Glaucia Campregher
Numa sociedade baseada na economia mercantil, quem não tem o que vender, vende-se a si mesmo. Essa é a base do assalariamento. Vender alguma coisa é a condição para podermos comprar todas as coisas. Na falta de alguma coisa que possamos produzir nós mesmos, pois não temos as ferramentas, a matéria-prima, etc. vendemos a nossa capacidade de trabalho – livres que somos! – para quem os tenha e queira nos contratar. Não devemos nos envergonhar de trabalhar para alguém, mas de não trabalharmos. Essa é a moral que nos governa. Não conseguirmos sustentar a nós e a nossa família pode levar à dívida, um horror! E, horror pior, nos levar ao roubo. “Nunca roubei nada”, “prefiro mendigar a roubar” e “não devo nada a ninguém” tem tudo a ver com “sou feliz porque tenho um emprego”, sou um trabalhador digno e honrado.
Ainda assim, nenhum trabalhador precisa ler os três volumes d’O Capital, e nem mesmo o texto curto do Manifesto Comunista, para entender que há algo errado nessa história, que melhor seria se pudéssemos trabalhar para nós mesmos. Como se diz no Brasil, sermos “nosso próprio patrão”. Esses livros precisariam ser lidos é para entender que: I) nunca na história a opção trabalhar para si mesmo foi uma opção (a não ser na ficção do náufrago isolado numa ilha); e II) melhor mesmo seria continuarmos todos trabalhando para todos como numa economia mercantil (onde todos ganhamos porque a divisão do trabalho e a especialização nos fazem produzir muito mais), só que sem patrões! Essa é a moral comunista: se a produção é social, a apropriação também deveria sê-lo, e ponto. O interessante é que essa “moral” anda por aí como um fantasma que nunca teve um corpo – nem morreu – porque sequer nasceu direito… Por que digo isso? Porque no resto todo, o que vale no mundo dos indivíduos é a moral oficial de que o trabalho enobrece e dignifica, de que dever é ruim e pior é roubar.
Nenhum filme, a meu ver, mostra isso mais e melhor que “Ladrões de bicicleta”, de Vitorio De Sica, lançado em 1948. E se volto a um filme tão “velho”, até mesmo possivelmente datado, é que é incrível como, na falta de compreendermos como nos governa a “moral tradicional”, nos tornamos vítimas fáceis do moralismo cínico e hipócrita que não questiona o poder econômico dos que nos compram o trabalho e ainda leva ao poder político os mais imorais de todos nós. E nada melhor que uma boa história contada ao modo do realismo italiano para vermos isso…
A história contada em Ladrões de Bicicleta é a de milhares e mesmo milhões de trabalhadores italianos no imediato pós segunda guerra. Os vemos aos montes no filme, na frente das fábricas a ouvir os anúncios de vagas (poucas) dos contratantes, nas ruas perambulando tontos e perdidos como “exército de reserva” que são, ou metaforizados de modo brilhante em coisas – como na cena antológica do galpão abarrotado de roupas que tantos deles penhoraram para conseguir o que comer. O personagem principal (Ricci) precisou penhorar a roupa de cama da família (nada menos digno) para conseguir uma bicicleta (condição para conseguir um trabalho), pois que a sua já havia sido empenhada para comprar alimento. O trabalho conseguido é colar cartazes de filmes. Mas nem bem comemorou com a esposa a dignidade conseguida em forma de duas rodas e um guidão e esta lhe é roubada enquanto ele colava seus primeiros cartazes. O resto do filme é todo sobre o périplo de Ricci e seu filho pequeno atrás da bicicleta roubada pelas ruas de Roma. A cidade é o cenário ideal, dado de graça pelo mundo real, da pobreza e desesperança. Ricci e o filho cruzam delegacias, feiras de rua, missas, todos espaços onde os trabalhadores procuram alguma solução ou ao menos algum conforto, imaginário ou real (como um prato de sopa). Esses três não foram escolhidos ao acaso, mostram a falência do Estado, do Mercado e da Igreja em mitigar o sofrimento do povo. Ao final, pai e filho encontram o ladrão, o homem que abriu mão de sua dignidade e se dispôs a roubar, mas este tem igualmente a fome por justificativa. Ricci titubeia em reivindicar a bicicleta roubada e tenta ele próprio roubar outra. Ele falha e o final do filme, realista como todo ele, é o seu quase linchamento. A presença do filho o salva, mas apenas para colocá-lo de novo na multidão apática e esquálida dos desempregados da cena final.
A reflexão que eu gostaria de sugerir a partir do filme é a de que a moralidade que nos é imposta, em 1948 como agora, pelo consórcio Estado, Mercado (todos os mercados, inclusive o de bens culturais) e Igreja (ou igrejas) só faz dificultar a nossa compreensão dos eventos e agravar o nosso sofrimento. Essa reflexão exige que diferenciamos, traços largos que seja, o que é uma moralidade que se impõe – um tanto de cima para baixo, e um tanto em benefício dos de cima e prejuízo dos de baixo – e uma ética que se constrói.
As relações que estabelecemos uns com os outros devem ser, em cada tempo e lugar, aprovadas pela maioria, aprovação essa conseguida seja pela violência, seja pelo convencimento. O que é certo ou não fazer, honrado, digno ou não, depende da época e das circunstâncias. A construção de valores pelo conjunto da humanidade sem constrangimentos de força e sem alienação ainda está por ser feita ou, na melhor das hipóteses, ainda está sendo feita. Na falta disso que seria uma ética, o que temos são valores impostos a que obedecemos mais ou menos cegamente. Esses fazem a moralidade dominante. Ou, dito de outro modo, a ética não é algo que se imponha, é constituída da reflexão acerca dos condicionantes prévios à ação mais que dos meros ditames desta. Estamos mais próximos da ética do que da moral quanto mais alargamos a compreensão de que somos nós que estabelecemos o que é o bom, o justo, o verdadeiro e o belo. Estamos mais próximos da mera moralidade quando menos nos importamos em investigar de onde vêm todos esses valores e apenas nos importa que sejam obedecidos.
Podemos pensar que, no capitalismo, o enobrecimento pelo trabalho está mais próximo de uma moral que de uma ética. A ideia de que os capitalistas chegaram as suas posições de riqueza e poder por merecimento, por guiarem suas ações pelos valores da liberdade e da igualdade, da honestidade e da parcimônia, do método e do esforço, posta-se a salvo de toda discussão, é pura ideologia. Posta em discussão, poderíamos recuperar a história, mal contada, de como uma nova classe de homens pode se estabelecer e se tornar hegemônica. Descobriríamos que as histórias das burguesias dominantes em cada nação envolvem um passado de violência, alianças ignóbeis e traições, roubo e dívida. O pecado original burguês não explica o seu sucesso persistente, mas o seu conhecimento faria da moral burguesa algo mais risível do que opressor. O seu desnudamento faria com que o pai que vaga pela cidade desesperado, correndo o risco de perder o que de fato tem valor, seu filho, pudesse sofrer por fome, mas não por vergonha.
O moralismo é um perigo em si, repetir modos de comportamento ditados suspende o juízo e a responsabilidade perante um comportamento verdadeiramente ético. Não julgo possível alcançarmos esse comportamento numa sociedade onde até mesmo a alienação é desigual – havendo entre os indivíduos os que não podem e os que não querem compreender a si mesmos no contexto geral. Os que podem não o querem, pois têm a ganhar (respeito e obediência) se usarem, mesmo sem acreditar, a sua fantasia de potência. Os que precisam (para mitigar seu sofrimento) não o podem, pois estão sob o efeito narcótico da fantasia alheia que acreditam verdadeira. Será esse filme potente a ponto de abalar uns e outros?