De exemplo mundial em políticas concretas para erradicação do trabalho escravo, o país parece querer encerrar a questão de forma mágica: muda-se o nome da coisa. Mas a realidade, se não for de fato transformada, acaba por se impor.
Christiane V. Nogueira
Renan Kalil
Fonte: Brasil de Fato
Data original da publicação: 28/01/2015
O ano de 2014 trouxe grande conquista para o combate ao trabalho escravo, tema no qual, até o momento, o Brasil é referência internacional. Em maio, foi aprovada no Congresso Nacional Emenda que modificou o art. 243 da Constituição. O novo texto prevê a expropriação de imóveis urbanos e rurais onde for constatada exploração de trabalho escravo, destinando-os para reforma agrária e programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo das demais sanções legais. Da primeira proposta nesse sentido até a aprovação passaram-se quase 20 anos.
Atualmente, muito em razão dos esforços do Estado e dos movimentos sociais brasileiros para erradicar essa forma de exploração, é de conhecimento geral o conceito de trabalho escravo contemporâneo. Porém, não é demais repetir: a descrição se encontra no art. 149 do Código Penal, que enquadra como crime de redução a condições análogas às de escravo o trabalho forçado, a servidão por dívida, as jornadas exaustivas e as condições degradantes.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em diversos momentos, destacou o avanço dessa definição, considerada um exemplo para os demais países.
Constantemente são noticiadas situações em que ocorre a submissão de trabalhadores a condições análogas às de escravo. Em muitos casos são migrantes, sejam do Nordeste, em canteiros de obras e fazendas país afora, sejam da Bolívia, Paraguai ou Peru, em oficinas de costura adentro. São casos de extrema exploração, de violação brutal de direitos humanos básicos, como a liberdade e a dignidade, de coisificação de pessoas vulneráveis social e economicamente. Não se tratam de irregularidades trabalhistas de pequeno porte.
Para a aplicação desta nova sanção, desenvolveu-se um debate que se consolidou nos seguintes posicionamentos: (i) a utilização da Lei n. 8.257/91, que trata da expropriação de terras em que for verificado o plantio de psicotrópicos; (ii) a regulamentação da matéria a partir do conceito já adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro, o do art. 149 do Código Penal; (iii) nova disciplina com concepção específica do que seria trabalho escravo para fins de expropriação.
Os dois primeiros caminhos partem de um patamar já conquistado no âmbito da proteção dos direitos fundamentais em nossa ordem jurídica e possuem diferenças apenas na técnica utilizada para realizar a expropriação.
A terceira opção, porém, configura um grave retrocesso. A principal proposta nesse sentido é o PLS n. 432/2013, de autoria do Senador Romero Jucá, que restringe o que se entende por “trabalho em condições análogas à de escravo” aos casos de trabalho forçado e servidão por dívida.
Para os defensores dessa concepção, trabalhadores alojados em barracos de lona ou palha, expostos a intempéries e animais peçonhentos; que dormem no chão; que bebem água de locais onde animais defecam ou guardada em vasilhames de agrotóxicos; que recebem comida estragada e insuficiente; que desempenham suas tarefas sem qualquer proteção à saúde ou à segurança; que fazem suas necessidades fisiológicas no meio do mato; que recebem valores irrisórios pelos serviços prestados ou são pagos por produção, sendo obrigados a trabalhar praticamente todo o dia; que vivem em moradias coletivas, sem condições de higiene, amontoados, com suas crianças, e no mesmo ambiente que o maquinário de trabalho; que são superexplorados nas franjas das cadeias produtivas que subcontratam sucessivamente buscando o barateamento da mão de obra pela precarização, deverão ser considerados casos de irregularidades trabalhistas simples. A ideia que embasa o PLS n. 432/2013 é esta: tratar empregados como animais ou, pior, como objetos, não deveria trazer maiores consequências para o empresário que adotar a prática.
A regulamentação da expropriação por essa trilha significará um passo à frente para, em seguida, dar dois para trás: a adoção de um instrumento para ampliar a promoção dos direitos fundamentais dos trabalhadores pondo em xeque um degrau de proteção já alcançado.
Em novembro de 2014, o parecer do relator do projeto foi aprovado na Comissão Mista de Deputados e Senadores criada para regulamentar o texto constitucional.
Em dezembro, durante o recesso forense, liminar do Presidente do Supremo Tribunal Federal, em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) proposta pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias – ABRAINC, determinou a suspensão de um dos mais eficazes instrumentos de combate ao trabalho escravo, a chamada “Lista Suja”, que publica semestralmente os nomes das pessoas físicas e jurídicas que exploraram mão de obra em condições análogas às de escravo (para maiores esclarecimentos sobre o tema, ver carta da Comissão Pastoral da Terra à Presidenta Dilma Rousseff).
De exemplo mundial em políticas concretas para erradicação do trabalho escravo, o país parece querer encerrar a questão de forma mágica: muda-se o nome da coisa. Mas a realidade, se não for de fato transformada, acaba por se impor. É como diz Paulo Leminski, em seu poema “Bem no fundo”:
“No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
(…)
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.”
As instituições que atuam para erradicar o trabalho escravo não retrocederão nesse combate. Em 2015, esta é a celebração possível no dia em que são homenageados os auditores fiscais do trabalho e motorista assassinados em Unaí em 2004.
Christiane V. Nogueira e Renan Kalil são procuradores do Trabalho.