A Amazon tem atingido lucros recorde — mas só sobram migalhas para os trabalhadores de base que mantêm a gigante online funcionando.
Natasha Lennard
Fonte: The Intercept Brasil
Data original da publicação: 08/12/2020
Nas últimas semanas, estatísticas impressionantes têm circulado nas redes sociais sobre o boom da Amazon durante a pandemia e a riqueza obscena acumulada por seu CEO, o homem mais rico da Terra, Jeff Bezos. A empresa relatou uma receita de US$ 96,1 bilhões no último trimestre, o que, segundo o Institute for Policy Studies, significa que Bezos poderia pessoalmente pagar aos 876 mil funcionários da Amazon um bônus de US$ 105 mil, e continuar sendo tão rico quanto antes da pandemia. Trabalhadores de armazém nos EUA e Reino Unido, que são obrigados a ficar em proximidade perigosa enquanto lidam com as ondas de pedidos, receberam a oferta de um bônus de fim de ano de US$ 300. Muitos dando duro em outras áreas da vasta cadeia de fornecimento da Amazon vão receber bem menos, se é que receberão alguma coisa.
Várias publicações de negócio abordaram os bônus do império de trilhões de dólares como uma oferta generosa. “A Amazon gasta mais US$ 500 milhões em bônus. Alguns de seus funcionários ainda entram em greve”, diz a manchete da CNN Business. A noção transmitida é uma aparente incredulidade de que empregados que ganham salário mínimo queiram lutar por receber mais de uma companhia conhecida por abusar de seus trabalhadores, um exemplo sendo a pressão por produtividade que acabou com funcionários de armazéns alegadamente urinando em garrafas para evitar ter que ir ao banheiro.
Essa incredulidade é equivocada. Sim, trabalhadores da Amazon estão cada vez mais lutando por seus direitos, proteções e salário justo — e, pela primeira vez, a estratégia é internacional.
A Black Friday lançou uma nova onda de organização por uma coalizão global de trabalhadores de armazém, sindicatos e ativistas sob a bandeira Make Amazon Pay [Faça a Amazon Pagar] — a primeira coalizão do tipo de escopo internacional. Greves coordenadas, paralisações de trabalho e protestos de vários tamanhos têm acontecido em Bangladesh, Índia, Austrália, Alemanha, Polônia, Espanha, França, Reino Unido, EUA e além. Os trabalhadores e organizadores merecem forte apoio: os riscos de deixar o poder e as práticas da Amazon sem controle — desde dizimar ainda mais a classe trabalhadora global, até degradação ambiental irreversível — são intoleráveis.
“A Amazon conseguiu seu poder operando num nível global sem oposição”, disse Casper Gelderblom, sindicalista e coordenador da Progressive International da Holanda, um dos grupos organizando os esforços Make Amazon Pay. “Temos que ter o mesmo escopo global da sua organização com uma estratégia internacional.”
A Make Amazon Pay juntou coletivos de trabalhadores — de vendedores ambulantes na Índia até trabalhadores de armazém na Polônia — a federações sindicais internacionais maiores. A coalizão também inclui ONGs como Greenpeace, para abordar fatos chocantes como a escala da pegada de carbono da Amazon, que é maior que dois terços dos países do mundo.
Quinta-feira passada, a coalizão publicou uma carta aberta assinada por mais de 400 políticos de mais de 34 países, incluindo a deputada Rashida Tlaib, de Michigan, o procurador-geral de Minnesota, Keith Ellison, e o deputado eleito Jamaal Bowman, de Nova York. A carta, que promete apoio aos esforços Make Amazon Pay, é endereçada a Bezos. Ela começa com “Nós, representantes, legisladores e oficiais públicos eleitos de todo o mundo, por meio desta avisamos que os dias de impunidade da Amazon acabaram”.
É fácil ver que a Amazon é poderosa demais, que sua pegada de carbono é absurda, que ela intimida trabalhadores, diminui salários, inibe sindicatos e garante a precariedade. A corporação também paga pouquíssimo imposto. Em 2019, a Amazon pagou apenas 1,2% de imposto federal sobre seus lucros nos EUA; nos dois anos anteriores, ela não pagou nada. Mas é difícil saber como seria uma resistência internacional de sucesso contra a hegemonia da Amazon.
As exigências da Make Amazon Pay para a companhia são amplas, mas simplesmente justas: permitir que os trabalhadores se organizem; acabar com a vigilância e o assédio; melhorar os salários, e condições de saúde e segurança; garantir segurança trabalhista; se comprometer a reduzir as emissões para zero até 2030; encerrar contratos com companhias de combustível fóssil; acabar com parcerias com forças estatais de violência racista, como a polícia e autoridades de imigração; e pagar os impostos devidos.
A coalizão desenvolveu uma plataforma robusta de políticas, rica em referências de leis e precedentes que já existem, visando guiar políticos para usar ferramentas legislativas para tornar as exigências uma realidade. Mas diante do poder da Amazon, a campanha pode, no papel, parecer mais uma lista de desejos. Qualquer um que se importa com os trabalhadores e a vida no planeta pode elogiá-la, mas realizar as mudanças propostas e diminuir o domínio planetário mortal da corporação é outra questão.
Os organizadores da coalizão acreditam que um primeiro passo necessário é reconhecer o tamanho das operações da cadeia de fornecimento da Amazon, algo muitas vezes obscuro para o consumidor. A companhia pode ser melhor entendida não como uma varejista, mas como um império monopolista: uma Companhia das Índias Orientais, e não menos colonialista em suas práticas de exploração e extração de recursos. Os infames armazéns da Amazon são “o ponto mais próximo onde o conforto do consumidor e a exploração do trabalhador entram em contato”, escreveu o economista político David Adler e o organizador James Schneider, membros do secretariado do Progressive International. “Mas”, eles argumentam, a luta contra a Amazon “deve se estender pela economia global e o arquipélago regulatório que corre por ela”.
Mesmo sendo coordenadas, as ações recentes dos trabalhadores pelo mundo precisam refletir as preocupações trabalhistas específicas de diferentes regiões do domínio da Amazon. Trabalhadores têxteis em Bangladesh realizaram um protesto na frente de um fornecedor da Amazon em Dhaka, atrás de uma grande faixa vermelha que dizia “Make Amazon Pay”. A companhia supostamente não pagou seus fornecedores do país por encomendas completas que foram canceladas na pandemia. Trabalhadores na Alemanha fizeram uma greve de três dias, na esteira de uma batalha de anos com a Amazon por salários e condições de trabalho melhores; aproximadamente 2.500 pessoas participaram.
Em Poznań, no oeste da Polônia, trabalhadores estavam com os mesmos cartazes “Make Amazon Pay” durante sua paralisação coordenada. Empregados poloneses da Amazon estão se organizando há semanas — inclusive com greves sem participação de sindicatos — para ter seu bônus mínimo de fim de ano aumentado na mesma medida que os bônus dos trabalhadores de outros países. Empregados de armazém me disseram por videoconferência que os trabalhadores poloneses recebiam quatro vezes menos que seus colegas na Alemanha; através de organização sindical, essa discrepância diminuiu para três vezes menos, enquanto o custo de vida não ficou nem de perto três vezes mais barato. Nos EUA, os trabalhadores estão dando passos históricos apenas para se sindicalizar.
Em toda jurisdição, especialmente nesse momento de desemprego em massa e devastação econômica global, organizadores estão em desvantagem contra a habilidade da Amazon de atrair empregados precários e sem proteção, precisando aceitar qualquer trabalho disponível. Contratos maliciosos de trabalho autônomo para empregados reais da Amazon são comuns, mesmo em países onde muitos trabalhadores são sindicalizados.
“Essa é a política da Amazon, rotatividade de trabalhadores. É extremamente difícil se organizar”, disse Jan Pękala, motorista de empilhadeira e delegado sindical do sul da Polônia. “Com cada novo trabalhador, você precisa começar de novo.” Seu colega de armazém em Poznań, Roman Lupiński, concorda: “Isso cria medo, pessoas com contratos instáveis sentem que podem perder seu trabalho”.
A Amazon usa a mesma estratégia globalmente. “O Covid assustou os trabalhadores”, disse Sheheryar Kaoosji, diretor do Warehouse Worker Resource Center, que falou comigo de Ontário, Califórnia. “Eles trouxeram muitas pessoas desesperadas por trabalho. Precisamos encontrar as pessoas onde elas estão, e construir uma estratégia de longo prazo.” Kaoosji organiza em e ao redor de San Bernardino, onde um dos maiores conjuntos de instalações da Amazon está se expandindo. A corporação emprega 30 mil pessoas somente nessa área; taxas de asma em regiões ocupadas pela Amazon são duas vezes mais altas que a média nacional. “Este é o ano em que a Amazon realmente consolidou poder”, disse Kaoosji, acrescentando que isso tornou imperativo criar organizações mais fortes. “É a hora certa de agir.”
Uma das chaves para a plataforma política da Make Amazon Pay são diretrizes para regular o tipo de contrato que a Amazon oferece aos trabalhadores, como tornar mais custoso para a companhia depender de contratos “autônomos”. Esses acordo precários foram normalizados no mercado de trabalho neoliberal, e regulação contra o uso deles pela Amazon teria um efeito dominó para os direitos trabalhistas no geral.
“A situação na Amazon é um vislumbre do futuro do trabalho, do futuro da nossa economia, e do futuro do planeta”, me disse Tlaib, representante de Michigan que assinou a carta aberta, por e-mail. “Os resultados do experimento são claros — deixadas por conta própria, corporações gigantes como a Amazon vão impiedosamente extrair até o último dólar de seus trabalhadores e das comunidades que exploram, enriquecendo executivos enquanto moem trabalhadores até o osso e colocam seus lucros acima de um planeta habitável.”
Tlaib insiste que é possível obrigar a Amazon a mudar suas práticas, como foi evidenciado quando a corporação aumentou seu salário mínimo nos EUA para $15 por hora, depois de muita pressão do senador Bernie Sanders, entre outros. Da mesma maneira, a pressão da esquerda ano passado em Nova York, trabalhando com organizadores locais, frustrou os planos da Amazon de abrir uma segunda sede no Queens.
Tlaib me disse que “já há leis no Congresso que nos ajudariam a ir contra toda essa ganância corporativa, e há algumas outras intervenções importantes que precisam ser elaboradas”. O Protecting the Right to Organize Act [Lei de Proteção do Direito a se organizar], por exemplo, foi aprovado pela Câmara este ano, e pode enfraquecer dramaticamente décadas de leis anti-trabalhadores e anti-sindicatos nos EUA.
As lentes internacionais da Make Amazon Pay deixam claro a necessidade de empoderar trabalhadores para se sindicalizar e permitir que sindicatos sejam eficientes para os trabalhadores. “Temos muito mais controle como trabalhadores sindicalizados”, me disse Natalia Skowroń, empacotadora do armazém de Poznań. Ela apontou que enquanto a Amazon encontra sempre um jeito de contornar o sindicato, “as capacidades dos trabalhadores são muito maiores como uma entidade com a qual a empresa tem que lutar”.
O sucesso dos funcionários da Amazon na França, que obrigaram a corporação a abordar preocupações com segurança para a covid-19, mostra a necessidade de legislação pró-trabalhadores combinada com sindicatos fortes. Protestos em massa, greves e queixas sindicais levaram a uma ordem judicial para que a Amazon melhorasse medidas de saúde e segurança, em parceria com sindicatos. O descumprimento leva a penalidades de mais de US$ 1 milhão por dia e por violação. Depois disso, a empresa anunciou que suspenderia todas as suas operações na França, mas os trabalhadores continuam recebendo seus salários, e a companhia disse que planeja seguir a decisão do juiz.
Piotr Krzyżaniak, ex-empregado de armazém e advogado representando o sindicato de trabalhadores polonês, fez referência ao exemplo francês para enfatizar a importância de permitir greves. Na Polônia, trabalhadores tiveram que fazer paralisações surpresa, já que procedimentos de greve formais são extremamente complexos. “Precisamos de liberdade regulada para fazer greves num nível europeu”, ele me disse, “se trabalhadores da Amazon entram em greve na Alemanha, por exemplo, temos que ter a opção de nos juntar a eles”.
Em setembro, depois de revelações que a Amazon tinha se envolvido em vigilância, assédio e intimidação generalizada de trabalhadores nos EUA, Reino Unido e em qualquer lugar onde seus empregados tentaram se organizar, a Anistia Internacional divulgou um relatório dizendo que a Amazon precisava “deixar seus funcionários se organizarem”. O relatório também citava como os sindicatos e regulamentação franceses protegeram os trabalhadores da Amazon durante a pandemia. O leviatã corporativo precisa ter essas restrições de poder em todo país em que opera.
A presidência de Joe Biden, especialmente se um Senado dominado por republicanos continuar, com um judiciário de extrema-direita, não traz grandes promessas para uma guinada legislativa radical para longe das normas neoliberais. Políticos pró-trabalhadores como Tlaib e outros membros da esquerda são minoria. Mas a crença de que a Amazon precisa ser controlada é popular: a agência de pesquisa Survation descobriu que 70% das pessoas acreditam que a companhia é poderosa demais.
A Amazon, claro, não é o capitalismo que deu errado, mas o capitalismo funcionando como deve. Não precisamos que todo legislador acredite nisso para querer conter o controle monopolista da companhia. “Mesmo se você acredita no livre mercado, isso não é saudável”, me disse Gelderblom, do Progressive International.
Em outubro, o subcomitê antitruste do Comitê Judiciário da Câmara — dificilmente um órgão de esquerda — divulgou um relatório abrangente sobre como Apple, Facebook, Google e Amazon capitalizam e abusam do seu poder de mercado para beneficiar a si mesmos.
A coalizão Make Amazon Pay deixou claro que quer mudar a estrutura de poder da corporação também: entre suas demandas está um plano para dar aos trabalhadores direitos robustos de voto no gerenciamento da companhia. Isso não está muito distante da proposta feita pela senadora de Massachusetts Elizabeth Warren, que acredita no chamado “capitalismo responsável”, para dar aos trabalhadores uma representação nos conselhos das companhias. Esse modelo de gerência, conhecido como “co-determinação”, já é comum na Alemanha; a coalizão argumenta que os modelos de co-determinação da Europa precisam ser fortalecidos.
Mudanças radicais e necessárias no grande império da Amazon podem parecer difíceis de alcançar, mas o plano global de fazer a Amazon pagar deve ser considerado simplesmente bom senso.
Natasha Lennard é colunista do The Intercept. Seu trabalho também já apareceu em The Nation, Bookforum e New York Times, entre outros. Ela leciona Jornalismo Crítico na New School for Social Research em New York. É autora de “Being Numerous: Essays on Non-Fascist Life.”