O que a ascensão de impérios tecnológicos significa para milhões de pessoas ao redor do mundo cujo trabalho sustenta nossas culturas coletivas digitalmente dependentes, mas que muitas vezes não se beneficiam de seus lucros?
Seyram Avle e Sarah Fox
Fonte: Digilabour, com ACM Interactions
Tradução: Guilherme Martins Batista
Data original da publicação: 15/08/2021
As narrativas recentes dos grandes conglomerados tecnológicos contam a história de uma indústria com orgulho e alcance crescentes, agindo em grande parte com impunidade. As denúncias contra representantes do Google pela demissão infundada da especialista em ética na tecnologia Timnit Gebru resultaram em poucos recursos ou remediações, seguindo um padrão de demissões discriminatórias que incluem as de funcionários que alarmaram sobre as práticas racistas e sexistas da empresa. Além disso, as empresas de tecnologia têm adotado estratégias de evitar ou desafiar as regulações existentes. Contestando a proposta de lei na Austrália que teria forçado o Facebook a pagar veículos midiáticos pelo uso de seu material, o conglomerado de mídias sociais simplesmente baniu da plataforma os veículos de notícias do país, sugerindo que é uma empresa grande demais para ser contestada e que não vale a pena apoiar o trabalho jornalístico (apesar de a prevalência de notícias no Facebook). Uma observação desses exemplos pode ser que as fronteiras e os limites parecem irrelevantes para as empresas de tecnologia. E, com isso, está se tornando cada vez mais difícil responsabilizá-las no âmbito dos Estados-nação.
Por meio desses exemplos contemporâneos, vemos os efeitos históricos de grandes empresas de tecnologia ocupando cada vez mais espaço no cenário geopolítico. Na verdade, a era atual sugere que os impérios tecnológicos, que se basearam em um legado de expansão colonial e de capitalismo racial, não podem ser vistos separadamente do tecnonacionalismo, tipificado pela briga EUA-China sobre Huawei e TikTok. O que a soberania nacional significa quando entidades privadas como Alibaba, Amazon, Facebook, Google, Huawei e Tencent baseiam seus modelos de negócios na coleta e exploração de dados sem precedentes de cidadãos e consumidores em todo o mundo? Além disso, o que a ascensão de tais impérios tecnológicos significa para milhões de pessoas ao redor do mundo cujo trabalho sustenta nossas culturas coletivas digitalmente dependentes, mas que muitas vezes não se beneficiam de seus lucros? Que tipo de futuro essas mudanças pressagiam para o trabalho em tecnologia?
Quando falamos sobre trabalho em tecnologia, não nos referimos simplesmente aos trabalhadores de colarinho branco nas sedes das maiores empresas globais. Estamos falando de todos os que trabalham na cadeia de suprimento da produção tecnológica. Isso envolve desde os “creusers” no Congo, que descem à terra para encontrar o cobalto que alimenta as baterias dos dispositivos tecnológicos, até os trabalhadores em fábricas taiwanesas que fabricam chips, os operários em todo o mundo que vendem dispositivos tecnológicos, aqueles que trabalham em call centers e lojas de conserto em países como Índia e Quênia, os “arquitetos da desinformação” em Manila que podem não ser motivados por ideologia e os moderadores de conteúdo no Arizona, que estão constantemente trabalhando na avaliação de imagens violentas e apresentam problemas de saúde mental. Sim, incluímos também os designers e engenheiros de Mountain View e Shenzhen, mas não mais do que os funcionários da lanchonete que servem comida, os zeladores que fazem a limpeza, os garçons, os motoristas de plataformas como Uber, DoorDash , e Grab, e as famílias em Jidong e Mashan que respiram o ar grafite e sentem a fumaça queimar seus pulmões enquanto trabalham reciclando dispositivos descartados.
Vinculamos, com urgência, esses vários trabalhos além das fronteiras e escalas para destacar as experiências compartilhadas de direitos, abusos e condições de trabalho e para destacar as alternativas e os espaços promissores que podem guiar a tarefa de construir solidariedade global entre classes e geografias. Essa ampla missão também nos lembra que assumir limites, fronteiras e definições rígidas pode servir para preservar o status quo, em que reforçamos a valorização diferencial dos diferentes órgãos e dos múltiplos trabalhos que eles assumem.
Com este artigo, lançamos o fórum Tech Labor na revista ACM Interactions, com o objetivo de trazer essas preocupações para uma conversa sustentada. Partindo de vários pontos de vista, consideramos como vive e funciona o trabalho humano que sustenta a mudança tecnológica. Ou seja, como os trabalhadores se organizam, como são vistos por colegas e supervisores, empregadores, lei e acadêmicos, cujo trabalho sustenta as ações e políticas que ditam o trabalho em tecnologia. Seguindo o exemplo dos editores-chefe na edição de março-abril de 2021 da Interactions , usamos uma lente global não apenas para chamar a atenção para o trabalho geograficamente situado em tecnologia e trabalho, mas também para destacar o que está em jogo – a sobrevivência e dignidade de todos que trabalham na indústria de tecnologia globalmente conectada – e esperançosamente para construir solidariedades em todo o mundo.
Nesta primeira edição, Rida Qadri e Noopur Raval baseiam-se em suas pesquisas etnograficamente fundamentadas com diferentes tipos de trabalho em tecnologia no Sul da Ásia para mostrar apresentar casos de pessoas, especificamente trabalhadores de plataforma, sobre as infraestruturas de tecnologias globais (Qadri), e para questionar provocativamente de quem é o trabalho invisível em uma força de trabalho tecnológica globalizada e para quem serve o discurso da (in)visibilidade (Raval). Ambos os trabalhos destacam a importância contínua do lugar – como sítios específicos funcionam para questionar ideias tidas como certas sobre tecnologia, sociedade e trabalho – e nos levam a um pensamento mais nuançado sobre continuidades e atritos do trabalho em tecnologia e o que Anna Tsing chama de nossa “sobrevivência coletiva” em um mundo em rápida mudança. O objetivo de especificar o trabalho do Sul Global não é reificar distinções inúteis entre o “Norte rico” e o “Sul pobre”, mas sim, como alguns trabalhos recentes fizeram, para mostrar que as condições de trabalho específicas transcendem as fronteiras geográficas e estão ligadas por poderosos discursos de tecnologia e trabalho, e sustentadas por questões de longa data envolvendo raça, gênero, classe e sexo, entre outras. Como argumenta Raval, uma “ética cosmopolita fundamentalmente decolonial” é necessária para teorizar e resolver problemas em um nível mais humano, que, como Qadri mostra, esteja em sintonia com os contextos locais, nacionais e regionais e com a geopolítica contemporânea e as histórias do capitalismo.
Convidamos os leitores de ACM Interactions a se tornarem colaboradores e a retomarem os tópicos deixados por esses autores ao desafiar as idéias estabelecidas sobre o trabalho. Aceitamos envios que envolvem tópicos relacionados ao trabalho em tecnologia, incluindo, mas não se limitando a contínuas preocupações sobre pré-automação e falsas automações, perspectivas sobre denúncias e retaliações, solidariedades transnacionais e possibilidades de futuros movimentos trabalhistas. Nosso objetivo é cultivar um espaço para pensamento coletivo e crítica generativa, e esperamos que você goste de ler esta nova seção da revista ACM Interactions tanto quanto gostamos de reunir esses diálogos.
Seyram Avle é professora de mídias digitais globais no Departamento de Comunicação da Universidade de Massachusetts, Amherst, e pesquisadora do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Harvard. Sua pesquisa se concentra em culturas digitais e inovação em partes da África, China e EUA.
Sarah Fox é professora assistente na Carnegie Mellon University no Human-Computer Interaction Institute, onde dirige o Tech Solidarity Lab. Sua pesquisa se concentra em como os artefatos tecnológicos desafiam ou propagam exclusões sociais.