“Quando você entra na Ford, você realiza um sonho que tinha desde criança. Pronto, você entrou, virou um metalúrgico, como o seu pai. É um sonho realizado que vai te ajudar a atingir outros sonhos: ter uma casa, ter uma família, fazer faculdade, comprar um carro. Então, você me perguntou o que eu senti ontem. Senti como se todos esses sonhos estivessem ruindo.”
Em um bar ao lado da Ford, em São Bernardo do Campo, o metalúrgico Gustavo Alves, de 30 anos, fala com a BBC News Brasil enquanto seus colegas conversam sobre o futuro incerto que todos ali devem enfrentar nos próximos dias.
A Ford mudará a decisão de fechar a fábrica na cidade conforme anunciou na terça? E se houver mobilização dos trabalhadores? O sindicato vai conseguir negociar? A greve continuará? O governo pode ajudar? E se nada der certo, até quando eles terão emprego? Como ficarão os benefícios?
Não é que eles não soubessem que algo poderia acontecer na companhia, pois os rumores de que a unidade poderia fechar já circulavam havia algum tempo em virtude dos prejuízos da empresa na América do Sul. Nos últimos anos, os funcionários se acostumaram aos cortes de benefícios, congelamento de salários, demissões e redução de jornada de trabalho.
A unidade montava principalmente caminhões, mas vinha operando bastante abaixo da capacidade. Em 2018, por exemplo, a fábrica produziu apenas 19% dos 89 mil caminhões que é capaz de montar, segundo dados da empresa. Por causa disso, um acordo reduziu a jornada dos empregados – eles estavam trabalhando apenas três dias por semana.
“Quando entrei, em 2014, essa fábrica tinha 7 mil trabalhadores”, diz Gustavo, mais tarde, enquanto abre as portas de seu Fiesta, carro Ford. Hoje, ela opera com 2,8 mil funcionários diretos, de acordo o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Todos serão demitidos com o fechamento da unidade.
Segundo o sindicato, o anúncio deve impactar cerca de 24 mil empregos diretos e indiretos – entre terceirizados e fornecedores. Além disso, bares e restaurantes do entorno devem ser afetados com a saída da massa de funcionários.
A notícia do fechamento da fábrica, no entanto, surpreendeu os trabalhadores na terça-feira, logo após o almoço. “Ninguém esperava que fosse assim. Depois de uma reunião, nossos representantes pararam a produção e avisaram sobre o anúncio”, diz Gustavo, montador de painéis de caminhões. “Foi um choque.”
Em seguida, os trabalhadores entraram em greve atrás de um acordo para evitar o encerramento das atividades. No entanto, não há informação de que isso possa ocorrer, pois a decisão foi tomada pela cúpula da empresa.
Filho de metalúrgico, metalúrgico é
Gustavo entrou na Ford depois de uma indicação do pai, Armezino, que se aposentou pela empresa depois de 30 anos de trabalho como ponteador de peças. Conhecido por Tucano, o metalúrgico foi sindicalista e participou das históricas greves em fábricas do ABC, movimento que lançou Luiz Inácio Lula da Silva como uma figura política importante e popular entre as camadas mais pobres.
“Sempre quis ser metalúrgico da Ford, porque eu acompanhava meu pai desde moleque. Ele me trazia aqui, me levava no sindicato, eu via como era aquela vida de luta”, diz o jovem. “O que agora me deixa mais triste é que a gente se sacrificou pela empresa, cedendo benefícios, deixando de receber aumento real. E agora, ela nos deixa na mão.”
A história familiar de Clayton Diogenes da Silva, de 43 anos, também se confunde com a Ford – a fábrica em São Bernardo existe desde 1967. Entre os colegas, ele é conhecido por Risadinha (o sorriso fácil, mesmo quando fala de coisas tristes, talvez explique o apelido).
“Foi na Ford que meu pai criou cinco filhos e que eu criei meus dois”, diz o inspetor de processo, há 23 anos na fábrica. “Entrei com 19 anos, e ainda trabalhei um ano com meu pai aqui.”
O pai, Antonio Carlos da Silva, ficou 25 anos na unidade, parte deles como inspetor de qualidade de motores. “Em 1971, quando entrei como chão de fábrica, a gente fazia Maverick, Belina, Landau”, diz Antonio, mais tarde, por telefone.
Já seu filho, o Risadinha, passou pelas fases Escort, Verona, Ka, Fiesta. “Nossa família se formou na Ford, primos e tios também trabalharam aqui, temos um apreço muito grande pela empresa”, afirma. “Só compramos carros da Ford. Se um parente aparece com um Volks, a gente exclui da família”, brinca.
O que diz a Ford?
A montadora americana afirma que vai encerrar as atividades da fábrica em São Bernardo ao longo deste ano, acabando com o setor de caminhões e transferindo a montagem do modelo Fiesta para outras unidades no país. Um acordo entre a companhia e o sindicato prevê estabilidade dos trabalhadores até novembro.
Em nota, a Ford explica que a decisão de deixar o mercado de caminhões “foi tomada após vários meses de busca por alternativas, que incluíram a possibilidade de parcerias e venda da operação. A manutenção do negócio teria exigido um volume expressivo de investimentos sem, no entanto, apresentar um caminho viável para um negócio lucrativo e sustentável”.
A empresa prevê um gasto de R$ 1,7 bilhão com “compensações de funcionários, concessionários e fornecedores.”
“Sabemos que essa decisão terá um impacto significativo sobre os nossos funcionários de São Bernardo do Campo e, por isso, trabalharemos com todos os nossos parceiros nos próximos passos”, disse Lyle Watters, presidente da Ford América do Sul.
O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Wagner Santana, criticou o anúncio e disse que os trabalhadores vão se mobilizar. “Nossa decisão é de resistência, nós não vamos aceitar. O que vamos fazer? Tudo, tudo o que aprendemos no movimento sindical. Se tiver que fazer greve, vamos fazer. Ou acampamento. Se tiver que negociar, vamos negociar”, afirmou à BBC News Brasil.
O prefeito de São Bernardo do Campo, Orlando Morando (PSDB), mostrou indignação com a decisão da montadora americana. “Não aceito a forma que está sendo feito. Não considero correto, acho um desrespeito com os trabalhadores e com a cidade”, disse, em um vídeo nas redes sociais.
E o futuro dos metalúrgicos?
Para o preparador de máquinas Anderson Viana, de 38 anos, conhecido entre os colegas como Pitchulinha, o desemprego pode significar sérias dificuldades para sustentar seus dois filhos. “Também tenho um irmão deficiente, com paralisia cerebral, que depende de mim. A Ford é meu ganha pão, minha vida digna depende dela”, diz.
Quando entrou na empresa em 2010, Anderson pensava que seu bem-estar estava garantido por muito tempo – o salário médio na empresa é de cerca de R$ 6.000. “Achava que eu iria me aposentar aqui, sonhava que meu filho viesse trabalhar na Ford. Mas parece que a empresa não teve pena de ninguém, como se a gente fosse uma mercadoria que se descarta, como se fosse um carro”, diz.
Seu colega, o funileiro de produção Sergio Soares, de 50 anos, conta como o emprego na montadora melhorou sua vida. “A Ford significou uma mudança. Você vai subindo na folha, vai melhorando. Compra casa, carro, faz faculdade”, enumera.
Ele está há 25 anos na fábrica de São Bernardo, e tem esperança de que o sindicato da categoria consiga reverter o jogo, como tantas vezes conseguiu ao longo de sua história de mobilizações. “Espero que a gente mude essa decisão, porque terá um impacto muito grande na vida das pessoas.”
Já Clayton Diogenes da Silva, o Risadinha, não acredita muito no futuro como metalúrgico. “Aqui no ABC, o auge da cadeia produtiva era ser metalúrgico de uma montadora”, diz ele, cuja faculdade de tecnologia em processo de produção foi paga pela Ford. “Nós, da área de tecnologia, sabemos quando nossa mão de obra fica obsoleta.”
Seu pai, o aposentado Antonio Carlos, é um pouco mais otimista, embora perceba que, dessa vez, o cenário parece pior que o da sua época. “Quando entrei na Ford, em 1971, já tinha um papo de que a fábrica de São Bernardo iria fechar. Mas era só fofoca entre os peões, nunca teve um anúncio como esse”, diz.
Fonte: BBC News Brasil
Texto: Leandro Machado
Data original da publicação: 21/02/2019