Tempestade à vista no mundo do Trabalho

A atitude desastrosa do governo diante da pandemia está gestando um oceano de desocupação e precariedade – que emergirá em breve. A resposta de Paulo Guedes é devastar direitos e desestruturar Trabalho e Previdência. É preciso enfrentá-la.

Antonio Martins

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 17/07/2020

I.

Ou a vida ou a Economia. Em março, quando a covid-19 começava a se alastrar, Jair Bolsonaro estabeleceu esta disjuntiva absurda – e optou pelo segundo termo. Numa lógica quase-nazista, a população deveria se sacrificar, para que os negócios prosperassem. O governo recusou-se a adotar medidas de distanciamento social e sabotou, legal e simbolicamente, as tímidas ações de estados e municípios neste rumo. As consequências começam a surgir. Sanitariamente, o Brasil rivaliza apenas com os Estados Unidos, como campeão funesto de mortes e contágios. Temos apenas 2,7% da população do mundo, mas 12,9% dos óbitos por coronavírus – e a conta não para de crescer.

Porém, na Economia e no Trabalho, que o ex-capitão prometeu defender, arma-se outro resultado tenebroso. Temporariamente ocultas, devido a minúcias estatísticas, as taxas de desocupação irão disparar em breve, tão logo termine o auxílio emergencial votado pelo Congresso. O desastre maior não estará nos números, mas na vida real – como veremos ao longo do texto. Um exército de sem-emprego será forçado a buscar ocupações a qualquer custo. Encontrará empresas fechadas ou financeiramente comprometidas – e consumidores sem ânimo para gastar. O ministro Paulo Guedes já farejou o desastre, mas prepara a pior resposta possível, que já expôs em balões de ensaio. Há alternativas reais. Exigem romper três padrões: a concentração de riquezas, a financeirização e a reprimarização produtiva, que marcam o Brasil há décadas. Por isso, é preciso começar a debatê-las desde já.

II.

Do ponto de vista estatístico, o vasto tsunami de desocupação que se aproxima veloz ainda não chegou à praia devido a um critério conceitual da Sociologia (e à desatenção do Jornalismo…). Os índices de desemprego subiram relativamente pouco e não ganharam manchetes. Estávamos em 10,6%1, em fevereiro deste ano; no final de junho, passamos a 13,1%. Em quatro meses de crise, cerca de 1,4 milhão de pessoas perderam o posto de trabalho.

Mas esta onda modesta oculta outra, oito vezes maior. Após o início da pandemia, 11,5 milhões de brasileiros deixaram de fazer parte da População Economicamente Ativa – a PEA. Não são sequer classificados como desempregados, porque simplesmente deixaram de procurar trabalho. A grande maioria destas perdas deu-se na chamada “economia informal”, onde a PEA encolheu, em poucos meses, 15,1%. São, por exemplo, a empregada doméstica sem registro, mandada para casa sem remuneração; ou o pedreiro que faz bicos, também não registrados, para um pequeno empreiteiro, que perdeu os clientes. No universo dos formalizados, a redução da PEA foi menor: 6,7%. É que o governo ofereceu aos empregadores a oportunidade de licenciar ou reduzir a jornada de seus empregados – e subsidiou os salários dos atingidos. Nos dois casos, o gráfico abaixo permite enxergar o tombo produzido pela incúria das políticas de Bolsonaro.

O exame dos conceitos também é útil para examinar a devastação produzida, no mundo do trabalho, por várias décadas de financeirização e reprimarização da economia brasileira. Da população do país, que beira os 210 milhões de habitantes, 169 milhões têm a partir de 14 anos – e são classificados como População em Idade Ativa (a PIA). Destes, eram considerados economicamente ativos – ou parte da PEA – , em maio, apenas 55%. Como 13,1% da PEA estão desempregados, restam apenas 47,8% efetivamente trabalhando. E, mesmo neste universo, de cerca de 81 milhões de trabalhadores, 30,4 milhões estão, sempre segundo o IBGE, subutilizados. Restam, portanto, na condição de plenamente ocupados, pouco mais de 50 milhões – menos de 30% da PIA.

III.

Mais graves que os números é a realidade social que os conforma – e, em especial, o que ela poderá produzir nos próximos meses. Por serem parciais e caóticas, e por sofrerem sabotagem constante da presidência da República, as medidas de afastamento social no Brasil prolongam-se a perder de vista. Na China, um lockdown severo em Wuhan durou 76 dias, mas reduziu a pandemia a quase zero. Desde março, os pouquíssimos casos que eclodem provêm quase sempre do exterior. Aqui, as primeiras restrições às atividades produtivas começaram em meados de março. Passaram-se 120 dias, mas o número de contágios diários quintuplicou e é impossível saber quando a curva começará a declinar. Os danos à sociedade e à própria economia são, por isso, incomparavelmente maiores.

Dezenas de milhões de pessoas, que perderam o trabalho, viram-se como podem. Sobrevivem com os R$ 600 do Auxílio Emergencial, complementados com o apoio de parentes empregados e ações de solidariedade. Por terem deixado a PEA, não pressionam o mercado de trabalho. Não funcionam como o chamado “exército de reserva”, que faz concorrência aos assalariados ocupados e é usado pelos empregadores para rebaixar salários e direitos laborais.

Tudo isso mudará, a partir de setembro – mês em que será paga, gradualmente, a quinta e última parcela dos R$ 600. Sem o auxílio, milhões de informais serão obrigados a sair às ruas à procura de trabalho. Algo semelhante poderá ocorrer com os trabalhadores formalizados que foram licenciados ou tiveram jornada reduzida, quando terminar o subsídio estatal a seus salários. Uns e outros encontrarão uma economia agonizante. A mesma PNAD-Covid do IBGE registrava, que, já em meados de junho, apenas 67,4% das empresas estava funcionando normalmente. Outras 15% estava temporariamente paradas pela covid-19 e 17,6% haviam encerrado as atividades em definitivo.

Das que sobreviverem, boa parte estará às voltas com dívidas bancárias, queda abrupta de receitas (nos shoppings que reabriram, por exemplo, a maior parte dos lojistas relata redução de 90% no volume de vendas), impostos, aluguéis e contas atrasadas. As dificuldades serão ainda mais intensas nas pequenas e médias empresas – as que mais empregam. O quadro desolador inibirá os gastos das famílias, o que repercutirá sobre o comércio e a produção. Estará armada a tempestade perfeita, a espiral descendente típica das depressões econômicas, que se retroalimentam em círculos regressivos. O Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV, prevê que a produção industrial recuará 11,5%, em 2020. Ouvidos pela jornalista Thaís Carrança, da Folha de S.Paulo, a economista Solange Srour, da ARX investimentos, previu que, ao final do ano, o desemprego baterá todos os recordes, e chegará aos 20%. Segundo ela, serão mais intensamente afetados os trabalhadores mais pobres e menos qualificados. Em certos setores (pense nos bancos), automação e inteligência artificial eliminarão postos de trabalho em massa. Em outros (imagine o comércio), a concentração empresarial e as vendas eletrônicas farão o mesmo.

IV.

O terremoto que pode advir, após o fim do auxilio emergencial, tira o sono de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Ambos hesitaram por semanas, e chegaram a dar declarações contraditórias e confusas, sobre o que fazer após setembro. Por um lado, a defesa ideológica da ortodoxia econômica, e o apoio crucial que recebem da oligarquia financeira os impede de enfrentar a concentração de riquezas, mesmo que com ações modestas. Diversos integrantes da equipe econômica têm avisado que o objetivo do ministro é retornar, tão logo que possível, à “agenda de reformas”. Por outro lado, o banqueiro e seu capitão sabem que terminar a seco com os R$ 600 pode ser desastroso. O governo perderá o apoio, parcial e instável, que conquistou, nos últimos meses, entre os mais pobres. E o ambiente político que advirá de um desemprego na casa dos 20% é imprevisível.

Pressionado por dois fogos, Paulo Guedes manteve-se discreto, ao longo de semanas. Cozinhou, neste período, uma receita excêntrica, cujos primeiros ingredientes Folha de S.Paulo revelou – em matéria certamente informada pelo ministro – na última quarta-feira. Guedes quer manter, ainda que residualmente, o auxílio emergencial. Planeja rebatizá-lo de Renda Brasil, um programa que surgiria em substituição ao Bolsa Família (com claro ganho político colateral, para o bolsonarismo). Teria valor menor e beneficiaria apenas uma parcela dos que recebem os R$ 600.

Em contrapartida, sempre segundo os planos de Guedes, o governo proporá, a um Congresso de maioria oligárquica e neoliberal, duas bombas nucleares. Uma contra a Seguridade Social; outra, contra os direitos trabalhistas.

A Renda Brasil, segundo a Folha, virá acompanhada de uma nova tentativa de instituir a capitalização individual, como novo regime da Previdência. Cada trabalhador será o único responsável por garantir sua própria aposentadoria. Tanto os empregadores quanto o Estado, que hoje contribuem para o sistema, serão “liberados”. A consequência será, obviamente, a quebra financeira do INSS. Na nova configuração, os benefícios serão muito menores. Tanto que o Estado atuará apenas para “garantir uma complementação para quem não conseguir atingir o salário mínimo como valor da aposentadoria”. O que hoje é o piso dos benefícios passará a ser o teto.

A segunda explosão atômica pretendida pelo ministro atingirá as relações de trabalho. Há tempos, Guedes defende a “carteira verde e amarela”, que reduz direitos laborais. Agora, ele radicalizou: passou a defender contratação por hora, e não mais por mês. Ao invés de se comprometerem a pagar um salário mensal, os empregadores poderão, na visão do ministro, contratar os trabalhadores apenas nos períodos em que forem estritamente necessários. Imagine a devastação que isso produzirá, nos salários e nos direitos, num período em que haverá um gigantesco exército de mão de obra.

Contratam-se balconistas, por uma semana. Enviar currículo e proposta salarial. Os valores pretendidos serão decisivos na seleção dos candidatos.

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V.

Em que pesem o cinismo como marca do caráter, a sociopatia que aflora com frequência e o apego irrefreável ao dinheiro e ao poder, um mérito deve ser reconhecido aos neoliberais: a audácia intelectual. Desde os anos 1940, quando criaram a Sociedade Mont Pelerin, Fredrich Hayek, Ludwig von Mises e outros economistas não se acanharam por contrariar as ideias hegemônicas de seu tempo. Tiveram, é certo, o auxíio luxuoso dos banqueiros. Numa época em que o capitalismo cedia os anéis, e flertava com a democracia, era cômodo ser outsider e aninhar-se no regaço de uma oligarquia temporariamente demodée.

Mas a mesma disposição de contrariar o espírito da época, que eles sustentaram, precisa animar, agora, os que lutam contra a ortodoxia neoliberal. Não importa que, na correlação de forças atual, certas propostas não possam prevalecer. Eles devem ser apresentadas e desenvolvidas para que, aos poucos, tomem corpo, disputem a consciência social e mostrem sua adequação. Não se contrapõem, é claro, a resistencia. Será preciso, antes de tudo, derrotar, uma nova proposta regressiva de Bolsonaro & Guedes — e a proximidade das eleições municipais será um ponto de apoio essencial. Mas será preciso ir além e lançar pontos de uma agenda propositiva.

Em oposição aos retrocessos tramados pelo governo, uma primeira providência é propor que o Auxílio Emergencial seja convertido numa Renda Básica real. Isso implica ter valor maior (ao menos um salário mínimo) e ser pago incondicionalmente, a todas as pessoas a partir dos 14 anos. Numa época de grandes transformações tecnológicas e de ameaça constante de regressão social, a Renda Básica precisa ser a grande bandeira civilizatória das maiorias, o equivalente ao que foi a Jornada de 8 Horas na virada para o século XX.

Num país como o Brasil, que já vive quatro décadas de financeirização e reprimarização da Economia, a Renda Básica expressa um choque de igualdade. Significa que, para ter direito a uma existência digna, a população não precisará se submeter ao trabalho nas condições regredidas que são hoje oferecidas. A renda para tanto virá da repartição. Há recursos para isso. Como argumenta Ladislau Dowbor, o trabalho dos brasileiros, se dividido igualitariamente, asseguraria a cada pessoa aproximadamente R$ 3 mil mensais. Ainda que, por constrangimentos políticos, a Renda Básica não possa chegar a tanto, criá-la, em valores e condições que signifiquem o início de uma mudança social profunda, precisa ser uma bandeira central dos que não se conformam com a degradação do Brasil.

Mas não basta repartir as riquezas monetárias atuais, para um país melhor. É preciso criar trabalho novo, ligado a uma Virada Socioambiental – e não às lógicas “de mercado”. Há décadas não há um projeto nacional. Acumulam-se necessidades nunca enfrentadas. A revolução urbanística das periferias, as cidades livres da ditadura dos automóveis, as redes de ferrovias e metrôs, a transição do agronegócio para a agroecologia, a despoluição dos rios, as energias limpas, o saneamento para todos etc etc etc. A oposição às regressões neoliberais precisa suscitar a imaginação transformadora e a reflexão democrática sobre que sociedade queremos.

Na pandemia, o SUS mostrou seu valor. Sem ele, as maiorias não teriam socorro; a pesquisa em Saúde, realizada em centros como a Fiocruz e o Instituto Butantã, não existiria. Sob o impulso deste reconhecimento, é preciso propor uma Revolução dos Comuns. Saúde, Educação, Água, Saneamento, Energia, Habitação, Urbanização, Transportes Públicos – tudo isso precisa ser gerido como se cuida da casa, não sob a lógica da busca de vantagens. E precisa ser da melhor qualidade possível para todos, não apenas para quem possa pagar. Quem deseja sacudir o país e questionar suas estruturas de segregação secular, precisa também vislumbrar mecanismos de repartição de riquezas que não limitem o acúmulo pessoal, familiar ou corporativo, e reúnam recursos para construir o que é de todos.

Tanto a Virada Socioambiental quanto a Revolução dos Comuns exigirão enorme esforço humano. O mundo trabalho não pode ser gerido apenas como um mercado privado, em que empregadores e assalariados se encontram, como se não houvesse necessidades coletivas a cumprir. A sociedade precisa intervir, oferecendo a Garantia de Emprego Digno para os que o desejem. Milhões de ocupações, em múltiplas atividades e de capacitações diversas. Dx engenheirx ambiental ax encanadorx; dx planejadorx urbano ax assentadorx de trilhos ou ax eletricista do metrô. Remuneradas com dignidade e executadas em ritmos serenos – que permitam o lazer, a (re)qualificação profissional permanente e a reflexão. Todos os benefícios de abundância que a revolução tecnológica oferece – porém distribuídos entre muitos, e não concentrados numa oligarquia com padrões de consumo devastadores e deprimentes.

Para financiar este feixe de transformações, uma vasta Reforma Tributária e o uso, em favor das maiorias, da Moeda como Instrumento de Redistribuição de Riquezas. Imprimir dinheiro para pagar a Renda Básica e para financiar a Revolução dos Comuns, a Virada Socioambiental e a Garantia do Emprego Digno. Inverter as políticas de “quantative easing”, que despejam, desde a crise de 2008, dezenas de trilhões de dólares nas mãos da oligarquia financeira.

Numa sociedade politicamente deprimida, como a brasileira, não basta enfrentar os donos do poder e do dinheiro constestando parcialmente seus projetos de morte. É preciso repropor a vida. Uma boa oportunidade é mirar setembro, mês da primavera.

Notas

1 Os percentuais variam ligeiramente, de acordo com a pesquisa. O próprio IBGE produzia, até a pandemia a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicíios (PNAD) Contínua, com entrevistas presenciais. Após a covid-19, passou a produzir, por telefone, a PNAD-Covid, ainda experimental. O primeiro índice de desemprego da PNAD- Covid, relativo a maio, apontava 10,5%. Optamos por usar o valor de fevereiro da PNAD Contínua, por ser mais preciso.

Antonio Martins é editor de Outras Palavras.

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