Trabalho, classe operária, política (debates culturais do verão)

Antonio Baylos

Tradução: DMT

Há uma grande confusão sob o céu, já dizia Mao e frequentemente recordava Vásquez Montalbán. Atualmente, esse caos se concentra no debate cultural entre a esquerda, a partir de uma série de leituras de verão – especialmente o livro de Daniel Bernabé, seguido de apaixonados comentários, críticas e retificações – que refletem sobre classes sociais e desigualdades e, portanto, sobre o papel do trabalho em uma sociedade “que o glorifica entendendo que, fora dele, assim como se construiu, não existe possibilidade alguma de valorizar a vida social”, assim como resume Jorge Moruno em “La fábrica del emprendedor”, certamente seu livro melhor construído. “Trabajo y política en la empresa-mundo”, publicado por Akal em 2015 e que teve sua segunda edição em 2017.

O debate provém da crise da sociedade salarial e da chegada de uma ordem pós-industrial na qual o trabalho diminui seu papel central e novas formas de poder tecnocrático geram formas de conflito distantes da análise convencional da luta de classes. Se trata de pôr em dúvida uma visão totalizante segundo a qual a sociedade é representada, reduzidamente, somente em termos de identidade de classe, sobre a base da posição que ocupa no processo de produção de bens e serviços em uma economia capitalista. Uma visão que é cega frente ao racismo, que nega a diversidade cultural das sociedades desenvolvidas contemporâneas e que apresenta pelo contrário o que faz já há duas décadas, Nick Dyer-Witheford qualificou como “triunfalismo científico” em sua muito interessante monografia “Cyber-Marx”.

Cyber-Marx: Cycles and Circuits of Struggle in High Technology Capitalism”, publicado em 1999 pela editora da Universidade de Illinois, orientou boa parte das reflexões destas notas. Já não é central a confrontação entre capital e classe. As relações de classe se mesclam com outras dominações e opressões (sexismo, racismo, homofobia, industrialismo) sem que exista uma ordenação que as hierarquize umas sobre as outras: uma diversidade de identidades semioticamente construídas que colide com a centralidade da classe operária e a “quebra” definitivamente, como escreveu Pastora Filigrana em meio ao debate sobre as “diversidades”.

Há uma grande desordem sob o céu, pois a ordem global que se impõe é a da mercantilização geral de coisas e de pessoas, a compra e venda do tempo de vida, sua submissão à lei do valor em um sistema total e integrado de interdependências.

Uma ordem que inclui qualquer outra forma de dominação nessa lógica, uma forma cancerígena de crescimento e de geração de riqueza profundamente desigual, em um crescimento tóxico e suicida, em uma subordinação plena ao capital transnacional dos meios de comunicação e da educação de massas que recusam e repelem as mensagens que permitem identificar na ordem do capital e da globalização financeira a causa da injustiça e sofrimento de amplas camadas da população. Uma ordem que contém uma descomunal desordem, um complexo extenso de dores e angústias, de destruição e de aniquilação que se acumula em todos os cantos desse mundo.

A partir desse ponto de vista, o do antagonismo social, a confrontação se desloca para as lutas – velhas e novas – para dissolver e eliminar as formas de domínio e subjugação do capital. O que se debate está em torno de como centrar o discurso da emancipação no novo estado de civilização que nos apresenta o século XXI.

O recurso fundamental da nova sociedade é o conhecimento técnico-científico e a nova era se manifesta na iniciação e difusão das tecnologias da informação e do conhecimento, ao ponto de a geração de riqueza incessante depender de uma economia da informação na qual o intercâmbio e a manipulação de dados simbólicos excede a importância dos processos materiais – o que se denomina no discurso sindical europeu de “economia real”. Essas mudanças tecno-econômicas se acompanham de significativas transformações sociais, levando em conta que a transição a essa nova sociedade na qual vivemos se produz em escala planetária.

Assim, aqui também surge o discurso sobre o trabalho e seu processo de conformação material como um aspecto central do debate, em que se apoia o conhecimento social necessário para a inovação científica e técnica , o poder do conhecimento convertido em direta força produtiva, o futuro do trabalho – por empregar o rótulo tão expressivo da OIT que marcará as celebrações de seu centenário em 2019 – que se materializa em criação e mobilização para produzir maravilhas tecnológicas de fábricas robóticas, manipulação genética, redes globais de computadores e uma sociedade digitalizada. O objetivo do conhecimento social no que antes se chamavam “novas tecnologias” e que prioriza o trabalho intelectual em massa como o conjunto de know how que sustenta as operações de “alta economia” canalizadas através de grandes corporações transnacionais e instituições financeiras, um capitalismo de alta tecnologia que introduz melhorias nas admissões e no consumo, mas que implica uma produtividade cada vez maior, uma competência constante e uma interminável intensificação dos ritmos de trabalho. O futuro do trabalho se reconduz à análise desse “trabalho imaterial”, que se situa na informação e na comunicação como eixos do processo de produção e que tem continuidade através de uma ampla rede de conexões educativas e culturais. Um trabalho no qual não se menciona nem a tradicional masculinização da tecnologia sedimentada entre a divisão casa ou domicílio familiar e trabalho perpetuada no uso das tecnologias da digitalização de forma diferente e subordinada pelas mulheres, nem a segmentação em termos de gênero, raça e idade que estas apresentam tanto em função da fragmentação do trabalho que aquelas propõem e fomentam, como a respeito de sua utilização em termos repressivos e de controle. Uma inteligência plural e multiforme que não necessariamente se organiza em torno de um espaço concreto e definido como é a fábrica, nem corresponde à subjetividade clássica derivada do trabalho industrial. Se apresenta à frente entre a exaltação e a iniciativa individual do empreendimento e a insegurança da inserção móvel e intermitente da precariedade no emprego, o que é a base da proposta teórica explicativa de Jorge Moruno no livro anteriormente citado.

Há um caos absoluto sob o céu e as certezas de outrora são substituídas por impressões ao sol nascente que não refletem imagens nítidas. O debate cultural deste verão é também significativo porque evita ou, ao menos, pelo que não parece conveniente abordar, talvez para não ser descortês com outros sujeitos sociais que pudessem estar alienados com estas abordagens. Pois, definitivamente, se trata de reverter a polaridade entre capital e trabalho, e a conveniência (ou não) de colocar no centro da análise a luta (de classe) contra o capital. O trabalho – em sua projeção material concreta, sempre inacabado e oscilante em sua dimensão pessoal, subjetiva – é sempre para o capital um “outro” problemático que deve ser controlado e submetido mediante formas que variam e se adaptam em função das circunstâncias determinadas desse controle ou domínio. Desse ponto de vista, as lutas constituem o sujeito e, portanto, a organização concreta deste sujeito – ou a organização precisa das condições as quais desenvolverão e institucionalizarão o conflito – é determinante na análise. Essa perspectiva faz falta no debate ao que diz respeito estas notas, que se entretém no relato sobre as distopias tornadas realidade, sobre “o sinistro interminável que se instala como o modelo social-laboral-mental”, ao dizer de Moruno, ou sobre as estratégias de base sobre as que se deve edificar a ação política como desobediência e como projeto de transformação social. Porém sem mencionar as formas organizativas sobre as que edificar esta resistência e alternatividade partindo do que realmente existe.

Faltam análises detalhadas dessas intervenções sobre o discurso progressista que examinem a realidade da(s) luta(s) de classes no espaço nacional-estatal espanhol em primeiro termo, e na Europa em segundo lugar. Ninguém fala do sindicato como “a expressão organizada do mundo do trabalho”, que é a fórmula com que Unai Sordo, o secretário geral da CCOO se refere a essa formação social, e não porque se trate de ideologias neoliberais para as que “o trabalho é um input produtivo a mais e o sindicato é um agente que sobra”, a não ser porque nesse discurso o descobrimento do político como espaço de insubordinação e de resistência, de impulso e de organização de um poder constituinte, não sabe o que dizer a formações sociais como os sindicatos que se consideram irremediavelmente vinculados à fábrica fordista e ao paradigma industrial conseguinte, no marco de uma agência contratual de distribuição do salário e o benefício empresarial como forma de regular a acumulação capitalista em um equilíbrio instável entre a produção, a retribuição do trabalho e o consumo. Mas “ainda que seja mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito”, são pré-conceitos equivocados que não situam corretam a polissemia social da ação sindical e o caráter sociopolítico dessa formação social.

É claro que um discurso sobre o futuro do trabalho, sobre a tecnologia como dominação de classe, sobre os ciclos de circulação de capital e a emergência da dívida junto à financialização global de ordem capitalista, deve conduzir logo à constatação de uma subjetividade coletiva progressivamente instável e descentralizada em meio à fragmentação do trabalho e da segmentação social discriminatória e desigual em um contexto de uma forte reestruturação dos elementos centrais da produção de mercadorias.

Contudo, essa análise deve, necessariamente, corrigir nas formas de organização – variáveis, em ocasiões comprimidas ou somente delineadas – que na realidade material dos processos sociais se podem encontrar em funcionamento, sem que seja correto – nem conveniente – declará-las todas fora de serviço em uma espécie de destruição unilateralmente declarada pelos estudiosos do pensamento alternativo.

No trajeto que conduz à exploração de novas formas de encarar as realidades produtivas e sociais que conformam o novo quadro civilizatório de nossas democracias cada vez mais débeis e inativas, discorrer sobre a organização das subjetividades coletivas que se expressam através do trabalho assalariado – com independência da dissociação entre trabalho e emprego e as reflexões sobre a emancipação da noção de trabalho de sua inserção na lógica do salário – é imprescindível. Para isso, seria importante que se considerasse o debate que está ocorrendo há bastante tempo no espaço de discussão sindical, ao parecer invisível para as preocupações dos novos designers da vontade política alternativa e emancipatória.

“Há uma grande desordem sob o céu. A situação é excelente”. Essa é a citação completa da frase de Mao. A confusão atual oferece sem dúvida a oportunidade de construir, inteligentemente, uma mudança radical, um projeto compartilhado desde a insubordinação e a rejeição ao domínio incontestável da desigualdade e da injustiça do capitalismo globalizado, que passa pela cooperação intensa entre agentes sociais – em primeiro lugar os sindicatos – e políticos na organização das subjetividades rebeldes através do conflito e da criação autônoma de regras coletivas que intervenham sobre a restrição do domínio unilateral na produção e no consumo dos poderes privados que comandam a sociedade.

“A situação é excelente”. Deve-se aproveitá-la, ainda que somente para não contradizer o Grande Timoneiro, gênio das contradições.

Antonio Baylos é Professor Catedrático de Direito do Trabalho e Diretor do Centro Europeu e Latinoamericano para o Dialogo Social (CELDS) da Universidade de Castilla-La Mancha.

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