O “direito de desconectar” é uma boa ideia – mas é necessária mais proteção para os trabalhadores precarizados que não cumprem uma jornada de horários fixos.
Joana Ramiro
Fonte: Jacobin Brasil
Tradução: Felipe Kusnitzki
Data original da publicação: 26/01/2023
No início de novembro de 2021, os legisladores portugueses tornaram ilegal que os chefes contatassem os funcionários após o horário de trabalho. A nova lei estabelece que, exceto em casos de força maior, “o empregador tem o dever de abster-se de contactar o trabalhador durante o período de descanso”. As empresas que infringirem a nova regra correm o risco de ter que arcar com pesadas multas. A medida foi elaborada por um comitê parlamentar com foco no “admirável mundo novo” do trabalho em casa (home office). Mas, como se trata de uma mudança na legislação trabalhista, ela se aplicará a todos os funcionários, estejam estes trabalhando remotamente ou não.
As notícias dessa política sendo implementada em um pequeno país na extremidade da Europa rapidamente chegaram às manchetes no mundo todo. Em um mundo que ainda tenta descobrir quais arranjos de trabalho são temporários e quais são permanentes, após a pandemia, qualquer intervenção desse tipo será vista como vanguarda. No entanto, embora a medida pareça particularmente relevante em tempos de pandemia, ela não é inédita nem uma resposta a um problema específico do COVID-19.
Em 2016, o governo francês aprovou uma lei consagrando o “direito de desconectar”, protegendo os trabalhadores de quaisquer penalidades decorrentes de não responder a e-mails e ligações fora do horário de trabalho. Nesse mesmo ano, uma legislação semelhante foi introduzida pelos governos italiano e espanhol. Na Alemanha, embora a política ainda não seja lei, tem sido uma prática popular entre alguns dos maiores empregadores do país desde o início dos anos 2010. Em abril, a Irlanda introduziu um código de conduta que complementa a legislação existente que protege os funcionários contra o excesso de trabalho.
Mas a lei portuguesa também vai além da ideia do “direito de desligar” do trabalhador. Ele transfere para o empregador o ônus de deixar o empregado livre fora do horário de expediente. Isso não é uma mera diferença semântica, mas significa recuar contra os chefes que têm rédea solta. A lei elaborada em outros países europeus, no melhor dos casos, dá aos trabalhadores algumas ferramentas para se defenderem dos excessos dos patrões – se eles encontrarem forças para revidar. A versão portuguesa torna esses excessos ilegais desde o princípio.
No entanto, embora a nova lei tenha muito a ser comemorada, ela encontrou reações reveladoras e contraditórias do lado progressista da política portuguesa. Foi aprovado no parlamento sem o apoio do Partido Comunista ou de quaisquer forças centristas, com exceção aos socialistas governantes. O Bloco de Esquerda mostrou apoio vacilante à proposta, abstendo-se durante a fase de redação, mas acabou votando junto com o Partido Socialista. As razões para essas visões conflitantes talvez residam, em parte, na compreensão política dessas forças sobre o direito ao trabalho (e direitos no trabalho) sob um sistema capitalista. Mas, principalmente, eles se resumem à imprecisão da linguagem do documento e ao conhecimento de que, no terreno, há problemas maiores a serem resolvidos antes de saudar o direito – ou o dever – de desconectar.
Compensação para problemas maiores
Portugal está, desde muito tempo, entre os países da União Europeia com maior número de horas de trabalho anuais. No ano passado, ficou em décimo primeiro lugar no ranking da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com uma média de 1.613 horas por trabalhador. Esta foi uma diminuição significativa em relação aos tempos pré-pandêmicos: os dados de 2019 mostraram trabalhadores portugueses colocando 1.745 horas do ano em trabalho. Para efeito de comparação, a média da União Européia é de 1.513 horas por ano, enquanto os trabalhadores na Alemanha, o país com classificação mais baixa, têm uma média de 1.332 horas. Isto significa que trabalham menos sete semanas de trabalho (de quarenta horas) por ano do que os trabalhadores portugueses.
Mas, embora essas estatísticas integrem considerações muitas vezes negligenciadas, como horas extras não pagas, elas não podem transmitir toda a cultura de trabalho destes países. Portugal, apesar de toda a sua poderosa história sindical, foi prejudicado por décadas de contra-reformas e doutrinação cultural, somadas a baixos salários endêmicos. Os direitos dos trabalhadores conquistados ao longo do revolucionário ano de 1974, estendendo-se até o final daquela década, foram destruídos em meados da década de 80 com o avanço da era neoliberal. Em seu lugar, sucessivos governos portugueses instalaram um sistema que fornece subsídios medíocres aos desempregados, em vez de defender os trabalhadores de uma demissão fácil ou seu direito a um salário decente.
Em 2019, o salário mensal médio era de cerca de € 1.300, segundo estatísticas oficiais, e o salário mínimo de € 600 por mês: este segundo, uma renda que 21% da população estimava viver e que considerava bem difícil de conseguir sobreviver com ela. Em 2021, Portugal entra na segunda geração de trabalhadores habituados à precariedade laboral, com salários miseráveis e um ambiente de trabalho fértil para abusos. O trabalho remoto apenas agravou uma situação já terrível.
Realidade desconectada
“Maria” é assistente de atendimento ao cliente em um call center. O problema dela não tem sido tanto seu gerente, mas a equipe de tecnologia da informação com a qual ela trabalha. Problemas com senhas e outros problemas de acessibilidade geralmente são resolvidos após o horário de trabalho, via texto. Mas as intrusões às vezes vão além de uma rápida troca no WhatsApp. No caso “mais grave”, Maria havia reclamado de um problema em sua tela e não recebia retorno dos técnicos responsáveis há algum tempo. Mas “assim que saí de férias me ligaram às 7h e exigiram do meu supervisor que eu ligasse o computador”. Ela teve que discutir com seu gerente para que pudesse ter seu direito assegurado durante suas férias.
Há alguns anos, na região de Leiria, um hotel abandonado contratou os serviços do trabalhador de manutenção José Bettencourt Costa e Silva. O edifício estava particularmente degradado, fato pelo qual José era frequentemente chamado pela administração após o horário de trabalho para resolver vários problemas. “Como conseguia entender a infraestrutura, se era um problema de ar condicionado, aquecimento de água e etc., consegui fazer um guia pelo telefone.” Isso aconteceu muitas vezes — e sua mão de obra extra e não remunerada era tão apreciada que, mesmo depois de deixar o emprego, José era frequentemente chamado para treinar novos funcionários ou dar uma ajudinha quando não encontravam ninguém com tamanha facilidade. As interrupções acabaram atrapalhando também sua vida doméstica: “Tenho sono pesado, então não acordava, mas minha mulher acordava com as ligações e me acordava em seguida.”
José acha que a nova lei é um bom avanço, nem que seja para pressionar as empresas a pagar pelo tempo gasto pelos trabalhadores enquanto deveriam estar descansando. No entanto, José sabe que, em situações de crise, o chefe irá e ainda poderá contatar legalmente os trabalhadores, independentemente da hora do dia. Nesse ponto, José é pragmático: “Pode acontecer mas [de certa forma] que seja valorizado”. Só que no caso dele, ele “nunca foi valorizado ou remunerado, [então era] impossível quantificar [quanto disso era trabalho em hora extra]”.
E aqui reside a maior crítica à nova lei: a sua imprecisão. O sindicato dos trabalhadores de call centers portugueses, STCC, chamou-a de “insuficiente e pior… muito incerta”. Segundo o sindicato, o STCC foi convidado a contribuir para os trabalhos da comissão parlamentar, mas as sugestões apresentadas durante ficaram invisíveis no documento final. No mesmo comunicado, divulgado nas redes sociais do sindicato, o STCC questiona o que constitui um caso de força maior que permitiria aos empregadores interromper legalmente o descanso dos trabalhadores.
De fato, embora a maioria concorde que a leitura de “força maior” deva ser reservada para tragédias maiores, não é difícil imaginar alguns chefes distorcendo a definição de acordo com sua vontade. O hotel onde José trabalhava não poderia argumentar que as questões para as quais seus serviços eram necessários eram de fato emergências? Como a lei enfrentará o problema crescente da indisponibilidade repentina de um trabalhador para comparecer ao trabalho (digamos, se for diagnosticado com COVID) e a administração precisa substituí-lo com urgência?
Poderíamos nos perguntar especialmente como isso ajudaria uma trabalhadora como Ana Catarina. No último verão, a estudante de Lisboa candidatou-se a trabalho num camping. Ana Catarina nunca recebeu um “contrato real”, mas precisava muito do dinheiro e aceitou. Como membro da equipe, ela também acampou no local e trabalhou no café-bar, o que parecia um bom negócio. Mas as coisas rapidamente azedaram. “Assim que cheguei lá me vi trabalhando mais de 8 horas por dia, quase todos os dias. Acabei trabalhando até 14 horas, tendo efetivamente que ‘preencher turnos’ e tendo apenas uma folga por semana, que seria interrompida por ligações e mensagens do chefe.” Sempre que um colega não aparecia, independentemente da hora ou do dia, o gerente de Ana Catarina a assediava para os substituir.
Seu horário de trabalho ou quaisquer planos que ela pudesse ter feito para os dias de descanso eram constantemente arruinados. “Nós efetivamente não podíamos recusar e dizer não. No fundo, como tínhamos medo de não ser pagos, e como não havia um registro de que, sequer, trabalhávamos lá, tivemos de aguentar.” No entanto, a nova reforma faz poucas provisões para situações de trabalho ocasional não regulamentado, de que dependem muitos trabalhadores portugueses. Mas, mesmo que a situação fosse normal, a necessidade do chefe de Ana Catarina de substituir funcionários de emergência não poderia ser considerada por ele como sendo de “força maior”?
Tempo de fazer mais
A Autoridade para as Condições de Trabalho de Portugal (ACT) há muito tempo tem políticas sobre horas semanais máximas de trabalho (40), horas extras (nunca mais de 150 horas por ano) e descanso (a cada 5 horas trabalhadas e pelo menos 11 horas entre dois dias úteis). Dito isto, existem exceções e brechas legais, incluindo o chamado “regime de adaptabilidade” que muitos empregadores usaram indiscriminadamente durante a pandemia para legalizar seus funcionários que trabalham remotamente. É seguro dizer que é um sistema de trabalho cheio de “áreas cinzentas”, onde os trabalhadores muitas vezes são deixados à mercê da empresa devido ao seu analfabetismo legislativo.
“Mudar a lei não muda as práticas sociais. Os abusos de tempo têm muitas dimensões e as relações laborais são marcadas por uma grande desigualdade”, escreveu o deputado do Bloco de Esquerda José Soeiro na sua página de Facebook. “Mas o fato de a lei dar esse sinal é de grande significado político e jurídico. E isso significa que os trabalhadores têm mais uma arma para empunhar na luta por seu tempo.”
O problema então reside – como tantas vezes parece estar – no eterno malabarismo parlamentar da esquerda entre promover reformas imediatas sem comprometer o objetivo final. Além disso, com as eleições gerais no final de janeiro de 2022, a posição de cada partido no parlamento foi de sinalizar para seu próprio círculo eleitoral. Para o Bloco de Esquerda, valeu a pena votar nas conquistas da nova legislação trabalhista. Enquanto os comunistas estavam, aparentemente, determinados a ir mais longe.
No final, os trabalhadores em Portugal vão ver se os patrões cumprem o seu novo “dever” e se serão mesmo aplicadas sanções aos que não o fazem. E só os trabalhadores portugueses poderão dizer se valeu a pena todo o alarido na imprensa internacional sobre a política – ou se serão necessárias medidas mais revolucionárias.
Joana Ramiro é jornalista, escritora, radialista e comentarista política residente em Londres.