Alberto Luís Araújo Silva Filho
Meses sem receber salários, jornadas de trabalho extenuantes e a ausência da garantia de direitos fundamentais previstos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Esse é o panorama vivenciado diariamente por terceirizadas e terceirizados em todo o país: um quadro de incertezas e inseguranças materiais que mais parecem com os regimes de superexploração vigentes no apogeu da Primeira Revolução Industrial e do famigerado laissez faire. O governo de Michel Temer, certamente inspirado nos ideais privatistas clássicos, sancionou a radicalização do quadro de precariedade em um contexto no qual os retrocessos no campo da legislação social dão a tônica da ponte que estamos atravessando para o futuro, conforme já previa o programa de governo do PMDB às vésperas do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Entretanto, é preciso lembrar que a PL 4.302/1998, aprovada recentemente no Parlamento brasileiro e agraciada por Michel, não instituiu o “caos organizado” nas relações entre patrões e empregados. Ele já existia de forma disseminada e inclusive como uma prática corrente nas instituições do Estado que há um largo espaço de tempo vem contratando funcionários despidos das mínimas prerrogativas formais previstas pela carta de 1943. Quando da institucionalização das atividades meio, o Estado brasileiro já começara a renunciar ao seu papel de provedor social, passando para a gradual transformação das estruturas burocrático-desenvolvimentistas em instâncias gerenciais, mais flexíveis e mais eficientes, conforme ordenava o figurino neoliberal que teve ampla penetração na América Latina durante os anos de 1980 e 1990.
As universidades públicas são um caso icônico e que merece destaque. O processo de desconstrução da solidariedade de classe nos países capitalistas, periféricos ou centrais, advinda da corrosão das regras que ordenavam o mundo do trabalho, permite com que hoje, ao olharmos para o outro enquanto aquele que diverge nos seus interesses quanto a mim, sejamos capazes de ignorar o grau de precarização ao qual alguns sujeitos sociais estão submetidos no campo das suas atividades cotidianas. Ao mesmo tempo em que professores universitários e funcionários técnico-administrativos, majoritariamente concursados, tiveram ganhos reais em suas folhas salariais na última década em uma proporção muito maior do que ocorrera nas décadas anteriores, nos mesmos espaços de ensino, pesquisa e extensão trabalhadoras e trabalhadores terceirizados se proliferaram.
Esses últimos, com a blusa das empresas que os fornecem (o homem enquanto mercadoria), muitas vezes percorrem, de maneira atribulada, os corredores das universidades, sendo responsáveis pela manutenção de patrimônio, limpeza, cuidados com as salas e auditórios nos quais ocorrem as aulas e demais atividades, elaboração de refeições, segurança, entre outras tarefas. Em troca, baixos salários ou mesmo meses de atraso, consideração de subalternidade por parte das administrações superiores, até mesmo em virtude das responsabilidades compartilhadas que a legislação ainda estabelece; e uma carga horária de prestação de serviços que muitas vezes pode ultrapassar as oito horas diárias comuns aos cobertos pelo regime CLT, sem nenhum acréscimo no que tange às horas extras. São homens e mulheres normalmente sem escolaridade para quem a aprovação da PL no último mês de março não faz tanta diferença.
Ignoram o fato não porque estejam numa categoria imune à alteração já sancionada ou em dessas castas regadas de privilégios, mas porque a eles jamais ocorreu a emancipação legal no que diz respeito à provisão dos direitos trabalhistas. É preciso que entidades de representação de classe, intelectuais, movimentos sociais, partidos políticos de esquerda e outros elementos progressistas da sociedade civil estejam prontos não apenas para manter a continuidade da reação nas ruas com a greve geral prevista para 28 de abril. É necessário também mais doses de reflexões para o quanto fechamos os olhos aos que por anos vem sendo submetidos à situação análoga à escravidão dentro de setores do Estado brasileiro, no interior de instituições de produção do conhecimento nas quais também floresce parte considerável do pensamento crítico no país.
A questão é: em algum momento alguém lutou por eles? Não, a situação foi gradualmente se estabelecendo e culminou num ponto de naturalização. Mas como diria Bertold Brecht em “Intertexto”, uma hora nos levaram também, nós que não nos importamos com ninguém. Resta saber se a mobilização dos próximos dias será suficiente para afirmar que realmente toda uma classe estará unida, repleta de membros que importam se uns com os outros. Fica a sugestão de uma máxima a se adotar: a de que o prejuízo a um trabalhador nada mais é do que pretexto para desestabilização dos demais futuramente, pois somente a coesão que o velho Marx pregava é capaz de barrar os retrocessos já espelhados em um passado não tão distante e que nos alertavam como espécie de retrato do nosso futuro.
Alberto Luís Araújo Silva Filho é graduando em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí, membro do Grupo de Pesquisas sobre Democracia e Marcadores Sociais da Diferença (CNPq) e do Grupo de Estudos em Teoria Política Contemporânea (DOXA) vinculado ao Núcleo de Pesquisas sobre Instituições e Políticas Públicas (CNPq/UFPI).