Terceirização da atividade-fim é o fim da terceirização

Mesmo com a revitalização da antiga onda de ataques aos direitos sociais, pelos quais, sob a retórica da modernidade, procura-se conduzir a sociedade brasileira aos tempos do século XIX, o percurso da progressividade se impõe por incidência da razão e da lógica.

Jorge Luiz Souto Maior

Fonte: Blog Jorge Luiz Souto Maior
Data original da publicação: 18/06/2017

“E assim chegar e partir…
São só dois lados
Da mesma viagem
O trem que chega
É o mesmo trem
Da partida…”
(Encontros e Despedidas – Milton Nascimento)

A Lei n. 13.429/17, recentemente sancionada, segundo se diz, possibilita a terceirização da atividade-fim.

A referida lei, no entanto, não obstante a sua ilegitimidade, dada pela supressão do regular processo democrático para a sua aprovação, é uma lei repleta de incongruências técnicas, que atraem, inclusive, o posicionamento, por alguns já manifestado, de que não teria efetivamente regulado a terceirização, de modo a permiti-la na atividade-fim das empresas.

De todo modo, a autorização para a terceirização da atividade-fim, se assim puder ser extraído da Lei n. 13.429/17, representa em si uma superação da terceirização como um todo, inclusive da denominada terceirização da atividade-meio (considerada um modelo mitigado de intermediação de mão de obra, com o eufemismo de especialização de serviços), uma vez que, sem o disfarce jurídico – e mais ainda com a revelação da intenção de se instituir a quarteirização – a terceirização assume claramente o seu verdadeiro caráter de mera intermediação de mão de obra, e isso fere o projeto constitucional de Estado Social baseado na necessidade de se estabelecer uma responsabilização jurídica ao capital, que é gerado pela exploração do trabalho humano, para a implementação organizada de uma mínima distribuição de renda e o desenvolvimento de políticas públicas de índole social.

Dito de forma sintética, uma lei que tenta estabelecer um obstáculo para a vinculação entre o capital e o trabalho, pulverizando a classe trabalhadora e, com isso, também, quebrando as possibilidades, que já são bastante reduzidas, de diálogo social e de uma correlação democrática entre o trabalho e o capital, é uma lei que afronta a Constituição, sendo que esse efeito também se dá porque em vez de cumprir o papel de “melhorar a condição social do trabalhador”, como preconiza o “caput” do art. 7º, a lei traz um enorme retrocesso no que tange ao patrimônio jurídico da classe trabalhadora conquistado ao longo de décadas.

Paradoxalmente, com o advento da referida lei, adentrou-se, de forma definitiva, no momento da superação da terceirização, tal qual fora concebida pela Súmula 331 do TST, mas não no sentido de piorar o estágio jurídico de proteção dos trabalhadores e sim no de melhorá-lo.

A questão é que uma regulação jurídica não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser. Não pode ser o imperativo de um dever-ser e também do seu inverso. Não é possível que um ato se insira na órbita da licitude e ao mesmo tempo seja considerado um ilícito.

O ordenamento não pode estabelecer um padrão jurídico e, em paralelo, criar outro padrão contraposto ao primeiro. A ordem jurídica, por razões até de lógica, se estabelece a partir do parâmetro de regra e exceção, sendo que as exceções, direcionadas a fatos específicos, não regulados pela regra, precisam, além disso, ser claramente justificadas.

Falando de modo mais direto, não é possível que a ordem jurídica estabeleça a relação de emprego como regra geral da vinculação entre o capital e o trabalho e se permita, ao mesmo tempo, que a relação de emprego não seja esse mecanismo de vinculação do capital ao trabalho, vendo-a tão somente como o efeito de um ajuste de vontades, que possibilita ao capital se distanciar, quando queira, do trabalho pela contratação de entes interpostos.

Quando uma lei diz que toda atividade de uma empresa pode ser terceirizada, o que de fato está dizendo é que o capital não precisa se vincular diretamente com o trabalho, institucionalizando, pois, a mera intermediação de mão-de-obra.

Persiste, no entanto, em contraposição, a regra da vinculação direta determinada pela relação de emprego, pela qual se busca fixar uma responsabilização social do capital em razão da exploração do trabalho.

Essas duas regras generalizantes contrapostas não podem coabitar o mesmo ordenamento, exigindo-se, por conseguinte, que se busquem fundamentos jurídicos e lógicos para que, eliminando o conflito, se privilegie uma regra em detrimento da outra.

Inegavelmente, pesa em favor da regra da vinculação jurídica entre o capital e o trabalho a própria razão de ser do Direito do Trabalho (que possui amparo Constitucional), como limitador dos interesses econômicos para impedir a supressão da dignidade humana nas relações de trabalho e para possibilitar a melhoria da condição social aos trabalhadores, de onde decorre, inclusive, a natureza jurídica de ordem pública da configuração da relação de emprego.

A identificação jurídica da relação de emprego como questão de ordem pública, para que o Direito do Trabalho possa, concretamente, cumprir a sua função, não vai ao ponto de negar vigência ao negócio jurídico firmado entre as empresas e sim de invalidar a cláusula que tenta transferir a configuração da relação de emprego para a empresa prestadora de serviços, que, assim como o trabalhador, também não é detentora dos meios de produção e que apenas tem a oferecer no mercado a mercadoria força de trabalho, que compra dos trabalhadores com o dinheiro que lhe é transferido pela empresa capitalista, eis que tal tentativa afronta os artigos 2º e 3º da CLT, que definem a qualidade de empregado e empregador a partir do pressuposto da responsabilização jurídica do capital frente ao trabalho, em conformidade com o projeto do Direito Social.

E nem se diga que a Lei n.13.429/17 ao fixar a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços teria garantido a responsabilização do capital. Primeiro, porque, como o próprio nome diz, essa responsabilidade é subsidiária, ou seja, uma responsabilidade meramente patrimonial, uma espécie de garantia (em geral ineficaz e que pune o credor) para as obrigações de terceiro, não havendo, pois, compromisso específico e direto de índole social. E, segundo, porque o efeito maior que a terceirização generalizada produz, que é o da pulverização da classe trabalhadora, já se teria por concretizado, destruindo todo o aparato jurídico do projeto constitucional.

Para auxiliar nessa análise, há que se compreender, ainda, a diferença fundamental que existe entre terceirização e subcontratação no processo de produção.

No processo de produção, que é ao mesmo tempo um processo de trabalho, há diversos estágios produtivos que se intercalam e que podem ser executados por unidades (empresas) distintas. A empresa cuja atividade é a produção de cadernos, no atual arranjo do capitalismo, não se envolve com a produção dos componentes necessários (o papel, a tinta, o espiral, o plástico etc.) à confecção do caderno, e muito menos os demais utensílios e máquinas que auxiliam o ser humano na construção desse produto. Esses fatores, que, no conjunto, constituem os meios de produção, são adquiridos de outras empresas, cujo empreendimento capitalista já foi realizado na confecção e na comercialização dos seus produtos/mercadorias, complementando o processo de constituição do capital.

Quanto mais complexo for o produto final, mais se terão empresas participantes da rede produtiva, que pode começar lá na atividade extrativa e isso, inclusive, já se presta para fragmentar a classe trabalhadora. Cada uma dessas empresas tem, portanto, a sua atividade produtiva própria, de natureza capitalista, organizando a transformação, pelo trabalho, do resultado de um processo produtivo anterior, para a confecção de um novo produto, sendo que em cada fase se tem a efetivação do mais-valor que se realiza na comercialização. E assim por diante…

Ou seja, o capitalismo constitui-se como uma grande rede produtiva e, portanto, não há nada de novo na situação da atividade empresarial de grandes conglomerados econômicos que atuam como “montadoras”, sendo, portanto, plenamente impróprio visualizar essa a realidade específica das montadoras para tentar justificar o advento de uma lei de terceirização que serve ao mero propósito da intermediação de mão de obra.

As montadoras, possuidoras que são dos meios de produção, detêm capital e este, no novo processo de trabalho por ela organizado, que pressupõe, obviamente, a exploração do trabalho humano, se verá multiplicado quando completado o ciclo, com a confecção do novo produto/mercadoria e a sua comercialização.

Quando se trata de uma mera prestadora de serviços, está se referindo a um empreendimento cujo objeto único é a venda da mercadoria força de trabalho. Não se tem, na hipótese, investimento de capital para, no processo de trabalho, com utilização de meios de produção e exploração do trabalho humano, reproduzir e valorizar o capital, o que se perfaz na fórmula D-M-D’ (dinheiro; mercadorias – que se transformam no processo de trabalho, onde se produz o mais-valor por meio do tempo de serviço prestado para além do equivalente ao valor da mercadoria força de trabalho que, na lógica capitalista, é o tempo socialmente necessário para a sobrevivência do trabalhador e sua reprodução –; e dinheiro adicionado, auferido pela venda do produto, quando, então, o mais-valor se realiza )

O que se dá na intermediação de mão de obra é meramente a compra de uma mercadoria por um preço e a sua venda por preço mais elevado, gerando um lucro, que serve à compra de nova mercadoria, com a mesma finalidade, em um ciclo que se pretende sem fim, dentro de uma lógica que remete ao período pré-capitalista de acumulação do capital, mas que, no atual estágio, está vinculada a um processo de trabalho produtivo alheio.

Quando inserida diretamente no processo de trabalho produtivo, a intermediação se integra ao capital variável e para que as possibilidades do lucro da tomadora não diminuam avança-se sobre o valor do trabalho, que tende, assim, a ir para abaixo do que econômica e socialmente representa. As intermediações, portanto, desvalorizam o trabalho.

A circulação de mercadorias é essencial para que o mais-valor se realize e, assim, as atividades relacionadas ao comércio das mercadorias estão igualmente ligadas ao processo de formação do capital.

O Direito Social não quebra essa lógica e, no fundo, é uma regulamentação que serve ao desenvolvimento desse modelo de produção, que é, também, determinante do modo de ser social, mas busca, ao menos, impedir que, num contexto de exploração sem limites, a sociedade capitalista seja dominada pela barbárie, como já demonstrado no curso histórico.

O que não se pode conceber, dentro do projeto jurídico de Direito Social, é que a força de trabalho seja reconduzida ao ponto da mera mercadoria de comércio, como forma de gerar lucro ao comerciante desvinculado de qualquer projeto social mínimo e sem visualizar o caráter humano do trabalho, pois isso representa uma fórmula para evitar que o mais-valor se complete sem ao menos se respeitar o limite que fora imposto a partir do reconhecimento dos efeitos nefastos de duas guerras mundiais, que explicitam as consequências do “capitalismo desorganizado”, quando se firmou também o compromisso em torno da necessidade de se integrar a classe trabalhadora ao projeto de sociedade, garantindo-lhe uma condição existencial para além da mera sobrevivência.

É totalmente impróprio, portanto, falar em terceirização no sentido do oferecimento de força de trabalho para a realização de atividades integradas a uma produção específica, que não passa, pois, de mera intermediação, cujo resultado final, para os trabalhadores, será sempre a redução de seus ganhos, já que o intermediador pretende extrair lucro com a venda da mercadoria força de trabalho e o capitalista, claro, não se prestará a investir mais capital na força de trabalho do que investiria na contratação direta dos trabalhadores, sendo que, ainda, tal fórmula confere ao capitalista a grande vantagem de, por meio de variadas intermediações, conseguir quebrar a socialização no trabalho, que é base da ação coletiva reivindicatória dos trabalhadores, estimulando-se, além disso, uma lógica de concorrência entre estes.

A terceirização generalizada, pois, é uma destruição completa do projeto de Direito Social, em favor do grande capital, o qual possui uma estruturação compatível com a intermediação.

Claro que não está obstada pela ordem jurídica, considerando-se as características do modelo capitalista, a formação de empreendimentos empresariais cuja atividade é a realização de serviços, ou seja, atividades empresariais cujo objeto é a venda de serviços prestados por seres humanos e não propriamente de um produto.

Mas é necessário, primeiro, que esse serviço tenha alguma qualificação específica, dentro de um contexto organizacional próprio, sendo que o permissivo, de todo modo, não pode conflitar com a regra geral de que as atividades do processo de trabalho, ligadas à realização do capital, nas quais se inserem o comércio e a financeirização, devem ser desenvolvidas sem intermediários, como explicado acima.

Desse modo, uma prestação de serviços só pode se desenvolver de modo regular, juridicamente falando, no contexto do Direito Social, para a realização de atividades que não estejam inseridas ao conjunto daquelas que são necessárias, de forma permanente, à concretização do objeto empresarial daquele que contrata tais serviços, até porque quanto mais intermediações se efetivam no processo produtivo, mais distante o trabalhador fica do capital e mais difícil se torna a concretização do projeto de uma ordem social mínima para o capitalismo.

A ampla discussão que se tem travado publicamente sobre a terceirização, que conduziu ao ponto de se pretender autorizar a terceirização da atividade-fim, paradoxalmente, acabou permitindo que se percebesse que não havia mesmo qualquer sentido em autorizar a terceirização da atividade-meio, que não difere, pois, da terceirização da atividade-fim, até porque essa, como reconhecido, é uma construção artificial. Uma e outra forma de terceirização não passam de mera intermediação de mão de obra, que atrai a aplicação do preceito trabalhista, internacionalmente consagrado, da proibição desse tipo de atividade mercantil.

Quando a lei autoriza a terceirização da atividade-fim é gerado o efeito de se acreditar que não existe a possibilidade da formação de um vínculo jurídico direto entre o trabalho e o capital, a não ser por uma concessão deste, que só não terceiriza se não quiser. Em outras palavras, o capital não se veria mais obrigatoriamente vinculado a projeto social algum, estando, unicamente, submetido à sua própria lógica.

Mas a organização do modelo capitalista de produção pelo Direito Social não pode se efetivar dentro desse marco dos parâmetros de escolha do capitalista, ainda mais porque suas escolhas estão condicionadas à pressão da concorrência, que lhe impõe posturas que acabam sacrificando o trabalho e o projeto social, destruindo as possibilidades de concretização de políticas públicas.

Então, quando a lei chega ao ponto de autorizar a terceirização da atividade-fim, o efeito jurídico necessário, para a preservação da ordem social, é o de se afirmar o contrário, ou seja, que a terceirização, juridicamente falando, não existe e o mecanismo que se tem para isso é o da declaração da relação de emprego, instituto criado exatamente para vincular o trabalho e o capital, atribuindo-se a este uma responsabilidade social mínima para a efetivação de um projeto de sociedade pautado pela lógica do Estado Social.

A relação de emprego, vale lembrar, é um instituto jurídico que decorre da necessidade de se superarem os obstáculos impostos pela racionalidade jurídica liberal, que tentava afastar o capital de qualquer responsabilidade social.

Pela configuração da relação de emprego foi possível suplantar os vínculos contratuais formalizados para “legitimar” intermediações de mão de obra, o que permitiu fixar e efetivar obrigações mínimas ao capital em decorrência do permissivo para a exploração do trabalho humano. Trata-se, pois, de um preceito de ordem pública, tendo como elemento de identificação a subordinação, verificada a partir do princípio da primazia da realidade.

O conceito de subordinação, por sua vez, vale lembrar, foi forjado por atuação jurisprudencial, na França, quando se percebeu que os ajustes contratuais – que são determinados por quem detém o poder econômico – procuravam impedir a responsabilização dos detentores dos meios de produção quanto aos acidentes de trabalho e que a impunidade que dessa contratualização resultava alimentava os conflitos sociais.

Como destaca François Ewald, alguns empregadores, para evitar qualquer responsabilidade frente aos acidentes, forjavam um contrato para “colocar o operário na posição de ser ele mesmo juridicamente encarregado de sua própria segurança” [i]. Mas, conforme relata o mesmo autor, “Os tribunais desvendam o artifício e declaram na ocasião, como verdadeiro critério da relação salarial, o poder de direção do empregador e a situação de subordinação do assalariado” [ii].

A subordinação, portanto, não é uma submissão do trabalhador ao controle disciplinar de um contratante específico, como, de forma equivocada, se costumou entender, e sim um conceito jurídico próprio do Direito Social para suplantar os artifícios do contratualismo do Direito Civil clássico que serviam para evitar a responsabilidade do capital pela exploração do trabalho.

A relação de emprego se identifica por uma razão de ordem pública, tomando em conta muito mais a realidade fática do que a vontade expressa ou tácita das partes e o conteúdo normativo que sobre si incide também não leva em consideração os interesses individuais, mas sobretudo o interesse social, com finalidade não apenas de proteger o trabalhador contra a exploração desumana, mas também de promover atos tendentes à melhoria constante da condição social e econômica do empregado, numa perspectiva de certa socialização dos bens de produção e de uma menos injusta distribuição da riqueza produzida na sociedade capitalista.

Nisto constitui, ademais, a própria razão de ser do Direito do Trabalho, que, como acentua Mario de La Cueva, “difere esencialmente del derecho civil, por sus fundamentos y en sus propósitos. El derecho del trabajo no es un derecho para regular la conducta de los hombres en relación con las cosas, sino que es un derecho para el proteger la energía humana del trabajo, sino, más bien, asegurar a cada hombre una posición social adecuada, esto es, el derecho del trabajo constituye, no reglas para regular la compra-venta o el arrendamiento de la fuerza de trabajo, sino un estatuto personal que procura elevar al hombre a una existencia digna. Por eso que la semejanza en las instituciones no puede resolver los problemas, porque la esencia de las mismas instituciones es distinta”.[iii]

Assim, mesmo com a revitalização da antiga onda de ataques aos direitos sociais, pelos quais, sob a retórica da modernidade, procura-se conduzir a sociedade brasileira aos tempos do século XIX, o percurso da progressividade se impõe por incidência da razão e da lógica. Com efeito, diante da necessária retomada dos fundamentos do Direito do Trabalho para solucionar o conflito incontornável de duas regras generalizantes que se contrapõem, chega-se ao ponto dialético de que a previsão legal da atividade-fim representa o fim da terceirização.

Notas

[i]. EWALD, François. Historie de l’État Providence: les origines de la solidarité. Paris: Grasset, 1996, p. 214.
[ii]. EWALD, François. Historie de l’État Providence: les origines de la solidarité. Paris: Grasset, 1996, p. 214.
[iii]. CUEVA, Mario de La. Derecho Mexicano Del Trabajo. Tomo I. México: Porrua, 1960, p. 453.

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