Paralisações de trabalhadores afetados pelo calor estão se multiplicando. É hora dos sindicatos construírem uma agenda de sustentabilidade.
Renata Belzunces e Rodrigo Linhares
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 25/02/2022
“Está calor demais pra trabalhar hoje”, quantas vezes você já falou ou ouviu isso nesse verão? Tudo indica que no próximo verão (ou veranicos) falaremos mais e ouviremos mais essa frase, é por isso é relevante romper o silêncio de que o calor excessivo causa sofrimento e reclamar disso não é frescura. A classe que vive do trabalho está exposta à mudança climática de forma a comprometer sua saúde e sua vida, ainda assim será sua própria tarefa enfrentar esses desafios. Os sindicatos e partidos políticos que representam trabalhadores têm especial responsabilidade nesse enfrentamento se não quiserem nem fazer parte do problema, nem arcar com as consequências, literalmente com o suor na testa.
O advento da industrialização capitalista em meados do século XIX acelerou o consumo de recursos naturais de forma desenfreada, e tem lançado na atmosfera CO2 (dióxido de carbono) e outros gases em quantidade muito maior que a capacidade de absorção do planeta para manter níveis salutares. Embora o sentido geral das alterações seja o aumento da temperatura global, a bagunça que está sendo feita tem muitas outras faces: frio intenso, alagamentos, secas, incêndios, temporais e muito mais.
Essas manifestações da mudança climática não atingem todas as pessoas de forma igual em uma sociedade planetária que demonstra ausência de limites e freios para produção da desigualdade social. Segundo dados apresentados do professor Luiz Marques (MARQUES, 2018), a fatia de 500 milhões de pessoas mais ricas emite metade do CO2, enquanto a parcela de três bilhões de pessoas mais pobres são responsáveis por apenas 7% das emissões. É fato que os mais ricos são ao mesmo tempo mais culpados e mais beneficiados pela alteração do clima, enquanto os mais pobres usufruem menos e pagam um preço desproporcionalmente maior pelas consequências.
Em 2020, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicou o relatório Trabalhar num Planeta Mais Quente: o Impacto do Stress Térmico na Produtividade do Trabalho e no Trabalho Digno, que faz uma avaliação atual e projeta cenários para 2030 de como os trabalhadores são afetados pelo calor. Ficou demonstrado que os trabalhadores são afetados a depender das condições locais do clima, da ocupação em que estão inseridos e ainda, da qualidade da proteção social que têm acesso. Há toda uma discussão que poderia ser aberta aqui considerando somente os trabalhadores sem carteira assinada, no entanto, nesse momento, nosso foco são os trabalhadores formais que podem imediatamente acionarem suas ferramentas, em especial os sindicatos, para ganharem protagonismo e dessa maneira influenciar também as demandas dos trabalhadores informais.
No relatório da OIT, foi constatado que os postos de trabalho mais sujeitos aos efeitos do calor, como agricultura e construção civil, tem maior participação na estrutura ocupacional de países mais pobres, nos quais os sistemas de proteção social são mais frágeis. A maior exposição física se combina com as mazelas sociais de altas taxas de informalidade, acesso dificultado à serviços de saúde e baixa cobertura previdenciária. Os trabalhadores da indústria e do setor de serviços também não estão protegidos do sofrimento causado pelo calor no local de trabalho, como bem demonstram as reclamações dos trabalhadores nos galpões de distribuição da Amazon nos EUA ou trabalhadores na indústria metalúrgica no estado de São Paulo.
O enfrentamento da mudança climática a partir da perspectiva das trabalhadoras e dos trabalhadores é uma obra coletiva para a qual não se deve esperar que governos ou empresários tomem iniciativas. A contribuição do movimento sindical pode ser feita imediatamente e sugerimos aqui alguns passos: para começar, é preciso reconhecer e desnaturalizar mudança climática, depois cada categoria deve exigir as necessárias adaptações imediatas nos locais de trabalho para garantia da saúde e da vida e, finalmente, mas de maior importância, deve combater as causas da mudança climática e dirigir a conta a seus devedores.
O aumento da temperatura e toda a sorte de outros fenômenos que a mudança climática provoca ou potencializa não são obra da natureza. É consenso científico que a maior causa atual é a forma como a sociedade produz, consome e descarta. Desde a década de 1970, governos nacionais reúnem-se em conferências internacionais reconhecendo questões ambientais, porém evoluem muito pouco para resolvê-las ao mesmo tempo que os problemas se agravam em velocidade e profundidade. Se está excessivamente calor, há culpados e o sol é inocente. O primeiro passo é tomar consciência de que temos um problema causado por empresas e governos, que em larga medida são identificáveis assim como suas ações e interesses também o são, portanto não há espaço para imobilismo por “se tratar de um problema de todos”. É sim um problema de todos, no entanto, causado por poucos.
No movimento sindical brasileiro, predomina um senso comum de que trabalhadores só realizam mobilizações, paralisações ou greves motivados por questões econômicas: salários, participação nos lucros, vale alimentação, adicional de hora-extra ou outros itens que impactam a remuneração de forma imediata e direta. No entanto, itens relacionados às condições ambientais do local de trabalho – circulação de ar e calor – e ao fornecimento de equipamentos de proteção – especialmente o protetor solar – estão presentes na pauta das greves de forma quase ininterrupta desde 2007, segundo o acompanhamento do DIEESE.
Ao todo, 84 mobilizações trouxeram em sua pauta itens como esses. As categorias profissionais que as encamparam são diversas e merecem ser mencionadas: profissionais da educação pública (17 greves), dos Correios (17), agentes comunitários de saúde e de combates às endemias (13), trabalhadores da limpeza pública e coleta de resíduos (oito), rodoviários do transporte público (seis), bancários (cinco), metalúrgicos (três), trabalhadores da construção (duas), da rede pública de saúde (duas), da administração pública (duas) e dos Tribunais de Justiça (duas).
Com uma greve deflagrada, também fazem parte dessa relação: aeroviários, agentes de trânsito, bombeiros (salva-vidas), trabalhadores da indústria da confecção, portuários, urbanitários e vigilantes.
Dessas mobilizações, mais da metade (56%) foram deflagradas entre 2013 e 2015. Não apenas porque foram anos em que o número de greves deflagradas no Brasil foi muito grande, em torno de 2 mil, mas também porque a pauta dessas greves, em um ambiente de negociação mais favorável aos trabalhadores, trouxe com força itens relacionados às condições em que o trabalho é realizado.
Dito isso, é preciso reconhecer que os sindicatos já estão sendo pressionados pelos trabalhadores e já estão negociando a mudança climática no campo das adaptações. São exemplos disso negociações que envolvem maior oferta de pontos de água no local de trabalho, mudanças nos uniformes com alteração de tecidos e/ou permitindo uso de bermudas, mudanças nos horários de trabalho evitando exposição nos períodos mais quentes do dia e exigências de equipamento de proteção individual como protetor solar. Essas reivindicações estão na praça e os resultados dessas negociações estão sendo incorporados nos acordos coletivos. É importante reconhecer que esses itens são uma parte da resposta da classe trabalhadora à mudança climática.
O último passo é que as demandas dos trabalhadores para aliviar seu sofrimento devem ser encaminhadas ser provocar o agravamento da mudança climática. Dessa forma não faz sentido, por exemplo, reivindicar que mais e mais aparelhos de ar-condicionado sejam instalados, pois isso aumenta o consumo de energia que vai aumentar a emissão de CO2. O melhor seria diminuir as horas de exposição ao calor com a boa e velha redução da jornada de trabalho e ainda, a partir de determinada temperatura parar imediatamente a produção: esquentou, parou! Nem o montador de automóveis faz rodar a linha, nem o carteiro entrega correspondência a partir de determinados parâmetros que devem ser objetos da luta, da ciência e da negociação coletiva. Se as soluções apresentadas pela classe trabalhadora não estiverem orientadas para combater o problema na raiz e não direcionarem a conta a quem deve pagar, será como enxugar gelo.
Se as empresas têm sua agenda de sustentabilidade para dentro de suas instalações e para a sociedade já está mais do que na hora dos trabalhadores apresentarem a sua própria agenda de sustentabilidade para seus empregadores, para os legisladores e para a sociedade. O desafio ambiental é o desafio do nosso tempo, somos a geração de seres humanos que habitam o pequeno ponto azul conscientes que podemos rumar para a destruição, nossa única alternativa é pegar outro caminho radicalmente diferente deste que nos trouxe até aqui e assim, adiar o fim do mundo.
Renata Belzunces é economista, socióloga, Doutora pelo Prolam-USP e técnica do DIEESE.
Rodrigo Linhares é sociólogo, técnico do DIEESE.
Parabéns Renata e Rodrigo pelo artigo!