Jorge Luiz Souto Maior
Fonte: Consultor Jurídico
Data original da publicação: 08/09/2013
Os protagonistas do PL 4.330 tentam vender a ideia de que estão fazendo um bem para os trabalhadores. No entanto, estão tentando justificar e minimizar todas as maldades já cometidas pela terceirização ao longo dos 20 anos em que se instituiu no cenário das relações de trabalho no Brasil, desde quando foi incentivada pela Súmula 331, do TST, em 1993, tendo servido ao aumento vertiginoso da precarização das condições de trabalho.
O projeto preconiza que terceirização “é técnica moderna de administração do trabalho”, mas, concretamente, representa uma estratégia de destruição da classe trabalhadora, de inviabilização do antagonismo de classe, servindo ao aumento da exploração do trabalhador, que se vê reduzido à condição de coisa invisível, com relação à qual, segundo a trama engendrada, toda perversidade está perdoada.
O próprio projeto se trai e revela, na incoerência, a sua verdadeira intenção. Diz que a terceirização advém da “necessidade que a empresa moderna tem de concentrar-se em seu negócio principal” – grifou-se. Ocorre que o objetivo principal do projeto é ampliar as possibilidades de terceirização para qualquer tipo de serviço. Assim, a tal empresa moderna, nos termos do projeto, caso aprovado, poderá ter apenas trabalhadores terceirizados, restando a pergunta de qual seria, então, o “negócio principal” da empresa moderna? E mais: que ligação direta essa empresa moderna possuiria com o seu “produto”?
E se concretamente a efetivação de uma terceirização de todas as atividades, gerando o efeito óbvio da desvinculação da empresa de seu produto, pode, de fato, melhorar a qualidade do produto e da prestação do serviço, então a empresa contratante não possui uma relevância específica. Não possui nada a oferecer em termos produtivos ou de execução de serviços, não sendo nada além que uma instituição cujo objeto é administrar os diversos tipos de exploração do trabalho. Ou seja, a grande empresa moderna, nos termos do projeto, é meramente um ente de gestão voltado a organizar as formas de exploração do trabalho, buscando fazer com que cada forma lhe gere lucro. O seu “negócio principal”, que pretende rentável, é, de fato, o comércio de gente, que se constitui, ademais, apenas uma face mais visível do modelo de relações capitalistas, que está, todo ele, baseado na exploração de pessoas conduzidas ao trabalho subordinado pela necessidade e falta de alternativa.
A terceirização, ainda, visa a dificultar que se atinja a necessária responsabilidade social do capital. Nesse modelo de produção, a grande empresa não contrata empregados, contrata contratantes e estes, uma vez contratados, ou contratam trabalhadores dentro de uma perspectiva temporária, não permitindo sequer a formação de um vínculo jurídico que possa ter alguma evolução, ou contratam outros contratantes, instaurando-se uma rede de subcontratações que provoca, na essência, uma desvinculação física e jurídica entre o capital e o trabalho, tornando mais difícil a efetivação dos direitos trabalhistas, pois o empregador aparente, aquele que se apresenta de forma imediata na relação com o trabalho, é, quase sempre, desprovido de capacidade econômica ou, ao menos, possui um capital bastante reduzido se comparado com aquele da empresa que o contratou. Vale lembrar que o capital envolvido no processo produtivo mundial é controlado, efetivamente, por pouquíssimas corporações, que com a lógica da terceirização buscam se desvincular do trabalho para não se verem diretamente ligadas às obrigações sociais, embora digam estar preocupadas com ações que possam “salvar o mundo”!
Em várias situações o próprio sócio-empresário da empresa contratada, dependendo do alcance da rede de subcontratações, não é mais que um empresário aparente, um pseudocapitalista. Ele não possui de fato capital e sua atividade empresarial é restrita a dirigir a atividade de trabalhadores em benefício do interesse produtivo de outra empresa. Na divisão de classes, suplantando as aparências, situa-se no lado do trabalho. São, de fato, empregados daquela empresa para a qual prestam serviços, mesmo que seu serviço se restrinja ao de administrar o serviço alheio.
É interessante perceber que essa situação da precarização do capital, como efeito da terceirização e principalmente das subcontratações em rede, foi visualizada pelos autores do projeto de lei em comento, tanto que tiveram o “cuidado”, na perspectiva do interesse do grande capital, de prever que não se forma vínculo de emprego entre o sócio da empresa terceirizada e a empresa contratante, embora tenham tentado, é verdade, minimizar os problemas daí decorrentes com a exigência de um capital mínimo para a constituição da empresa terceirizada, o que, no entanto, como se verá adiante, não constitui garantia eficiente ao trabalhador e não anula o problema maior do afastamento entre o capital e a responsabilidade social.
A revelação mais importante que se extrai do projeto é a de que o negócio principal de uma empresa é a extração de lucro por intermédio da exploração do trabalho alheio e quanto mais as formas de exploração favorecerem ao aumento do lucro melhor, sendo que este aumento se concretiza, mais facilmente, com redução de salários, precariedade das condições de trabalho, fragilização do trabalhador, destruição das possibilidades de resistência e criação de obstáculos para a organização coletiva dos trabalhadores, buscando, ainda, evitar qualquer tipo de consciência em torno da exploração que pudesse conduzir a práticas ligadas ao antagonismo de classe.
O engodo fica mais evidenciado na percepção da contradição de um sistema econômico que tenta vender a ideia de preocupação com o social, desenvolvendo estratégias de gestão de pessoal voltadas ao que denominam de “humanização” das relações de trabalho, mas que, ao mesmo tempo, preconiza que só pode se sustentar por intermédio de um modo de produção no qual o capital se desvincule do trabalho e, consequentemente, do trabalhador, para que não tenha que se preocupar com os dilemas pessoais deste. Do embaralhado de contratos entre empresas, o que se pretende é que o serviço seja feito, não importando por quem ou o meio que a empresa terceirizada utilize para que o serviço esteja pronto, na forma, na quantidade, na qualidade e no prazo contratados. E se o grande capital possui e exerce esse poder sobre a empresa contratada, esta, concorrendo com outras para pegar uma parcela do capital, tende a se relacionar da mesma forma com outras empresas que venha a contratar e, mais ainda, com os seus trabalhadores subordinados.
Nesta perspectiva é importante que a classe trabalhadora perceba que nem mesmo a mera rejeição do PL 4.330 constitui uma vitória completa, vez que a terceirização que está aí precisa ser combatida, na medida em que agride vários preceitos jurídicos e atinentes às relações humanas, sobretudo no âmbito do setor público.
Em suma, a situação que se extrai do PL 4.330, caso viesse a ser aprovado, pois já se tem boas razões para acreditar que não será, seria a de empresas constituídas sem empregados, com setores inteiros da linha de produção, da administração, do transporte e demais atividades geridos por empresas interpostas cujo capital social é bastante reduzido se comparado com a contratante, gerando, por certo, uma redução de ganhos, além de um grande feixe de relações jurídicas e comerciais, que se interligam promiscuamente, mas que servem para evitar que os diversos trabalhadores, das variadas empresas, se identifiquem como integrantes de uma classe única e se organizem.
De fato, ter-se-ia a formação de uma espécie de shopping center fabril, onde o objeto principal de comércio é o próprio ser humano.
Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí (SP), livre-docente em Direito do Trabalho pela USP e membro da Associação Juízes para a Democracia.