Foi no esdrúxulo, no absurdo da escravidão, que temos o reconhecimento de uma associação empresarial de que a terceirização serve para precarizar o trabalho.
Marcelo Munhoz Scherer
Fonte: Sul 21
Data original da publicação: 01/03/2023
Na semana passada, tivemos conhecimento de que foram encontrados mais de 150 trabalhadores terceirizados expostos a situações degradantes de trabalho, análogas à escravidão, “prestando serviços” a conhecidas vinícolas da região serrana do Rio Grande do Sul.
Aqui cabe um pequeno parênteses: a região serrana do Rio Grande do Sul é, para muitos, conhecida como a Europa Brasileira, região de pessoas cultas, educadas e trabalhadoras. Terra de imigrantes europeus, não de europeus ricos e de famílias tradicionais, mas de europeus pobres e expurgados de seus países que, através da ajuda de uma nova pátria, no caso o Brasil, estabeleceram-se e formaram suas famílias.
Cabe também situar que a região serrana é conhecida pela produção dos melhores vinhos do País, alguns com reputação internacional. Não é vinho que se bebe em qualquer boteco.
Pois bem. Não pretendo aqui explorar minha indignação quanto ao trabalho escravo em sua gênese, pois sobre este aspecto já me deparei com textos de pessoas brilhantes. Pretendo, dentro de minhas limitações, demonstrar o ápice, o sucesso, o milagre imposto pelos intelectuais que explicam para a sociedade ferramentas de opressão sob o argumento de eficiência, formulam a opressão com roupagem de mérito e defendem a imposição do econômico sobre o social como consequência lógica e irrefutável!
Um grande amigo, incerto de sua genialidade, sempre defendeu em meio as nossas cervejas que questões simples, hoje, não devem ser esclarecidas com soluções didáticas, mas com a demonstração do esdrúxulo. Confesso que sempre coloquei esta tese na conta da excentricidade de meu amigo ou das cervejas. Hoje me rendi!
Vivemos um mundo em que conceitos, ideias e “narrativas” são colocadas em um liquidificador para que se extraia um suco de genialidade que imponha aos seres humanos comuns soluções completamente descoladas da realidade. A pompa dos intelectuais e influenciadores impõe ao debate público sobre determinados temas um daltonismo que faz com que azul não seja mais azul, mesmo para o não daltônico.
É o caso da terceirização do trabalho.
Desde que vivo o mundo do trabalho, experencio a terceirização de mão de obra como forma de precarização do trabalho a serviço da taxa de lucro do empreendedor. Os dados mostram que terceirizar, no contexto brasileiro, NUNCA teve como objetivo especializar, mas, sim, economizar. O custo de trabalho é uma variável da taxa de lucro. Logo, ser competente e eficiente, passa por “trabalhar” essa variável. Infelizmente, a Suprema Corte não compactua desse entendimento. Através de uma longa e complexa abordagem sobre o tema, houve a definição de que terceirizar gera eficiência e não precarização. Os argumentos são tecnicamente muito bons, mas são daltônicos. Estabelecem um marco legal completamente descolado da realidade brasileira e isso é simples de notar. E é aqui que lembro de meu amigo, sociólogo de botequim: “questões simples, hoje, não devem ser esclarecidas com soluções didáticas, mas com a demonstração do esdrúxulo”.
A associação regional que representa a indústria e o comércio da Região Serrana, ao defender em nota o legado das vinícolas envolvidas no caso, afirma que é público e notório que as referidas empresas tratam bem seus empregados e que o problema é da empresa terceirizada!
Eis a sinuca de bico. Todo bodegueiro sabe que da sinuca de bico o caminho é o reconhecimento da derrota.
A associação acima citada, no afã de defender a índole de suas representadas, que até então sustentavam a eficiência da terceirização, afirmou: antes ela do que eu! Acabou por demonstrar o que sempre experienciei – a terceirização não traz eficiência, mas, sim, a precarização do trabalho a serviço do lucro.
Pronto, foi no esdrúxulo, no absurdo da escravidão, que temos o reconhecimento de uma associação empresarial de que a terceirização serve para precarizar o trabalho. É na alegação de que eles não têm nada a ver com os trabalhadores escravizados que eles reconhecem a adoção do trabalho escravo como forma de gestão.
Para entender a terceirização precisamos do esdrúxulo. Terceirizamos a escravidão!
Marcelo Munhoz Scherer é advogado do SindBancários Porto Alegre.