra geral. Quando realizado na condição de aprendiz, é permitido a partir dos 14 anos. Se for trabalho noturno, perigoso, insalubre ou atividades da lista TIP (piores formas de trabalho infantil), a proibição se estende aos 18 anos incompletos.

Os dados sobre trabalho infantil no Brasil são mensurados a partir do Censo Demográfico – o último foi realizado em 2010 – e da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD), – a última que inclui esses dados foi realizada em 2015 e publicada em 2016. Em 2016, a PNAD passou por modificações metodológicas que comprometeram a mensuração de trabalho infantil. Segundo o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, a mudança metodológica deixou de considerar as crianças e adolescentes que trabalham na produção para o próprio consumo, excluindo da apresentação dos dados sobre trabalho infantil 716 mil crianças e adolescentes nessa situação. Nessa ocupação, há uma maior incidência de trabalho infantil abaixo de 13 anos. No que se refere a políticas públicas, estas crianças e adolescentes ficarão excluídas das ações e programas de prevenção e erradicação do trabalho infantil.

Recentemente, começamos a buscar dados sobre trabalho infantil com o objetivo de informar atores municipais e estaduais sobre a situação de suas localidades. E a situação é preocupante.

Censo

As pesquisas da PNAD, como o nome já diz, contudo, são amostrais e não detalham a situação dos municípios. A pesquisa nacional que apresenta dados sobre trabalho infantil de maneira detalhada é o Censo Demográfico, que está desatualizado, pois acontece de 10 em 10 anos e o último foi em 2010. E há enormes riscos de ele ser reduzido, sucateado ou até inexistir – por conta das intenções nada transparentes, de Estado mínimo e avessas ao investimento em produção e coleta de dados por parte deste governo.

Em maio de 2019, o IBGE tinha anunciado que o modelo sofreria um corte de 32% no número de perguntas em relação ao modelo de 2010 devido à situação econômica. Os dados do SUS também não são atualizados pelo menos desde 2015. As pesquisas sobre Entidades de Assistência Social Privadas (2014-2015), Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos (2016), que são importantes para conhecer a atuação destes atores, também não são atualizados há algum tempo. 

As pesquisas mais recentes do IBGE disponíveis são o Censo Agropecuário, de 2017; o Censo Escolar, de 2018; Desigualdade Social por Cor ou Raça, de 2018; Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil, de 2017; IDEB, de 2017; Panorama Brasil, de 2018;, PNADC – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, de 2019; POF – Pesquisa de Orçamentos Familiares, de 2018-2019; Painel Educacional INEP (2017). Cabe notar, porém, que algumas destas pesquisas, como o Painel Educacional, eram anuais e estão com um atraso de pelo menos 3 anos.

O site da OIT Brasil disponibiliza um Diagnóstico Intersetorial Municipal  e o Observatório da Prevenção e da Erradicação do Trabalho Infantil. O primeiro disponibiliza via download os diagnósticos de todos os municípios brasileiros para que possam ser utilizados amplamente pelos gestores municipais, estaduais, distrital e federal além de outros interessados na elaboração de políticas de prevenção e eliminação do trabalho infantil. Os dados foram extraídos de um conjunto de sistemas de dados, sejam federais, sejam subnacionais. O segundo apresenta dados de uma série de bancos, de maneira interativa. Este estudo da OIT foi o mais atual encontrado e mesmo assim utiliza dados anteriores à 2017, cruzando uma grande variedade de dados para conseguir se aproximar da realidade do trabalho infantil nos municípios brasileiros. 

Mudanças no sistema de informação

Além disso, em maio de 2020, não foi possível acessar o Sistema de Informação sobre Focos de Trabalho Infantil no Brasil (SITI). Com as mudanças recentes no Ministério do Trabalho, ainda não se sabe sobre o funcionamento e manutenção deste sistema. 

O atraso na divulgação de dados ou a não realização destas pesquisas constitui uma séria ameaça ao planejamento e execução de políticas públicas e, portanto, para a própria prevenção e erradicação do trabalho infantil. O que se observa é a necessidade de uma pesquisa de maior alcance, aprofundamento e de caráter contínuo que permita compreender a situação do trabalho infantil de forma mais detalhada. 

Em pesquisa elaborada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que resultou nos dados disponibilizados no Right to Education Index – RTEI, também ficou clara a ausência de dados fundamentais para compreender a relação entre educação e proteção à infância e à adolescência, bem como a garantia de uma educação democrática e voltada para a diversidade. Não existem dados, por exemplo, sobre escolas com água potável e o número de banheiros por escola. 

O índice internacional, RTEI, demonstra o que todos sabemos: que o Brasil tem excelentes leis, planos e acordos internacionais – tendo ganhado a pontuação máxima nesse quesito, à frente de inúmeros países desenvolvidos -, mas encontra dificuldade de realizá-los. O total alcançado em governabilidade, 98, demonstra a distância em relação aos dados sobre os professores, condições sanitárias e livros didáticos, que foram considerados insuficientes, e por isso sequer tiveram valor atribuído.

Em face do atual momento, a falta de dados representará maiores dificuldades para realizar ações que realmente produzam impacto sobre a realidade de milhares de crianças e adolescentes residentes em território nacional. É urgente que haja pressão de diferentes setores para que todas as pesquisas, mas sobretudo aquelas sobre proteção – e, no caso desta agenda que trazemos, trabalho infantil – e educação continuem acontecendo, com maior detalhamento e profundidade, de maneira contínua e com mudanças metodológicas que afiem os instrumentos de mensuração em vez de reduzir o tamanho do problema, como o que ocorreu com a PNAD.

A plataforma Cada Criança, uma rede de organizações de defesa de direitos da criança e do adolescente, tem se debruçado sobre essa problemática e deve aprofundar esse trabalho em termos de qualificar essa coleta e produção de dados e informações confiáveis. Transparência, pesquisa, e bons diagnósticos devem caminhar de mãos dadas com planejamento, gestão democrática, financiamento adequado e políticas públicas que garantam que toda criança esteja livre, segura e com direito à educação. Neste Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, para que evitemos que infâncias sejam ceifadas, e diante do cenário de terra arrasada em termos de transparência pública e de políticas de garantia de direitos humanos precisamos ainda mais falar sobre isso e atuar, coletivamente, por essas mudanças.

Marcele Frossard é consultora da plataforma Cada Criança, braço da iniciativa global liderada pelo Nobel da Paz, Kailash Satyarthi, 100 Milhões por 100 Milhões; é integrante da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação; é doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre em Ciências Sociais pela PUC-RJ. 

Andressa Pellanda é coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação; é integrante do Comitê Gestor da plataforma Cada Criança, braço da iniciativa global liderada pelo Nobel da Paz, Kailash Satyarthi, 100 Milhões por 100 Milhões; e é mestranda em Ciências pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.

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