Trabalho de homem, trabalho de mulher

Lais Abramo, diretora do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, explica a que passos o Brasil avança na equidade de gênero e apontas as barreiras culturais e históricas que ainda atrasam o avanço das mulheres no mercado de trabalho.

As convenções da OIT relacionadas às temáticas de promoção de igualdade de gênero e proteção à mulher no ambiente de trabalho foram bem assimiladas pela legislação brasileira?

Inicialmente, já em suas convenções fundacionais, em 1919, a proteção às mulheres no ambiente de trabalho foi um tema incorporado pela OIT de forma central, como um patamar mínimo de direitos necessário para a garantia da não discriminação e a promoção da igualdade de gênero. O objetivo dessa proteção é resguardar a saúde da mãe e de seu filho ou filha, bem como proteger a trabalhadora de qualquer discriminação baseada na sua condição de mãe. O Brasil ratificou convenções que versam sobre este tema – Convenções 102 sobre seguridade social e Convenção 103 sobre proteção à maternidade. Vale ressaltar que as convenções são normas que estabelecem um padrão mínimo de garantia de direitos a nível internacional. A realidade contextual e o fortalecimento do diálogo social em cada país permite a ampliação desses direitos. A Constituição brasileira garante proteção laboral à mulher gestante e a legislação trabalhista estabelece proteção à sua saúde, à não discriminação, à garantia de retorno às suas funções anteriores, etc. A licença maternidade foi recentemente ampliada para 180 dias no setor público. No setor privado ela é hoje facultativa, em troca de benefícios fiscais e sua obrigatoriedade tem sido discutida no Congresso.

O Brasil também ratificou outras duas importantes Convenções da OIT intimamente relacionadas com a promoção da igualdade de gênero. A Convenção 100 estabelece a igualdade de remuneração entre homens e mulheres para trabalho de igual valor – isto é, por trabalhos economicamente equivalentes, homens e mulheres devem receber igual remuneração. A Convenção 111, sobre a eliminação da discriminação no emprego e na ocupação, também ratificada pelo país, por sua vez, define a discriminação como qualquer distinção, exclusão ou preferência baseada em motivos de raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social que tenha como efeito anular ou alterar a igualdade de oportunidades e de tratamento no emprego e na ocupação. Esse princípio está presente claramente tanto na Constituição brasileira quanto na CLT e o país tem sim avançado bastante na sua efetiva implementação. No entanto, o rendimento médio das mulheres corresponde a pouco mais de 70% do rendimento dos homens, apesar de que seus níveis educacionais são superiores ao dos homens, no mercado de trabalho e no conjunto da população. Isso significa que, apesar dos avanços, ainda há um longo caminho a percorrer. Também é necessário salientar que as desigualdades são mais significativas no caso das mulheres negras. Apesar de que seus rendimentos tenham crescido em termos relativos e as desigualdades de remuneração têm diminuído, elas não chegam a ocupar 10% dos cargos de dirigentes, enquanto homens brancos ocupam cerca de 45% deles.

Outro tema especialmente relevante para a promoção da igualdade de gênero é o equilíbrio entre o trabalho, família e vida pessoal. É essencial que a sociedade reconheça que responsabilidades familiares e de cuidados não são um tema de exclusividade das mulheres e que estas responsabilidades afetam diretamente a igualdade de oportunidades no mundo de trabalho. Sobre este tema versa a Convenção 156 da OIT sobre trabalhadores/as com responsabilidades familiares. Esta Convenção, que define que os trabalhadores com responsabilidades familiares de ambos os sexos não sofram nenhum tipo de discriminação no emprego, ainda não foi ratificada pelo Brasil. No entanto, além de iniciativas do governo, muitas empresas têm desenvolvido ações voluntárias para facilitar o equilíbrio entre trabalho e família. Neste sentido, também é muito importante o papel da negociação coletiva para, a partir do diálogo social, garantir melhorias aos e às trabalhadores/es e, inclusive, ampliar as garantias garantidas por lei.

É importante considerar que muitas vezes, apesar da não ratificação de uma Convenção pelo país, sua própria adoção, pela OIT, pode impulsionar avanços em termos legislativos nos países. Este é o caso da Convenção 189 sobre Trabalho Doméstico, a última convenção adotada pela OIT, em 2011. A ratificação dessa convenção está sendo discutida no país. No entanto, a aprovação da Emenda Constitucional 72 no ano passado, e que atualmente se encontra em fase de regulamentação, pode ser entendida como um reflexo do compromisso assumido pelo Brasil perante a OIT em 2011 para promover iguais direitos às trabalhadoras domésticas.

Fundamentalmente, a igualdade de gênero para a OIT é um tema de direitos humanos e faz parte das condições essenciais para atingir uma democracia efetiva. É também um tema de justiça social e diminuição da pobreza, na medida em que é condição para ampliar as oportunidades de acesso a um trabalho decente. E, por último, é também um tema de desenvolvimento social e econômico, na medida em que promove a participação das mulheres e negros/as na atividade econômica e na tomada de decisões relativas à formulação de políticas de desenvolvimento que respondam adequadamente aos objetivos da igualdade.

Quais são as principais lacunas no cumprimento dessas normas pelos empregadores?

Primeiramente, é importante considerar que muitas empresas e instituições têm voluntariamente realizado ações e tomado medidas de promoção da igualdade de gênero e raça. O Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, em parceria com a OIT e a ONU Mulheres, por exemplo, vem desde 2005 estimulando a adoção desse tipo de ações e reunindo empresas e instituições comprometidas com a eliminação das discriminações e desigualdades no ambiente de trabalho. Na sua última edição, aproximadamente 80 empresas, num total de quase 900.000 funcionários/as, puseram em prática planos de ação para alcançar resultados e cumprir metas nesse sentido. Percebe-se que existe uma crescente sensibilização em torno do tema, apesar de coexistirem importantes marcas de desigualdade. E estas obviamente não podem ser desconsideradas ou diminuídas. Violência baseada no gênero e na raça no ambiente de trabalho como assédio moral, assédio sexual e discriminação ainda são comuns e devem ser combatidas no dia a dia e em todo o processo de recrutamento, seleção, ascensão funcional e permanência no emprego.

É importante compreender que a discriminação não é apenas um atentado aos direitos humanos e aos direitos fundamentais no trabalho, mas também representa um grande custo para as empresas e a sociedade, pois provoca desperdício de recursos, talentos e potencialidades humanas, com efeitos negativos na produtividade e competitividade das empresas e no desenvolvimento econômico das sociedades, gera desigualdades profundas no acesso aos recursos econômicos, sociais, políticos e culturais; além de impedir o pleno exercício da cidadania e debilitar a coesão social e a democracia.

Qual a metodologia usada para as empresas diagnosticarem ou reconhecerem a iniquidade em seus quadros?

Perceber que existem iniquidades de gênero e raça geralmente é algo evidente ao observar como se compõem os quadros de pessoal das organizações, tanto hierarquicamente, como de forma ocupacional. Uma iniciativa realmente voltada para a eliminação da discriminação e para promoção da igualdade busca necessariamente diagnosticar a realidade, analisar as causas, empreender medidas e estabelecer metas de mudanças.

Um primeiro passo neste caminho seria traçar um diagnóstico da situação de mulheres e negros/as em todo o processo de recrutamento, seleção, ascensão funcional e permanência no emprego, buscando envolver e escutar os/as funcionários/as. Este panorama permite identificar as desigualdades e também as práticas discriminatórias que as causam e devem ser eliminadas. O diagnóstico também permite à organização valer-se de uma linha de base e construir indicadores que possam auxiliar no acompanhamento e mensuração da eficiência das iniciativas tanto de eliminação das práticas discriminatórias, que são as formas de violências mais evidentes, como de promoção ativa da igualdade de oportunidades de tratamento no ambiente de trabalho, como políticas de cotas, capacitação e treinamento, medidas de conciliação entre trabalho e família, etc. A criação de um espaço de diálogo dentro da organização para discutir essas questões pode facilitar tanto o acompanhamento das medidas como o interesse e sensibilização dos/as funcionários/as.

Quais os principais desafios para se estabelecer a igualdade de remuneração no mercado de trabalho brasileiro?

Existe uma questão social fundamental que condiciona a desigual remuneração no mercado de trabalho que é o que se conhece por divisão sexual do trabalho. Esta se manifesta tanto de forma ocupacional, ou seja, pela ideia de que existem “trabalhos de homem” e “trabalhos de mulheres”, como de forma hierárquica, isto é, o trabalho do homem “vale mais” que o trabalho da mulher. O resultado disso é que ocupações ditas femininas, geralmente relacionadas aos cuidados, onde as mulheres estão empregadas ainda em sua maioria, por mais que representem economicamente o mesmo valor que ocupações ditas masculinas, são pior remuneradas. Esta situação se torna mais evidente no âmbito doméstico, onde as mulheres realizam cotidianamente o trabalho reprodutivo de cuidados da família e do lar de forma não remunerada. Apesar de este trabalho fornecer a sustentação necessária para o funcionamento da cadeia produtiva de trabalho, ele é, em várias perspectivas, invisível aos olhos da economia. Quando cuidado da casa e da família é terceirizado a outra mulher de forma remunerada, configura-se uma relação de trabalho infelizmente ainda precária e que requer mudanças profundas no Brasil: o trabalho doméstico. Este, geralmente sub-remunerado e informal, é considerado pela OIT um dos núcleos duros do déficit de trabalho decente no país. A divisão sexual do trabalho é, portanto, um desafio central profundamente enraizado em organização social. Desnaturalizá-la demanda respostas da sociedade como um todo para a construção de um mundo de dignidade para todos e todas e oportunidades iguais.

Fonte: Página 22, com ajustes
Data original da publicação: 07/03/2014

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