Teto de gastos: a primeira grande batalha de Lula

Orçamento de Bolsonaro e Guedes para 2023 é amplamente rechaçado. Abrir série longa e desgastante de negociações com o Congresso? Ou aproveitar o impulso das urnas para lutar pelo que se defendeu em campanha?

Antonio Martins

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 03/11/2022

É um engano crer a que as disputas do governo Lula contra a herança maldita do bolsonarismo começarão após a festa de posse, em janeiro. Na manhã desta quinta-feira (3/11), emissários indicados pelo presidente eleito1 reuniram-se em Brasília com o senador Marcelo Castro (MDB-PI), relator do projeto de lei que definirá o Orçamento da União em 2023. Ninguém mais sustenta a proposta atual. Formulada pelo governo Bolsonaro, ela é incompatível com o resultado das urnas. Mas o debate sobre o que pode substituí-lo ficou para a próxima semana: os representantes de Lula ainda precisam acertar-se com ele, que descansa na Bahia. Mudanças significativas exigem furar o “teto de gastos”. É melhor fazê-lo em conta-gotas – por meio de negociações constantes com um Legislativo fisiológico – ou propondo, de uma vez, revogar a Emenda Constitucional 95, que instituiu o limite? Vale examinar o tema em profundidade.

Apresentado pelo Poder Executivo em 31 de agosto, o Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2023 (PLOA-2023) reúne o que há de pior em Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. A redução dos investimentos sociais do Estado, que o “teto de gastos” determina e o ministro executou com radicalidade de pitbull, fica clara nos gráficos abaixo, que apontam o corte de verbas para Saúde, Educação e até Defesa Nacional e Segurança Pública.

Mas o mesmo Executivo que aplicou uma tesoura gigante nos gastos do próximo ano, comprou votos como nunca em 2022, por meio de um conjunto de medidas fiscais. Estão entre elas o auxílio emergencial de R$ 600 e a redução do preço dos combustíveis por meio da eliminação de impostos federais e estaduais. O resultado é bizarro.

Até mesmo a jornalista Míriam Leitão, defensora constante do “enxugamento” de despesas públicas, demonstrou como o Orçamento tornou-se anacrônico e inviável politicamente. Inúmeros programas sociais foram cortados. O Farmácia Popular, em 60%; a infraestrutura das escolas e o transporte de estudantes, em 97%; a Educação de Jovens e Adultos, em 56%; a merenda escolar mantém-se congelada desde 2017, apesar da inflação galopante de alimentos; e o Orçamento Secreto deixa 40% das verbas de investimento – já pífias – fora de controle do Executivo.

A contradição desta bomba-relógio com qualquer ideia de resgate da dignidade social – e com o programa de Lula – é flagrante. O presidente eleito comprometeu-se a manter os R$ 600 de auxílio, que não foram incluídos no orçamento e custarão R$ 52 bilhões. Concordou em acrescentar R$ 150 para cada filho de até 6 anos (mais R$ 18 bi). Defendeu a volta dos reajustes do salário mínimo acima da inflação (interrompidos desde o início do governo Bolsonaro). Sustentou a isenção do Imposto de Renda para ganhos mensais de até R$ 5 mil (uma medida elementar de justiça fiscal, orçada em R$ 50 bi). E fala em priorizar, entre outros pontos, o combate à fome, a recuperação da indústria nacional, a retomada de obras públicas paradas, o apoio à pequena agricultura, a volta das políticas de incentivo à cultura. Em suma, quer iniciar o que chamou, no discurso da vitória, de reconstrução nacional.

Em condições normais, todas estas propostas, vitoriosas nas urnas, poderiam ser incluídas no Orçamento de 2023. Mas o Congresso não pode aprová-las devido ao “teto de gastos”, expresso pela Emenda Constitucional 95. É a remoção deste entulho que está no centro do diálogo inconcluso dos representantes de Lula com o senador Marcelo Castro. Há dois meios de fazê-la.

O primeiro tem sido defendido pelo ex-presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. É também a proposta dos barões financeiros e do Centrão. Implica não enfrentar o “teto”. Ao invés de fazê-lo, Lula deveria pedir ao Congresso, por meio de emenda constitucional, um waiver, licença temporária para gastar. Esta “excepcionalidade”, continua Meirelles, não deve “durar o governo inteiro”. Nos anos seguintes, o correto seria “fazer uma reforma administrativa” como a que ele mesmo executou no governo de São Paulo – e que resultou em fim de estatais e direitos. Além disso, o waiver seria limitado: segundo a repórter Adriana Fernandes, do Estadão, “o mercado financeiro tem colocado um limite de R$ 100 bilhões”.

Meirelles e os especuladores defendem o conta-gotas por serem partidários da redução do investimento público. Os parlamentares fisiológicos a preferem porque ela obrigaria Lula a negociar com eles todas as vezes que precisasse furar o “teto”. A “austeridade” brasileira, percebe-se, é irmã de farras como a do “orçamento secreto”.

A outra alternativa que Lula tem em mãos combina muito melhor com a ideia da reconstrução nacional. Significa propor clara e abertamente, também por emenda constitucional, a revogação do “teto de gastos”. Num país destruído, e após uma vitória eleitoral em que tantos obstáculos foram superados, não vale a pena propor uma mobilização nacional para varrer o que atravanca o avanço? O “teto de gastos” – um instrumento que limita os gastos sociais para abrir espaço ao rentismo – não merece ser exposto, inclusive como forma de pedagogia política, com vistas a batalhas futuras? E não é muito melhor enfrentar as resistências do Congresso e do “mercado” no momento em que o governo está fortalecido pela eleição e pelas esperanças despertadas?

Que os orixás baianos deem bons conselhos a um presidente de quem tanto se espera.

Nota

1 Participaram o senador Wellington Dias (PT-PI), indicado por Lula para coordenar o diálogo em seu nome, o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, a senadora Gleisi Hoffmann, presidente do PT, o ex-senador Aloísio Mercadante, que coordenou a elaboração do programa de Lula e sete senadores petistas.

Antonio Martins é editor de Outras Palavras.

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