Clemente Ganz Lúcio
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil
Data original da publicação: 03/05/2015
A divisão do trabalho, cada vez mais intensa e sofisticada, é um dos fenômenos do capitalismo. A terceirização dá nova forma ao processo de divisão do trabalho, revestindo-o com a relação contratual entre empresas ou destas com órgãos públicos. Argumenta-se que o processo de terceirização visa ao incremento da eficiência e da produtividade, melhorando a competitividade das empresas e da economia.
Entretanto, predominantemente, a terceirização revelou-se uma prática em que as empresas buscam melhorar desempenho econômico por meio de uma produtividade espúria, diminuindo custos a partir da redução de salários, de direitos e fragilizando a proteção sindical. A experiência do DIEESE, na assessoria a negociações coletivas no setor privado e público e na produção de estudos e pesquisas, confirma a precarização.
No Brasil, o processo de reestruturação produtiva dos anos 1990 intensificou o avanço da terceirização espúria nas empresas e ampliou perigosamente a presença dela na administração direta do Estado. O fenômeno atingiu milhões de trabalhadores, demitidos de um lado, contratados de outro por empresas prestadoras de serviço. Ao cabo, os trabalhadores mudavam de empregador, de salário, de condições de trabalho, de direito, de proteção sindical, geralmente para pior, quando não, para muito pior. Isso causou um mal-estar geral, repercutindo de tal forma que terceirizar virou sinônimo de precarização. Alguns pesquisadores advogam que esses trabalhadores vêm formando, pela condição e situação, uma nova classe laboral: o precariato.
Os sindicatos brasileiros atuaram, lutando contra esse processo de desregulação. O Ministério Público do Trabalho e a Justiça do Trabalho identificaram as práticas perversas, autuaram empresas e órgão públicos, julgaram processos, entre outras iniciativas. Passivos trabalhistas formaram-se e a insegurança, antes só dos trabalhadores, passou a ser também das empresas e do próprio setor público. Os trabalhadores querem o fim da terceirização e os empresários, a segurança jurídica dos contratos. A disputa chegou ao Legislativo em meados nos anos 1990.
Há 11 anos, o Projeto de Lei 4330/04 tramita na Câmara dos Deputados como texto base para a regulação. O movimento sindical formula, com assessoria, deputados e senadores, Ministério do Trabalho e Emprego, propostas alternativas. Procura também, nas negociações, inibir a precarização, colocando nas convenções coletivas limites ou travas. A Justiça, com a Súmula 331, impede em parte que a terceirização avance para as atividades fim da empresa contratante.
Desde 2012, os empresários estão priorizando a regulação da terceirização, pressionando para que o trâmite legislativo tenha curso célere. Os trabalhadores e as entidades sindicais e inúmeras outras organizações colocam-se na contra-ofensiva.
No processo de luta e disputa, as centrais sindicais propuseram ao governo e ao Legislativo a constituição de uma mesa quadripartite (empresários, trabalhadores, governo e legislativo), para tratar da regulamentação da terceirização, debater e formular uma regra, fixada em lei, que propiciasse a proteção dos trabalhadores contra a precarização e a segurança jurídica das empresas que têm boas práticas. O caminho da regulação se impôs porque já envolve mais de 12 milhões de trabalhadores, contratados por milhares de empresas, que prestam serviços para milhares de empresas ou órgão públicos, que respondem a milhares de processos na Justiça.
As sociedades democráticas descobriram, ao longo da história, que é possível regular as relações sociais e econômicas por meio do estabelecimento de limites, de maneira a incentivar as boas práticas e coibir e punir más condutas. A ausência de regras acarreta insegurança, gera desigualdades, amplia os conflitos e traz uma série de outros resultados indesejados.
A mesa quadripartite foi instalada e um duro processo de debate teve curso, com posicionamentos firmes das partes e muita mobilização nas bases. As questões da terceirização foram abordadas em três aspectos interrelacionados: os limites para não terceirizar a atividade fim; a proteção contra a precarização; a proibição da alocação de mão de obra. Definiu-se, também, que a regulamentação da terceirização no setor público será objeto de lei específica, regida pelo direito administrativo. Entretanto, os direitos dos trabalhadores em empresas terceiras que prestam serviço para o setor público valerão desde a nova lei em debate.
Proíbe-se a empresa especializada em vender força de trabalho, que faz negócio da alocação do trabalhador, forma legal pela qual “empresas-gato” agem no campo e na cidade. Criaram-se medidas de proteção aos trabalhadores terceirizados; de responsabilidade solidária da empresa contratante, que responderá pelos atos da empresa contratada; mecanismos econômicos e jurídicos a serem incluídos nos contratos para proteger os trabalhadores; e manteve-se explícito o critério de subordinação para observar vínculo de emprego com a empresa contratante.
Exige-se a especialização da empresa prestadora de serviço em uma única atividade e finalidade específica, definida pela qualificação técnica da competência e capacidade e do registro da atividade econômica adequada, etc. Acaba-se com a possibilidade, por exemplo, de uma empresa fazer serviço de jardinagem, segurança, limpeza, assessoria de comunicação e defesa jurídica. Cada uma dessas atividades requererá uma empresa especializada, que deverá seguir as regras da atividade econômica na qual se enquadrará.
Garante-se o direito sindical à informação, bem como a capacitação para representação dos trabalhadores, inclusive na assistência, no caso de responsabilidade solidária diante da empresa contratante, que poderá pagar diretamente todos os direitos dos trabalhadores terceirizados.
É preciso um cuidadoso balanço da versão do PL, aprovado pela Câmara dos Deputados, analisando todos os mecanismos e a eficácia deles, pois a matéria é muito complexa e repleta de detalhes.
O embate central foi sobre o limite à terceirização. Os empresários querem liberdade para terceirizar. Os trabalhadores não aceitam esse “liberou geral”. Uma parte desse limite referiu-se, por exemplo, à transformação de cada trabalhador em um PJ, pessoa jurídica, prática corrente que tem, simultaneamente, levado à precarização das condições de trabalho, da proteção sindical e à evasão fiscal.
O texto da lei permite terceirizar “qualquer parcela da atividade”, ou seja, qualquer serviço. As manifestações do movimento sindical e de inúmeras organizações evidenciam que não estão dispostos a conceder esse “liberou geral”, cientes de que isso pode significar avanço generalizado da terceirização.
O processo legislativo, em nova etapa, segue para o Senado Federal, onde já tramita o PL 87/10, que trata da matéria, ao qual o PL 4330/04, da Câmara dos Deputados, deve se agregar. O debate será reaberto, inclusive de balanço do texto aprovado, e permitirá aprofundar as questões essenciais do processo regulatório: os limites da terceirização.
O movimento sindical e a mesa quadripartite incidiram no processo legislativo e no conteúdo do projeto, criando instrumentos de atuação sindical e de proteção laboral. Ao mesmo tempo, enfrentou a questão central: a necessidade de por limites ao processo de terceirização.
O debate público e político sobre o tema foi retomado, com fortes mobilizações envolvendo os interessados. A hora é de dar qualidade ao processo legislativo no Senado Federal, por meio de mobilização e aprofundamento das discussões. Começa mais uma etapa da luta.
Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).