Sem água, sem banheiro, sem cama. Um barraco de lona cercado de mato, sem qualquer proteção contra cobras e animais selvagens. Quando chovia, o chão de terra era alagado pelo córrego que passava logo atrás. Para matar a sede, era preciso pegar água de uma cisterna – imprópria para o consumo humano.
Era assim que Gisele* estava sobrevivendo e trabalhando como cozinheira quando foi resgatada em condições consideradas análogas à escravidão, em uma fazenda em Novo Progresso, no Pará. Pior: seus filhos, de 9 e 10 anos, estavam com ela, vivendo havia quatro meses nas mesmas condições degradantes. O menino mais velho, que brincava com um trator de plástico no barraco, há três anos era destaque na escola, participando do projeto Soletrando da Secretaria Municipal de Educação. A mãe guarda o certificado até hoje.
O talento do garoto foi um dos pontos que ela citou em seu depoimento aos auditores fiscais e procuradores do Trabalho após ser resgatada. Gisele estudou só até os 12 anos. O filho dela chegou a participar de programas de educação e hoje está sendo retirado desta situação – “um grande retrocesso social”, na opinião do procurador do Ministério Público (MPT) do Pará, Allan de Miranda Bruno. “Inadmissível encontrar, em 2021, duas crianças que compartilhavam com trabalhadores toda indignidade que configura o trabalho escravo contemporâneo”, afirmou o procurador.
Juntamente com Gisele e os filhos, foram resgatados cinco homens, que também ficavam abrigados no barraco de lona. Eles haviam sido subcontratados para fazer a cerca no local, supostamente para conter gado. A família e outros trabalhadores do grupo ficaram no local de 13 de dezembro de 2020 a 24 de abril deste ano, quando ocorreu a operação, fruto de uma denúncia. A ação reuniu esforços do MPT, Ministério da Economia (por meio da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo), Defensoria Pública da União e Polícia Federal.
Sem escola na pandemia
Gisele havia aceitado o trabalho porque foi o único serviço que permitiu que ela levasse os filhos. Ela costumava trabalhar como diarista mas foi demitida no início da pandemia. A escola das crianças fechou as portas e, com um menino e uma menina a tiracolo, os patrões não aceitaram. Sem família na cidade, não tinha com quem deixá-los – o pai não convive com as crianças há anos. O auxílio emergencial salvou a família por uns meses até ser suspenso e depois reduzido.
As escolas particulares de Novo Progresso retomaram as aulas, mas não há previsão de as públicas voltarem com as aulas presenciais. Conforme informou a Secretaria Municipal de Educação, as atividades escolares são entregues impressas junto com o kit alimentação ou por WhatsApp. No barraco insalubre, os filhos de Gisele mal conseguiram acessar as tarefas.
Nos registros fotográficos do dia do resgate, é possível ver um caderno e alguns brinquedos das crianças, próximo das embalagens de agrotóxico, motosserra, galões de óleo diesel e até um trator de verdade — parecido com aquele de plástico do menino.
‘Vai dando medo’
Em conversa com Repórter Brasil, pouco mais de duas semanas depois do resgate, Gisele contou que chegou a procurar novamente o homem que foi autuado por escravizá-la porque não sabia o que fazer sem perspectivas de trabalho.
“Pelo menos lá eu estava trabalhando e tinha comida”, afirmou Gisele. A educação dos pequenos já foi a prioridade, mas agora era se alimentar, e um único dia [sem alimento garantido] era muito tempo para eles.
“Eu estou estressada, não consigo nada. Tenho contas pra pagar. Cada dia que passa, vai dando medo”. São gastos como remédios para tratar inflamações de garganta recorrentes e doenças que os dois irmãos pegaram por conta da água suja da cisterna.
Aos trabalhadores resgatados é previsto o pagamento de seguro-desemprego por três meses. Na audiência judicial para ajustamento de conduta com o empregador, eles receberam as verbas rescisórias e ainda seriam indenizados, cada um, em R$10,5 mil.
Como ainda não tinha recebido tudo, Gisele relatou temer seu futuro e o das crianças sem trabalho. “Para receber o dinheiro tive que viajar com as crianças até outra cidade porque não tinha conta na Caixa (banco) e gastei muito”.
Os fiscais identificaram um empregador direto, Denis Rodrigo Palhares, que foi responsabilizado pelas condições analogias à escravidão, mas ele negou que sabia das condições degradantes e das crianças no local. Nenhum dos trabalhadores tinha carteira assinada. A reportagem entrou em contato com Palhares via email e por meio do advogado que o representou no início do processo, mas não houve resposta.
Grilagem
De acordo com levantamento dos fiscais, a propriedade rural chamada de Fazenda Casa Verde não era registrada oficialmente, podendo ser uma área que estava sendo cercada de maneira ilegal [grilada] para venda e atividades agropecuárias. Segundo a investigação, a fazenda encontrava-se em uma área embargada pelo Ibama.
Quase divisa com Mato Grosso, em região de difícil acesso, só foi possível que os fiscais chegassem ao barracão andando a pé por uma trilha, ao final de uma estrada de terra. Lá, ao encontrar uma “completa ausência de estrutura mínima para a prestação de serviços pelos trabalhadores, em especial a ausência de banheiros e água potável, alimentação e equipamentos de proteção individual e treinamento para uso de máquinas, configurou-se a ocorrência de trabalho análogo ao de escravo”, apontou o relatório de fiscalização.
Dois dos seis trabalhadores não compareceram para prestar depoimento, nem foram localizados. Nenhum deles assinava recibo formalizando o pagamento dos salários; as redes, roupas de cama e outros objetos foram adquiridos pelos próprios empregados, sem ressarcimento; e alguns relataram não ter folga semanal.
Em 26 de abril, foi assinado o Termo de Ajuste de Conduta (TAC) e pagamento dos trabalhadores, além de estabelecido o valor R$ 120 mil a título de dano moral coletivo. Nesse caso específico, segundo o procurador Allan Bruno, esse dinheiro pode ser usado para construção de uma creche em Novo Progresso, por identificar falta de políticas públicas nesse sentido.
“Além do desemprego, para as mães temos mais um problema social (de não ter onde deixar as crianças) e os direitos humanos ainda são tachados como obsoletos”, concluiu o procurador.
* Nome fictício
Fonte: Repórter Brasil
Texto: Joana Suarez
Data original da publicação: 01/06/2021