Trabalho escravo em pomar que abastecia ‘líder em maçãs’ acende alerta sobre condições na colheita do fruto

Fotografia: MPT-RS

O resgate de 80 trabalhadores em condições análogas à escravidão ocorrido em abril, em Bom Jesus, na serra do Rio Grande do Sul, acendeu um alerta entre autoridades que combatem o trabalho escravo no Brasil: o caso superou todos os registros ocorridos no estado no ano passado, 76, e elevou a conta de 2022, que já alcança 103 trabalhadores resgatados.

A situação em que os empregados foram encontrados também é motivo de preocupação. “Não víamos essas condições de degradância na região há muito tempo”, afirma o procurador do Ministério Público do Trabalho de Caxias do Sul, Rodrigo Maffei, que participou do resgate ao lado de auditores fiscais do Ministério do Trabalho e agentes da Polícia Rodoviária Federal.

A fazenda autuada, de Rafael Rosa Zandonadi, era fornecedora de uma das gigantes da fruticultura nacional, a Schio Agropecuária, que diz ser “líder no setor da maçã”. “Esse caso serve para reflexão: o que voltou a acontecer no segmento da maçã?”, complementa o procurador.

Na última sexta-feira (15), 20 autos de infração trabalhista foram registrados pelo Ministério do Trabalho contra o dono do pomar, incluindo o que caracteriza o trabalho análogo à escravidão – o que pode levá-lo a ser incluído no cadastro de empregadores responsabilizados pela prática, conhecido como “lista suja”. Antes de integrar o cadastro, no entanto, o empregador ainda poderá recorrer em duas instâncias dentro do órgão. Apenas quando o caso transitar em julgado, ou seja, quando não houver mais possibilidades de recursos, é que o produtor será incluído na “lista suja”. Atualmente, esse processo leva, em média, dois anos. 

Em resposta à Repórter Brasil, a Schio afirmou que suspendeu os negócios com o fornecedor imediatamente após o resgate, mas o caso gera dúvidas sobre os controles da empresa, já que 25% de toda sua produção é terceirizada

Se você gosta de maçã, é muito provável que já tenha comido a fruta produzida pela Schio. A empresa é responsável pela produção das maçãs do Senninha, além das maçãs das marcas próprias de duas gigantes do varejo no país: a Qualitá, do Grupo Pão de Açúcar, e a Sabor e Qualidade, do Carrefour. A Schio também é uma das principais exportadoras da fruta no país: Reino Unido, Espanha, Irlanda, Índia e Bangladesh receberam a produção da empresa no último ano, segundo registros alfandegários acessados pela Repórter Brasil.

Já Zandonadi pertence a uma família que tem outra propriedade fornecedora da Schio, em São Joaquim, no estado vizinho de Santa Catarina, onde o produtor autuado também possui uma empresa de embalagem e logística de frutas. São Joaquim é conhecida como a “capital nacional da maçã” e por registrar algumas das temperaturas mais baixas do Brasil.

Mas o alojamento oferecido em sua propriedade aos trabalhadores não era adequado ao clima local. O galpão de madeira tinha frestas largas nas paredes, que deixavam o ar gelado entrar durante as noites. Mesmo nos primeiros meses do ano, as temperaturas na região são baixas – ideal para o cultivo da maçã, péssimo para quem não tem nada para se cobrir. 

“Eu fiquei lá no sofrimento. Não tinha como ir embora, não tinha roupa de frio. Tinha vez que chegava a chorar de dor no corpo”, conta José*, um dos 80 trabalhadores resgatados.

Ele confirmou o que integrantes da força-tarefa anotaram em seus relatórios: nenhuma roupa de cama foi fornecida pelo empregador e os colchões eram sujos, finos e úmidos, o que aumentava a sensação de frio. Na tentativa de amenizar o problema, os trabalhadores forravam a lateral do beliche com papelão para fazer uma proteção contra o vento. 

“Os colchões eram podres. Quem levou edredom, conseguiu se virar. Teve gente que conseguiu o dinheiro da passagem e foi embora por causa do frio”, complementa o safrista. A maioria dos resgatados vinha de municípios da Bahia, Paraíba e do Maranhão.

Após a fiscalização, o galpão usado como alojamento foi interditado.

A água usada para matar a sede e tomar banho vinha de um banhado à céu aberto e tinha um aspecto turvo e, segundo relatos dos trabalhadores, provocou doenças de pele em algumas pessoas. “Eles alegavam que já tinham tido micose por causa da água do banho”, explica um dos auditores fiscais que participou da fiscalização. Depois que os trabalhadores reclamaram, o patrão até instalou bombonas no refeitório. “Mas o local era fechado depois das refeições”, complementa o auditor.

Em entrevista à Repórter Brasil, Zandonadi disse que o alojamento oferecido em seu pomar estava “dentro dos tamanhos e padrões previstos na legislação”, e que disponibilizou, além de colchões, travesseiros e cobertores. “Eu tenho o recibo de entrega dos itens aos trabalhadores”, garante. Ainda disse que a água ofertada era proveniente de uma nascente e que possui laudo de potabilidade “onde se comprova que pode ser consumida”. A Repórter Brasil pediu acesso aos documentos citados, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. Leia a íntegra das respostas do empresário aqui.

Após o flagrante de trabalho escravo, o empregador assinou um Termo de Ajustamento de Conduta emergencial em que se comprometeu a pagar R$ 394 mil reais referentes às verbas rescisórias, que incluíam o saldo de salário, 13º e férias proporcionais, além de R$ 1 mil a título de dano moral individual para cada contratado. Zandonadi também arcou com os custos de transporte e alimentação para o retorno do grupo aos seus municípios de origem.

Entregas diárias para a Schio

Entre fevereiro, quando a colheita de maçãs começou na fazenda em Bom Jesus, até abril, quando o contrato com o fornecedor foi rompido, a Schio recebia entregas diárias das maçãs da propriedade, segundo relatórios de recebimento de cargas acessados por integrantes da força-tarefa em visita à sede da empresa em Vacaria, no Rio Grande do Sul. A empresa tinha exclusividade sobre as frutas de melhor qualidade retiradas do pomar.

Em resposta aos questionamentos enviados pela Repórter Brasil, as maçãs de fornecedores externos são destinadas a pequenos comerciantes do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Por isso, os frutos produzidos com mão de obra explorada ilegalmente não foram parar nos pacotes vendidos com a marca Senninha e nem para os supermercados Carrefour e Pão de Açúcar, que recebem apenas a produção proveniente das 11 fazendas próprias da empresa. Também são “embaladas em outra unidade que não tem relação nenhuma com o fato apurado pela reportagem”. Leia as respostas na íntegra aqui.

O Grupo Pão de Açúcar, o Carrefour e o Instituto Ayrton Senna, que licencia a marca Senninha corroboraram a informação. “O Pão de Açúcar possui políticas e processos específicos para homologação e manutenção dos fornecedores de frutas, verduras e legumes para conformidade socioambiental de sua cadeia, em especial para a produção de itens de marcas próprias”, explicou a rede varejista

Já o Carrefour acrescentou que o sistema de fornecimento de frutas, legumes e verduras é totalmente rastreado e monitorado. “A Schio compartilhou que após tomar conhecimento do caso no mês de abril/22, realizou a exclusão imediata da propriedade denunciada”, complementou o supermercado em nota. 

O Instituto Ayrton Senna afirmou que a licença da Schio Agropecuária para comercializar maçãs com a marca “Senninha” é obtida junto a uma empresa especializada em licenciamento que, por sua vez, “fez o contato com a distribuidora dos produtos, a qual informou que o produto licenciado não era produzido pelo fornecedor investigado”. Todos os esclarecimentos dos citados nesta reportagem podem ser lidos, na íntegra, aqui.

Trabalhador ou mercadoria?

Parte do grupo resgatado já havia trabalhado com Rafael Rosa Zandonadi em anos anteriores no pomar da família do empresário em São Joaquim e esperava repetir o local de trabalho nesta safra. “Foi só lá na rodoviária que ele disse que não iríamos para o alojamento que ele prometeu, mas disse que esse outro em Bom Jesus tinha comida boa, colchão bom. A gente se iludiu. Os que tinham dinheiro foram embora. Os que tinham contatos, foram para outras fazendas”, diz José*, um dos resgatados.

O trabalhador saiu do município de São José de Piranhas, na Paraíba, e cruzou cinco estados brasileiros até chegar a São Joaquim. No município catarinense, se juntou a outros trabalhadores “contratados” na própria rodoviária do município. O esquema de contratação no terminal de ônibus é comum na cidade, onde, todos os anos, centenas de trabalhadores chegam para as colheitas de maçã, cebola e outros cultivos temporários. Os que não são aliciados desde a origem, embarcam em longas viagens sem proposta de trabalho definida porque sabem que, ao chegar na região, haverá vagas abertas para atuar na safra.

Trabalhadores forravam frestas do galpão de madeira na tentativa de impedir a passagem do ar gelado; alojamento foi interditado após a fiscalização. Fotografia: Divulgação/MPT-RS

Nestes casos, os ônibus são fretados e, em muitos casos, os motoristas participam do aliciamento, negociando o valor da passagem diretamente com o empregador, que depois, vai cobrar do trabalhador — iniciando uma relação de servidão por dívida da qual, muitas vezes, é difícil de sair. “O produtor vai na rodoviária e encontra um ônibus cheio de trabalhadores. Ele diz ao motorista: ‘eu quero 4’. O motorista diz ‘é R$ 500 cada’”, explica um dos auditores fiscais que participou da ação em Bom Jesus. “É como se fosse uma mercadoria. E o trabalhador contratado passa a ter dívida [da passagem] com o novo empregador”. 

Rodrigo Maffei, procurador do MPT em Caxias do Sul (RS) e um dos integrantes da operação de fiscalização na fazenda, explica que esse tipo de contratação é ilegal. “Os trabalhadores precisam ser contratados e ter o vínculo formal de emprego desde a origem, momento em têm ciência de todas as condições fixadas no contrato de trabalho com o empregador”. No caso de Bom Jesus, muitos dos trabalhadores só tiveram o registro feito em carteira no início da safra, já no pomar.

‘Sofri muito lá’

Sem oportunidades de trabalho fixo no interior da Paraíba, José viveu em São Paulo (SP), onde trabalhou num supermercado, numa indústria metalúrgica e como zelador de prédio. Ele conta que a proposta de trabalho em São Joaquim, como era a oferta inicial, apareceu em uma das ocasiões em que pensava em voltar para a capital paulista em busca de uma ocupação.

“A promessa era de trabalhar três meses e tirar de R$ 7 a R$ 8 mil limpo. Eu acabei me convencendo e convenci ainda outras pessoas. Todos iludidos”, diz o trabalhador de 29 anos. O pagamento durante os três meses que antecederam a fiscalização foi muito menor que o esperado: ele conta que, depois de descontada a passagem de ônibus pelo empregador, conseguiu ganhar pouco mais de R$ 2,4 mil em todo o período.

Os trabalhadores ganhavam por produção. No cultivo da maçã, a remuneração é calculada pelo preenchimento de um bin – caixa de madeira com capacidade para comportar cerca de 330 kg da fruta. Zandonadi oferecia R$ 27 pelo bin colhido de maçãs de boa qualidade, encaminhadas para a Schio Agropecuária, segundo integrantes da força-tarefa que fiscalizou o pomar. Os safristas se dividiam em grupos de cinco e colhiam até 30 caixas por dia.

O salário final, no entanto, não chegava perto da promessa inicial. Isso porque os trabalhadores não saíam do alojamento quando chovia, quando o trator que transportava os bins quebrava ou quando as maçãs ainda não estavam maduras o suficiente. Assim, diversos fatores que são riscos do empregador, como o ônus por intempéries climáticas, eram repassados aos trabalhadores. 

“Eu não acreditava que ainda existia esse tipo de coisa, mas existe sim escravidão no Brasil. Muitas pessoas passam por isso ainda. Eu só acreditei depois que passei”, pontua José.

*Nome fictício para proteger a identidade do trabalhador

Fonte: Repórter Brasil
Texto: Poliana Dallabrida
Data original da publicação: 18/07/2022

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