Trabalhador em desvantagem: médico especialista condena a precarização das relações de trabalho no Brasil

No fim de abril, o Conselho Universitário [da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS] posicionou-se contra o Projeto de Lei 4.330/2004. Entre outros pontos, a proposta prevê que as empresas terceirizem qualquer setor, o que, segundo o Consun, “expressa a ampliação da precarização das relações de trabalho e um retrocesso dos direitos trabalhistas”.

No que diz respeito à saúde do trabalhador, Álvaro Roberto Crespo Merlo, médico especialista no assunto, tem visto grandes mudanças desde a sua formação. Durante sua graduação, nos anos 70, sequer estudou as chamadas Lesões por Esforço Repetitivo/Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (LER/DORT), devido à baixa ocorrência de casos na época. Já em 1988, quando criou o Ambulatório de Doenças do Trabalho do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, as LER/DORT eram as principais causas de consultas naquele setor. Ultimamente, tem chamado a atenção de Álvaro a crescente demanda relacionada à saúde mental dos trabalhadores, ocasionada pela precarização das condições e relações de trabalho nas empresas.

Professor da Faculdade de Medicina da UFRGS desde 1985, Álvaro ajudou a instituir o curso de especialização em Medicina do Trabalho. No ano passado, foi um dos organizadores do livro Atenção à saúde mental do trabalhador: sofrimento e transtornos psíquicos do trabalho.

Para ele, a origem desses problemas psíquicos está nos anos 80, quando a globalização do neoliberalismo e a expansão do capitalismo financeiro distanciaram ainda mais os acionistas dos meios de produção e do trabalhador. Fundos especulativos injetam bilhões de dólares em empresas, retirando os lucros poucos anos depois. Nessa realidade, a terceirização aparece como uma forma de distanciamento da empresa em relação ao trabalhador, o que resulta na degradação das relações de trabalho.

Uma dos principais argumentos contra o projeto é que são muito comuns acidentes e doenças relacionados aos contratos de terceirizados. Por quê?

Os trabalhadores necessitam passar pelo serviço de medicina do trabalho. Precisam fazer exame admissional, periódico e demissional. O problema é que o terceirizado fica pouco tempo em cada lugar: atua um ano na limpeza, depois vai pra cozinha, é deslocado para outra companhia e segue pulando de empresa em empresa. Conseguir acompanhar a saúde do trabalhador nessas condições é impossível. Esse é o primeiro aspecto.

Além disso, temos de lembrar que metade da população economicamente ativa do Brasil não tem carteira de trabalho. Então, a terceirização já vem num contexto de precarização dos empregos. É diferente da Europa, dos Estados Unidos, do Japão… Aqui o mundo já é terceirizado.

A precarização do trabalho teria relação com os setores que são tradicionalmente terceirizados?

As condições dos terceirizados são piores: as pessoas têm menos regras, não têm equipamento de proteção e são colocadas nos serviços mais cansativos. Por que as mulheres são mais atingidas por LER-DORT? Não é porque têm músculos diferentes dos homens, mas porque são contratadas para os piores postos, os mais repetitivos, intensos, detalhistas, monótonos… Fora as tarefas pesadas, tudo o que é trabalho ruim vai para as mulheres.

Isso acontece com os terceirizados também. Tudo que é trabalho ruim vai para eles! Um exemplo: em uma grande empresa de calçados de Gravataí não há intoxicação por solvente. Isso porque toda a parte de colagem é feita nas casas dos terceirizados e, só depois que o calçado está seco, ele retorna à linha de produção. Então, colocaram para fora da fábrica a intoxicação! Os setores terceirizados fazem os trabalhos sujos. Outro caso: o Polo Petroquímico recebe a nafta [derivada do petróleo] da Refinaria Alberto Pasqualini (Refap) por tubulação. Ela entra na empresa-mãe, responsável por produzir produtos químicos que outros fabricantes utilizam, como o plástico. O Polo faz uma parada anual para a limpeza dos encanamentos, mas quem limpa são funcionários terceirizados. Eles são contratados por um mês e depois somem. Como se acompanha a saúde deles? Produtos químicos são responsáveis por cânceres, entretanto o cidadão vai desenvolver a doença depois de 20 anos. Não tem como associá-la a uma tarefa específica porque ele já fez muitas coisas ao longo da vida.

Além de acidentes, lesões e intoxicações, a precarização do trabalho também está relacionada a problemas psicológicos. Como isso ocorre?

Existe uma coisa central na saúde mental no trabalho que é o reconhecimento. Preciso que meu trabalho seja reconhecido pela qualidade do que eu faço. Pequenos elogios fazem a pessoa sair melhor do que entrou. Trabalho não é só transformar o mundo, mas também transformar a si mesmo. Hoje, o grande produto desses novos métodos de gerenciamento são as chamadas doenças da solidão. As pessoas são colocadas em competição umas com as outras. No banco, por exemplo, o colega de trabalho não é colega, mas competidor, alguém que pode pegar o cargo seguinte. Se a pessoa tem uma meta para atingir que vai até o último dia do mês, no mês seguinte essa meta zerou e começa tudo de novo, e ela tem de se virar sozinha. O que aconteceu na França e aqui já está ocorrendo também é o crescimento do número de suicídios no local de trabalho. Além dos novos modelos de gestão, a gente tem junto a terceirização, em que as pessoas não são vistas como seres humanos. Mas elas precisam, para construir sua saúde mental, constituir a sua identidade, necessitam que lhes digam que são seres humanos, que têm nome e sobrenome, e que seu trabalho é legal. É dessa forma que se constrói a saúde mental um dia após o outro. O trabalhador precisa do olhar do outro, porém no terceirizado isso é muito difícil de acontecer. O trabalho dele é precarizado, com salário mais baixo, e as pessoas nem sabem o seu nome. Isso não caiu do céu, não é obra da natureza! É um processo criado a partir de uma intervenção do setor financeiro no final dos anos 80, que no Brasil iniciou a partir do Plano Real. Agora, para resolver a crise financeira, propõem retirar as contrapartidas, os direitos dos trabalhadores.

Qual a importância dos sindicatos e coletivos de trabalhadores nessa questão?

Essa situação da patologia da solidão é um exemplo de como as pessoas estão tendo de se virar sozinhas. Se o trabalhador tem um processo de assédio moral ou de violência psicológica que não se dá pela empresa, mas pela individualidade do chefe que o destrata, ele não tem onde se socorrer. Depois que as pessoas adoecem e se afastam, o máximo que fazem é ir ao sindicato para falar com o advogado, a fim de entrar com um processo na justiça requerendo uma indenização. Mas quando isso acontece tu já perdeste, já houve o dano.

Quanto às esferas pública e privada, que diferenças há na terceirização?

O funcionário público deveria ter aposentadoria integral, porque abre mão de sair pelo mundo a ganhar dinheiro. Também tem de estar protegido das instabilidades da política, e isso vale em qualquer lugar do mundo. No Brasil, o setor público já se aproximou muito do privado. Desde 2004, temos contratos de trabalho sem aposentadoria integral e a terceirização já foi autorizada no setor público há muito tempo, tendo se tornado regra na nossa “empresa” [a UFRGS], no caso dos serviços de limpeza e de segurança. A gente passa por aquelas moças e vê que as pessoas não dirigem a palavra a elas.

Em relação a quem já é terceirizado hoje, o PL 4.330 pode melhorar as condições do trabalhador?

Do ponto de vista da saúde mental, a terceirização tem de acabar. Esta é a minha opinião e a de quem trabalha na área. A terceirização é algo que não tem conserto. Hoje, o cara que adoece vai ser despedido no mês que vem, no outro mês ou no próximo ano. Então, se houver uma legislação que proteja as pessoas, seria positivo. Mas não é esse o propósito daqueles que criaram este projeto de lei. Eles até podem ser pegos de surpresa – e aí seria um tiro no pé –, mas não é esta a intenção.

Fonte: Jornal da Universidade
Entrevistador: Antônio Assis Brasil
Data original da publicação: 06/2015

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