Trabalho escravo e o atraso como projeto

Fotografia: Sérgio Carvalho/MTE

Como na dialética hegeliana, o capitalismo suspende e supera a escravidão, mantendo-a. Sempre que as condições exigem, ela é revigorada.

Marcelo Milan

Fonte: Sul 21
Data original da publicação: 27/03/2023

Os recentes escândalos de trabalho escravo (e se alguém, exceto os empresários escravistas e seus bajuladores, não se escandaliza, comprova-se a proximidade do colapso civilizatório, mesmo tendo o próprio processo civilizatório avançado tão timidamente) reforçam o status de Bananilga deste país. É claro, o trabalho escravo faz parte do capitalismo, seja aqui ou nos EUA. Este modo de produção teve a prestimosa contribuição da escravidão em suas origens, como mostra o historiador Eric Wiliams. E segue com ela. Como na dialética hegeliana, o capitalismo suspende a escravidão: supera-a mantendo-a. Sempre que as condições de acumulação exigem, ela é revigorada. O mundo encantado do filósofo vitoriano Jeremy Bentham, onde prevalece a igualdade, a liberdade, e, óbvio, a propriedade, é retoricamente defendido, mas não praticado. Em seus mais recente relatório (2021), a OIT contabilizava 50 milhões de escravos no mundo (incluindo sexuais). Assim, o trabalho cativo não deveria receber qualificativos como ‘em condições análogas à escravidão’. Por que análogo e não idêntico? Queriam também os navios negreiros de volta? Os grilhões, o pelourinho e o chicote? Na época do capitalismo de vigilância, o investimento é no monitoramento tecnológico e principalmente na coerção econômica dos escravos. No lugar do chicote, há dívida. E compras forçadas com preços abusivos. Mas há também uma reorganização da violência extraeconômica: saem o grilhão e o chicote, entram o gás de pimenta e os choques.  

O escravismo atual e o anterior, parido na aurora do capitalismo, possuem a mesma motivação: a busca desenfreada pelo lucro a qualquer custo, a compulsão pela mais-valia absoluta. Não é portanto escravismo moderno, pois estes dois termos não fazem sentido juntos. Escravidão capitalista atual ou contemporânea fica melhor do ponto de vista cronológico. E arqueo-escravismo capitalista para diferenciar do trabalho forçado anterior. A escravidão atual é marca registrada das burguesias que são incapazes de competir pela inovação e pela incorporação do progresso técnico e, em seus estertores, se desesperam por poder vir a serem deslocadas do circuito das mercadorias e do capital para o circuito da mercadoria força de trabalho (deve ser horrível ser assalariado…). Em particular, como mencionado em outro artigo para este Sul21, a burguesia na Bananilga se apoia em três muletas: o Estado, o trabalho semiescravo e a tecnologia forânea. Os capitalistas gralham: “A Bananilga está cara!”. Isto é, “estamos lucrando pouco! Menos direitos!” (= mais escravos). A reforma trab, ops, escravista de 2017 busca alcançar este objetivo, mas gradualmente. A precarização avança até onde é possível. Quando não é mais possível por alguma razão, apela-se à escravidão. Eis a camarilha empresarial que se julga moderna, globalizada. Em sua maioria apoiou o genocida em 2018 e em 2022 e muito provavelmente forçou seus escravos a fazerem o mesmo (ou será que retiveram o título de eleitor com medo de fuga, negando também a cidadania?).

Não é ainda surpreendente que boa parte dos escravos tenha sido descoberta na produção agrícola. O agronegócio é o atraso condensado. A atividade escravista e o trabalho degradante (como os boias-frias) sempre aconteceram primordialmente no campo. O ogronegócio é pop(ulação escrava). O ogro é tec(nófobo). O ogro é tudo. Menos progresso. O que não quer dizer que a compulsão da mais-valia absoluta exista apenas no meio rural. O escravismo se espraia territorialmente e setorialmente. SP, assim como RJ e MG, alcançaram uma estrutura econômica com elevada produção relativa (aos demais estados) a partir do trabalho escravo. E depois o capital aplicado na agricultura escravista e seus excedentes foram deslocados para a acumulação industrial nas cidades, com trabalho semi-escravo ou escravo. Nem mesmo a classe média urbana resiste ao ato de escravizar. Novamente, trata-se de um eterno reencontro com o passado. Marca do subdesenvolvimento atávico. A política importa, é claro. Assim, trabalhadores em condições degradantes no canil em SC seria um caso esperado, dada a administração da cidade. Assim como em MG. O cabedal de posturas anti-humanitárias pró-capital é infinito.

Esta onda recente de resgates recorrentes de trabalhadores cativos na Bananilga talvez seja uma das maiores desde a luta abolicionista no século XIX. Nesta vaga, o RS figura como um dos postos avançados do escravismo. A ótima Joana Berwanger deste Sul21 já havia identificado o crescimento do fenômeno no ano passado. O estado está em processo de regressão para um imenso fazendão. Com todas as implicações de decadência frente aos (parcos) avanços da urbanização das últimas décadas. As peças do quebra-cabeça vão se encaixando: fechamento de cursos de pós-graduação, fascistização (violência) da política e fundamentalismo religioso. Com a relativa superação eleitoral, mas não política, do fascismo em nível federal, e a possível recuperação gradual (se tanto) das instituições de fiscalização, novos casos surgirão com maior velocidade nos próximos meses. Fica clara agora a postura contra a arrecadação de impostos que financiam a rede de investigação e resgates, na forma da chorumela contra os gastos públicos. Assim, os resgates só não são maiores porque não há fiscalização suficiente, já que as estruturas de combate são precárias. E a justiça do trabalho parece que, às vezes, via misticismo religioso, retorna à idade média (alguns magistrados parecem ter saído diretamente das obras de Georges Duby). Há poucas exceções, como a espetacular Valdete Souto Severo ou o incrível Jorge Luiz Souto Maior. 

A excelente magistrada Severo ironiza que, pegos em flagrante, agora (com décadas de trabalho escravo contínuo) ninguém sabia que isso acontecia… Aqueles que vivem do cálculo do lucro desconhecem princípios comezinhos de aritmética? Se terceirizar custa menos que contratar, então quem trabalha para a terceirizada recebe menos que receberia da empresa que usa esses serviços, pois a primeira, tanto quando a última, quer lucrar acima de tudo e de todos. Se o salário (incluindo aquilo que antes se chamava benefícios) de contratação sem terceirizar já é, em média, baixo, o salário via terceirização só pode ser aviltante. Se está no nível de subsistência no primeiro caso, só pode estar no limite da escravidão atual no segundo. É pouco provável que uma empresa de terceirização pague salários próximos ou iguais àqueles que os trabalhadores recebiam antes da terceirização e se mantenha lucrativa, mantidas as condições de trabalho. A terceirização é uma corrida ao fundo do poço. Quem corta mais? Enquanto o arqueo-escravismo exigia elevados investimentos na captura, transporte e entrega final, a escravidão atual já tem disponíveis os miseráveis que serão explorados até as últimas consequências, no exército serviçal de reserva populado por, agora como antes, pretos e pardos. Não se compra (ou se vende) o escravo atual, pois isto é desnecessário (mas que a mão da burguesia deve coçar para negociar uns ‘negros’, não há dúvida). A mobilidade dos escravos é muito maior, pois o capitalismo transforma a territorialidade e o tempo de circulação de tudo, além de expandir de forma avassaladora o exército de reserva. Não há alforria, portanto. A única forma de liberdade vem do Estado, que, em sua dimensão oligárquica, permite que isso continue ad infinitum, mas, na sua dimensão (ainda e cada vez menos) cidadã, precisa coibi-lo para legitimar sua existência. Não porque tenham elevada moral. Mas porque é ruim para os negócios do ponto de vista de outra falsa percepção contemporânea: responsabilidade social corporativa (pausa para gargalhar). A hipocrisia impera. 

Apesar dos fâmulos saírem em defesa da escravidão, algumas das vinícolas que lucram com o trabalho escravo tiveram de fazer um acordão com o MPT. R$ 7 milhões por danos morais e mais R$ 1,1 milhão da escravizadora direta. Escravizam e depois escracham e humilham. O total destinado a ‘reparos’ ou ‘indenização’ laboral aos ex-escravos não chega a R$ 5.400 quando dividido pelos 207 alforriados (se o número não subir). Em termos mensais, dá a bagatela de R$ 442 per capita. Quase um terço de um salário mínimo! Menos que nove latas de spray de pimenta! Não compensa de forma alguma os salários não pagos durante o período do trabalho cativo. O crime compensa para a aristocracia do atraso, mais uma vez. Uma informação importante mas desconhecida é: por quanto tempo os cativos foram escravizados? Os cálculos acima consideram um ano. Mas foram quatro anos de governo genocida de ampla condescendência com os ataques patronais aos ‘escravos’ e desmonte das já frágeis estruturas estatais de fiscalização e mais dois de transição transilvânica e reforma trab, ops, escravista, totalizando seis anos. Se mais meses forem considerados, a indenização é menor que uma cusparada na cara dos libertos. E no caso dos danos morais os R$ 7 milhões não vão em sua totalidade para os ex-escravos, então os cativos são humilhados duplamente. Mas a liberdade não tem preço, não é mesmo? Nem precisava indenizar! Danos morais coletivos… Quem sabe algum treinamento para os libertos limparem os iates dos escravocratas?

A quantia também é aviltante se for considerado o caso de 12 anos atrás envolvendo a espanhola Zara (é o capitalismo, estúpido!). Na época, o MPT havia brincado que cobraria R$ 20 milhões. A empresa fez uma proposta e o MPT aceitou a multa sugerida pela consumidora de trabalho escravo, de R$ 3,4 milhões (porque a (in)justiça é lenta…). É claro que as empresas, que já escravizavam, seguiriam escravizando, como vemos hoje! Os lucros alcançados certamente foram bem maiores que R$ 3,4 milhões. É sempre a mesma lenga-lenga. Pedem que reforcem a fiscalização, os programas de combate a estas práticas e advertem “empresa boba! Prometa que não fará mais isso!” E ainda há seguro-desemprego para os resgatados. Corrobora assim o argumento de que o problema da escravidão faz parte da economia, e a sociedade paga a conta dos escravistas. As instituições oligárquicas seguem domesticadas. A ordem é contemporizar com os desmandos e malfeitos. E mimimi que é resultado da pandemia. A sociedade segue assim com um elevado percentual de monstros. Os empresários escravagistas certamente gargalharam quando os procuradores deixaram a sala. Para colocar em perspectiva, um iatezinho chinfrim, tipo o modelo Azimut Grande 27 Metri, custa por volta de R$ 50 milhões. Ou seja, é vantajoso escravizar. Se não forem pegos, um lucro gigantesco. Se forem pegos, pagam uma soma irrisória e mantêm sua riqueza ampliada com trabalho escravo, intocada. É modelo da Lava Jato. Business, oh yeah!   

Neste sentido, o novo governo federal pode até o momento ser caracterizado como ‘não é bem assim’. O estelionato eleitoral teria virado marca do Partido dos Trabalhadores? E a revogação (sim, revogação, não revisão) da reforma trab, ops, escravista de 2017, uma das tantas promessas de campanha? É claro, ter interrompido o governo fascista permite que o trabalho escravo seja melhor identificado (mas não devidamente punido) e que a prática não tenha se tornado, se não legal, pelo menos legítima e logo tolerada, como na nota da associação fascista expressando pesar pela existência de políticas (ínfimas) de bem-estar social que impedem o trabalho aviltante e tornam a escravidão a única forma de lucrar. Legítima inclusive com a volta do tráfico interestadual (na forma de paus-de-arara, não mais navios negreiros). Enquanto a revogação não vem (esperemos Godot), cabe à parcela consciente da sociedade a sua parte. Boicote generalizado aos produtos das empresas que lucram com o trabalho escravo (e isso exclui os intermediários, cuja única punição aceitável é a prisão). Não comprar vinhos com notas feudais, aroma acentuado de desprezo e terroir fascista. O mesmo para arroz, fumo, vestimentas…

O trabalho escravo trata-se assim do reencontro permanente com o passado. O atraso como projeto. O exemplo de Bento Gonçalves é gritante. Aliás, o nome Bento tem sido distorcido de seu significado profundo, aqui (Gonçalves ou Albuquerque) ou lá fora (Papa Bento XVI). Parece que não têm nada de bentos. Gonçalves não descia ao fundo do poço de se transformar em despachante de ladrão de joias. Mas era um escravocrata. O nome da cidade soa como uma homenagem apropriada, portanto. E desta forma a prática se reproduzirá perpetuamente. Até porque não há punição exemplar. E não se defendem aqui choques elétricos e spray de pimenta nos olhos dos escravagistas, tal como torturavam os escravos agora libertos. Apenas punições básicas, como expropriação constitucional de terras e empresas e sua doação para os libertos. Multas de verdade (tipo, vender o iate para pagá-las). E algum tempo no xadrez (cadeia, não nas colunas de Luis Nassif). Mas para quem vive do próprio trabalho a Constituição é letra morta na Bananilga. A experiência recente sugere assim uma teoria das duas barreiras. No caso, um esforço no sentido de eliminar a escravidão atual (primeira barreira) não terá sucesso. E o desgaste impedirá que se avance contra outras formas degradantes de trabalho humano heterônomo considerado ‘livre’ (segunda barreira).

Marcelo Milan é Bacharel, Mestre e Doutor em Economia

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